I
Quando a escuridão o invadiu, Caramuru pôde interpretar com maior clareza o teatro social a sua volta e o repartiu em três categorias: palco, plateia e gleba. Para ele, talvez não coubesse nem o mais marginal dos assentos disponíveis, a gradação das trevas o empurrava ao degredo involuntário. O nome de batismo refletia a fixação do pai por Diogo Álvares Correia, o náufrago português que chefiou uma tribo de índios. Num tempo de frêmitos e deslumbramentos, Caramuru de Sousa emitiu o único convite que o faria entrar em cena, num entreposto entre o palco e a plateia, ele seria a atração.
 
Ao amanhecer, quando abriu as janelas do modesto sobrado na Rua da Lapa, foi acariciado pela brisa morna do mar e sentiu os primeiros raios de sol aquecendo seu rosto. Todas as sensações que lhe causavam extremo conforto estavam ligadas a um universo iluminado, mas agora tudo se resumia a sombras.
 
Do outro lado da cidade, no suntuoso Paço de São Cristóvão, outra janela se abria e um homem de pijama, envelhecido precocemente, de estatura respeitosa, surgia numa estreita sacada oferecendo-se ao Sol que Caramuru desfrutava. Os olhos, correndo pelos grandes campos à sua frente, avistaram a filha Isabel num passeio com o marido Havia um cansaço acompanhando a sabedoria de quem conquistou a complacência pelos homens e aprendeu a amar o mundo. Pedro de Alcântara acena para alguns jardineiros e retorna ao quarto com a intenção de se preparar para o dia, mas sem esquecer-se de murmurar a retórica que brincava com as responsabilidades.
 
- Antes imperador de mim mesmo, depois imperador do Brasil.
 
As cortinas caíram para a visão de Caramuru na infância, quando o Rio de Janeiro sofreu um surto de febre e mortes, febre que abreviou destas páginas a presença do pai e da mãe do garoto, sucumbiram à epidemia. Órfão, foi adotado por um tio viúvo que trabalhava para o barão de Mauá. A criança, carregada pelo negro Jairo, um escravo que não quis abandoná-la, foi instalada num quarto da casa de Manoel de Sousa, irmão de Antônio, o pai falecido do sobrinho. Naquela casa, na Rua da Saúde, a cegueira estendeu os primeiros tentáculos. Se foi Deus que fez a luz, o Diabo resgatou o breu e exilou nele o pequeno Caramuru, numa sequela que nenhum médico soube explicar.
 
Compadecendo-se, ao tomar conhecimento da enfermidade do menino, o barão de Mauá concedeu a Manoel, empregado que respeitava, passagens, estadia e consultas com especialistas na Inglaterra que pudessem desvendar a cegueira progressiva de Caramuru. Foi no antigo continente, cercado pelo fog britânico e pelas brumas cinzentas da sua precária visão, que o nosso infante esbarrou com as notas vadias de uma flauta solando nas ruas frias e cinzentas de Londres. Passados dois dias, comovido pela alegria do menino diante do instrumento, o tio o presenteou com uma flauta transversal. Com o tempo, Caramuru descobriu na piedade alheia uma provedora incansável de consolações.  
 
II
De volta ao Rio, a medicina não curou a cegueira, mas a música clareou o espírito. Dotado de um autodidatismo surpreendente, em poucas semanas solfejava polcas e clássicos que aprendeu pelo ouvido. O tio Manoel, não vislumbrando alternativas de melhor futuro, inscreveu o sobrinho no Imperial Instituto dos Meninos Cegos, para que ele aprimorasse a educação e o talento natural.
 
Ao atingir o alto da adolescência, Caramuru debutou num jovem elegante e se consagrou virtuose na flauta, com ela comandava a banda que levou fama aos saraus populares da casa do tio. De Benjamin Constant, um dos seus professores, foi premiado com menção honrosa na ocasião da formatura no Instituto. O dom musical nato, somado à cegueira adquirida, refletia o prestígio que ia construindo uma nova lenda em outro Caramuru.
 
III
Os anos são degraus que fazem da existência uma escada, às vezes cansamos da subida ou saltamos eufóricos querendo apressar a chegada ao cume. Quando o topo está perto, o temor do fim traz a vontade de retroceder aos andares mais baixos. O homem é uma inexorável e banal contradição: vem à luz de forma lenta e dolorosa, o parto; retorna ao mistério de súbito e desavisado, a morte. Duas pontas soltas da mesma linha, duas pontas avessas ao laço: isso é o homem.

Caramuru já havia galgado degraus suficientes para o alvorecer de um adulto e aqui o reencontramos flanando pelo Passeio Público, sempre guiado por Jairo, o negro alforriado que se prendeu pela lealdade. A cidade acolhia muitos personagens exóticos e numa dessas rondas matinais um deles se avizinhou de Caramuru. Jairo descreveu o estranho como um homem baixo, de olhos repuxados, que falava rápido e trocava letras. Kyoto, foi como ele se apresentou. Com franqueza espontânea, disse que poderia ajudar Caramuru a enxergar pelos outros sentidos do corpo e que cobraria pouco para ensiná-lo num armazém que possuía na Rua das Belas Noites. Intrigado, mas sempre disposto a renovar a esperança, Caramuru aceitou a oferta e marcou para o dia seguinte a lição de estreia com aquele sujeito de nome peculiar.
 
Kyoto não era um indígena, como Caramuru o havia imaginado, contou que viera de um continente distante, o Japão. Um samurai que fugiu da fome, da guerra e da desonra em sua pátria embarcando num navio português. Terminou a viagem no Brasil, onde se estabeleceu. Trabalhador incansável, reuniu capital e montou um comércio de peixes no galpão que arrendou na Rua das Belas Noites, tornou-se o principal fornecedor de frutos do mar para os bordeis e pensões que coloriam a região. No primeiro dia de aula, apresentou a Caramuru uma bengala resistente, feita de um tipo de madeira sólida e leve, explicou que a ferramenta seria uma extensão do braço, fortaleceria o equilíbrio, substituiria os olhos e poderia servir de arma poderosa. Kyoto, por intuição, inventou o precursor do bastão de Hoover. O japonês foi um alento na rota de Caramuru, um marco que sucedeu a flauta. As horas diárias treinando o manejo e a sensibilidade do bastão formaram do cego uma espécie de samurai, encorpando o folclore em torno do homem batizado pela legenda de outro homem. Caramuru, o cego que se fez músico, o músico que se fez samurai.
 
As lembranças do jovem deficiente se desdobravam em dois canais, a primeira habitava à memória visual da infância, brincando no quintal ensolarado da casa do tio, correndo desenfreado pela Rua da Saúde, indo até o Largo da Prainha, prolongando o festim no agitado Cais Pharoux, tempos em que a liberdade estava na luz. Quando as sombras invadiram todos os cenários possíveis, ele aprendeu a reter as impressões apanhadas pelo ouvido, pelo olfato e pele. Uma das suas experiências preferidas eram os fins de tarde no Passeio Público, no terraço à beira da Baía, onde em tantas ocasiões tocou a sua flauta rodeado de curiosos extasiados pela música. E foi isso que fez ao receber a última lição de mestre Kyoto, que o lançou ao desafio de tatear sozinho a trilha que levava ao jardim no Centro da Cidade. Usando a técnica que conferia sensibilidade à bengala confeccionada pelo japonês, Caramuru rompeu sua penumbra singular e fincou o pé no objetivo estabelecido. Doou seu coração às melodias naquela tarde. Cantou à vitória, estava feliz.
 
IV
Um pessimista diria que a felicidade é mãe de todas as infelicidades. Estaria certo? Sabemos é que meses após a original vitória de Caramuru contra a cegueira, Manoel de Sousa veio a óbito, morreu dormindo. Duas vezes órfão em uma única vida, o falecimento do tio o estremeceu, a amargura e o desamparo formaram tropa com a dor da perda. Com o patrão abatido e apático, o velho negro Jairo acelerou os trâmites para o funeral. O enterro aconteceu no cemitério de Botafogo e uma presença ilustre deu ares de evento à despedida, o agora Visconde de Mauá se fez presente. Caramuru nunca tivera contato pessoal com o célebre empresário do império, foi Jairo que o anunciou ao seu ouvido, mas o renomado Visconde não hesitou em se aproximar, prestar condolências e entregar em mãos um envelope. Aturdido, Caramuru agradeceu e voltou a se refugiar na tristeza. 
 
As nuvens negras da morte contrastavam com o azul translúcido de uma cidade que louvava histérica o fim da campanha bem sucedida do Paraguai. No trajeto de retorno à casa da Rua da Saúde, Caramuru tomou a decisão de vender o imóvel e mudar-se para longe da dolorosa saudade. Ainda no tílburi, abriu o envelope entregue por Mauá e pasmou. O Visconde doava um sobrado na Rua da Lapa e ações de uma das suas mais lucrativas empresas, anexou uma carta homenageando o dedicado empregado Manoel Sousa e alegando a obrigação póstuma de ser justo com quem lhe empenhou excepcional dedicação.
 
V
A Terra gira e é redonda. Eis que em 1874 retomamos ao fio da meada, Caramuru abriu as janelas do sobrado na Rua da Lapa, sentindo o Sol e a brisa soprada pela Baía afagando seu rosto. Despertava para uma radiante manhã, em um novo lar. Posta a mesa do café, Jairo comentou que a vizinha, Dona Carolina, uma portuguesa simpática, havia enviado um bolo de boas-vindas ao patrão. Carolina e o marido Machado de Assis, um cronista de periódicos, fizeram questão de recepcionar carinhosamente os recém-chegados. O lirismo da música selando amizade com a melodia das palavras. E a cordialidade entre eles frutificou em concertos que o flautista oferecia ao casal de vizinhos e em favores e gentilezas que trocavam. Virando 1875 e alçando melhores proventos, Machado comunicou ao amigo que iria transferir-se para o Cosme Velho. Talvez, por culpa dos descaminhos, os dois não mais se veriam.
 
Saraus e grandes bailes brotavam por todo o Rio de Janeiro, um prenúncio da Belle Époque Tropical, não faltavam oportunidades para Caramuru exibir seus dotes musicais. No Hotel D’Europe, na Rua do Ouvidor, alguns oficiais do exército seriam saudados por membros da nobreza que pretendiam reunir os expoentes mais ilustres da sociedade. Uma das bandas civis contratadas para tocar no festejo foi a de Caramuru. No salão do hotel, alojaram-se debaixo de um grande lustre de cristal, entre candelabros de prata, louças finas e a mesa abundante. A apurada audição de Caramuru captava os primeiros sussurros conspiratórios contra a monarquia, cochichos de abolicionistas e anseios por mudanças. Foi quando ele se deu conta do quanto desprezava Pedro II e como abominava a escravidão. Casais bailavam sobre o reluzente piso de mármore e o farfalhar dos vestidos femininos ilustravam a imaginação do flautista. A magia que impregnou aquela noite encantou todos os convidados e os aplausos intermináveis envaideceram os músicos.
 
Encerrada a festa, os colegas do relutante Caramuru o arrastaram para conhecer o Palácio de Cristal, uma pensão de mulheres malcomportadas que seduziam pelo uso dos corpos, eles queriam comemorar o sucesso da apresentação e fazer bom uso das gordas gorjetas. Acomodaram o cego num canto do randevu e foram tratar dos próprios prazeres. O barulho e a gritaria do ambiente oprimiram Caramuru, anulavam as referências que compensavam a ausência da visão. Moveu-se de onde estava e com a ajuda da bengala preparou a retirada, mas um toque macio e quente segurou-lhe a mão.
 
- Não vá – uma voz doce de mulher rogou-lhe ao ouvido.
 
O perfume, a ternura da fala mansa e a mão afetuosa que o segurou causaram em Caramuru o breve dom da profecia: ali estava o amor.
 
Kasya, uma cortesã que lutava contra o sotaque francês, amava o Brasil. Jamais se arrependeu do gélido inverno em que fugiu de Paris e abandonou um marido que a explorava. Desconhecendo o português, sem nenhum contato na Capital, não hesitou em tornar útil as suas maiores virtudes, a beleza do rosto ornada pela graciosidade do corpo. Não conseguia enumerar os homens que lhe caíram aos pés, foi através deles que, em menos de um ano, acumulou o robusto patrimônio financeiro e ergueu um dos bordeis mais conhecidos da cidade, o Palácio de Cristal, na Rua Gonçalves Dias.
 
- Eu preciso ir. – Insistiu Caramuru.

- Então vamos juntos ao Largo de São Francisco, eu chamo um cocheiro, peço a ele que o guie. – Retrucou Kasya.
 
- Não há necessidade, me cuido bem.

- Só o deixo ir assim.
 
Caminharam devagar em direção ao ponto dos tílburis, Kasya enlaçada ao braço de Caramuru, numa intimidade que somente a convivência permitiria. Ele tentava não se intimidar pelo ímpeto da companhia, mas estava tenso, o inusitado contato lhe exibia um terreno desconhecido. Para um cego, a rotina é desenhar na mente, pelo tato, olfato e audição, todas as faces e lugares que se despontam; a peleja cotidiana é repelir a melancolia que o isolava em uma caverna a partir dos sinais externos e incessantes que exigiam ser decodificados. No entanto, Caramuru não conseguia pintar um contorno para a mulher que o escoltava.
 
- Eu quero ir com você, não quero voltar para a pensão – disse Kasya.
 
Caramuru não teve oportunidade para responder, ela entrou na cabine e prosseguiram para a Rua da Lapa. Concluído o trajeto, Kasya se antecipa em pagar o cocheiro e descem os dois em frente ao sobrado. Como que prevendo a chegada, Jairo abre a porta e esboça um sorriso ao se deparar com a acompanhante do patrão. Em mais um arroubo, Kasya entra, observa os poucos móveis e se aninha num canapé de detalhes bem trabalhados.
 
- Moça linda. - O negro segreda a Caramuru.
 
Jairo, discreto, vai para o seu quarto e deixa o casal a sós. Kasya pergunta, sem reservas, desde quando ele era cego e Caramuru prefere mentir afirmando que desde que nasceu. Ela pega a caixa onde está a flauta e pede para que ele toque algo, uma música que a alegrasse. Caramuru não nega, pensa por alguns segundos e faz emergir do frágil instrumento o fruto do seu espantoso dom ao assoprar de cor um grande trecho do Concerto para flauta transversa em Re, Il Gardellino, de Vivaldi.
 
Kasya guardava uma filosofia pragmática, mas também trazia em si o paradoxo do misticismo. Ao ouvir o milagre da música fluindo da flauta de um homem cego, interpretou como um sinal, entendeu o porquê do desejo que a fez se aproximar dele e chorou. Caramuru, percebendo as lágrimas, estendeu um lenço, mas ela preferiu tocar o rosto do solista.
 
- Qual seu nome? O meu é Kasya.
 
Sem esperar resposta, ela colou os lábios ao dele e desabrochou o beijo predestinado. Por uma inevitável transgressão, Caramuru finalmente conheceria os prazeres da carne ao prever o amor e Kasya agarraria o amor ao romper com a luxúria. Ao acordar de um sono redentor, olhou as costas nuas da mulher em sua cama e se deu filosofando: A paixão é polca; o amor, uma celestial sinfonia.
 
Foi procurar Jairo, queria orientá-lo a preparar um farto desjejum e se deparou com uma caixa em cima da mesa de refeição. Havia um bilhete preso a uma fita, assinava o mestre Kyoto: “Feito no Japão, herança de família, deixo este vestuário ao meu abnegado e honorável discípulo”.
 
Uma túnica preta e longa, semelhante ao traje de monges, explicava Jairo ao patrão. Caramuru orgulhou-se do presente, que veio para completar o seu êxtase. Vestiu o traje e aguardou que sua musa acordasse.
 
VI
Caramuru e Kasya estreitaram o romance nas tardes poéticas do Passeio Público, não se importavam com os bochichos da matilha que se melindrava ao testemunhar um cego vestindo túnica e uma francesa com aparência de cortesã, ambos de braços dados e arrulhando como pombos que se cortejam. A vida contradiz a geometria e demonstra que não existe linha reta, há quebras no percurso. A mesma felicidade que abençoa se revela, novamente, madrasta dos infortúnios. Ao retornar de um desses idílios vespertinos, Caramuru tropeça num obstáculo no chão do sobrado, ele tateia, seu coração acelera na velocidade insuportável da angústia, um corpo gelado estirado e teso. O último membro de uma família adotiva, Jairo partia com o status de irmão mais velho e sua morte deixava o legado definitivo da solidão. Penalizada, Kasya se desfez dos negócios e foi morar com Caramuru. Não cumpriram os rituais do casamento, apenas sancionaram a união sob as benções do teto que os abrigou na Lapa.
 
VII
Sem precedentes a euforia de 1888, as ruas se renderam à folia fervorosa, um tapete de gente espremida e exaltada celebrava o fim da repulsiva escravidão, que empenhou duras resistências para o despejar irrefreável do último suspiro. Caramuru beirava os 40 anos e o amor por Kasya, a notoriedade como músico, além dos recentes ideais republicanos que assimilou, o promoveram a um novo patamar da maturidade. Porém, ele se ressentia da carência de algum propósito vital que justificasse sua biografia. A fundação da república, sua mais nobre quimera, seria o cimento eleito para tapar o perigoso vácuo da alma.
 
VIII
Primavera de 1889, em casa, Kasya recebeu o bilhete de um portador da Guarda Imperial: por recomendação do Conselheiro Albino Barbosa, ex-ministro da Justiça, convidavam Caramuru para apresentar-se, em sessão particular, durante o jantar da Família Real no propalado baile da Ilha Fiscal. A convocação vinha de última hora. A solenidade, que seria realizada em outubro, fora adiada para novembro. A reputação do flautista cego alcançou os ouvidos do imperador.
 
O convite quase ofendeu Caramuru, que trilhava uma cruzada contra a monarquia ao se filiar num dos inúmeros clubes republicanos que brotavam pela cidade. Kasya buscou demovê-lo do radicalismo, argumentava que ele não deveria permitir que a política ofuscasse sua arte, mas o fanatismo é um orador insuperável e moldou um Caramuru irredutível. Ele não iria.
 
A uma semana do baile, um grupo de cadetes bateu ao sobrado da Rua da Lapa e solicitou uma conversa reservada com o músico. Curioso, Caramuru foi andar com eles e entender do que se tratava. A pergunta de um dos rapazes, o mais atrevido, não pareceu ter nexo.
 
- O quanto você enxerga?
 
- Sou cego.
 
- Não vê nada? Disseram que não é completamente cego.
 
- Vejo vultos mergulhados no escuro.
 
- Vê sombras?
 
- Se o objeto estiver próximo, sim.
 
- Então, o exército clama pelo teu patriotismo. O imperador deve morrer.
 
O semblante de Caramuru se contorceu na expressão do incrédulo presenciando o impensável.
 
- Sabemos que o senhor estará com Dom Pedro e tocará para ele num jantar. Não farei rodeios, forneceremos uma pistola, quando ele se aproximar para os cumprimentos encoste a arma em seu peito e atire a queima-roupa.
 
- Insanos! Não farei isso.
 
- Se não fizer, sua mulher, a cortesã francesa, será deportada por ter mantido negócios ilícitos. Sabemos de tudo. Reflita, é o que todos nós queremos, o fim de um regime de parasitas e a inauguração da república. O senhor é um republicano, honre nossa causa. Não irão suspeitar de um cego e poderá ficar perto do imperador.
 
- Esquecem que há herdeiros? A sucessora?
 
- Da sucessão cuidamos nós, o exército. Pese a questão, pese o seu patriotismo, amanhã nos dê a resposta. Lembre-se, a revolução exige um herói.

Caramuru estava honestamente chocado, mas lhe ocorreu que aquele poderia ser o seu aguardado desígnio, o rasto que o eternizaria.
 
- “A glória sempre justifica a vitória, qualquer que seja o modo utilizado para conquistá-la”. – A frase de Napoleão foi o aceite aguardado pelos cadetes, que deixaram uma pequena pistola de duelo aos cuidados de Caramuru com a recomendação de dispara-la ao encostar no corpo da vítima.
 
Kasya estava alheia ao drama do esposo e brindava à repentina resolução de entreter o imperador e os príncipes. Sonhava ouvir os relatos de Caramuru sobre o famoso baile que divulgavam por todo o Rio.
 
IX
Não temeu ser julgado como excêntrico e vestiu a túnica branca, confeccionada sob encomenda para o acontecimento. O povo que assistia ao embarque, intrigou-se com a figura esguia de Caramuru, com seus longos cabelos e aura de profeta. Os suspiros e exclamações dos que o acompanhavam repercutiam as proporções magníficas do que havia sido montado na ilha. Comentavam da suntuosidade das luzes, do aspecto veneziano da paisagem, da imponência das palmeiras, da elegância dos homens e dos monumentais vestidos das mulheres.
 
Caramuru desembarcou entre os primeiros convidados, foi conduzido a sala de jantar e ali esperaria a chegada das majestades. Discretamente, verificou a posição da pistola oculta num bolso interno da túnica. Concentrou-se para o concerto e para o ato que acordou cometer. Tinha consciência do caráter hediondo da sua decisão, porém a causa urgia pelo inadiável. As mãos suadas queriam denunciá-lo, com um lenço ele as calou. Os segundos se arrastavam sem compor minutos, pensamentos congelados. Enfim, os sinos badalaram, a realeza e um considerável séquito preencheram os lugares à mesa de jantar. O tilintar de talheres e pratos, os diálogos frívolos, os barulhos que vinham do exterior, Caramuru apreendia e filtrava cada detalhe. Um serviçal o avisou que poderia dar início à apresentação. O solista sacou a flauta e ostentou o Concerto em Sol Maior, de Mozart. Fez-se, de súbito, um silêncio e o fabuloso desempenho magnetizou os presentes. Todos se perguntavam, calados, como um cego poderia ter decorado a invisível partitura.
 
O encerramento triunfal estendeu a mudez dos nobres para emendar-se numa explosão de aplausos e ovações. Os mais próximos puderam ver lágrimas escorrendo dos olhos de Dom Pedro. O supremo governante, imediatamente, levantou-se e caminhou ao encontro de Caramuru. Em reverência, todos ficaram de pé. Os lábios do músico tremiam, a turba de sons o desorientava, mas escutou os passos lentos e avistou a sombra do imperador ganhando contornos, o monarca apertou seu ombro e o abraçou emocionado. A textura da barba, a voz paternal confessando orgulho pelo seu talento, um gesto inesperado que resgatou em Caramuru o retrato desbotado do pai falecido. Naquele instante, o ódio se desfez e ele amou profundamente aquele rei idoso que transpirava dignidade. Desistiu do intento e estendeu a arma desengatilhada para Dom Pedro. O soberano, assustado, saltou para trás. Caramuru ia explicar, mas pressentiu a marcha dos guardas, desconfiou que um deles poderia tomar seu lugar no atentado, com um grito esganiçado segurou firme a bengala feita por Kyoto e derrubou quatro sentinelas antes que uma bandeja o acertasse com força na cabeça.  Tombou inconsciente.
 
A Família Real antecipou a saída da ilha. Rapidamente, um capitão do exército envolvido na trama escalou alguns soldados e, sorrateiramente, retiraram o músico do local a bordo de um pequeno barco. Em terra, Benjamin Constant tomou ciência da trapalhada dos cadetes e recordou-se do pupilo pelo nome inconfundível. Receando que o movimento republicano terminasse comprometido, ordenou que Caramuru fosse enviado para o Hospício Pedro II e colocado em cela individual. Ao mesmo tempo, Kasya ficou sob vigilância, evitando que qualquer agente simpático ao governo se aproximasse. A ela explicaram que o músico estava detido para esclarecimentos. O caso foi abafado.
 
X
Ao cabo de três semanas, comunicaram a Kasya que seu marido seria solto, ela se apressou para espera-lo à entrada do Hospício. Pálido e cambaleante, o flautista atravessou os portões do hospital com o auxílio de um enfermeiro que o passou às mãos da esposa. A cidade estava quieta, a república proclamada, Dom Pedro desterrado, ruas e prédios mudando de nome, a nobreza destituída, jornais amordaçados, a coroa da bandeira imperial coberta por uma estrela vermelha e os militares no poder, assim sua mulher resumia as novidades. Caramuru foi acometido de forte comoção ao saber que o escorraçaram clandestinamente o imperador nas obscuras horas da noite. Desolado, reconheceu que a pretensão do seu glorioso propósito redundou num severo desgosto.

Por um desses extravios do destino, a saga do Caramuru cego acabou soterrada pelo mito do náufrago homônimo, fazendo este enredo desaparecer sob a teia das ruínas que edificam a épica história dos homens.