255-TOCAIA NO CÓRREGO DAS GARÇAS-Crime

— Era uma vez, na estrada que ligava a Fazenda do Espigão Alto com São Roque da Serra. Foi lá pelas bandas da fazenda do coronel Melgaço, a famosa Espigão Alto. O caminho, naqueles tempos, nada mais era do que uma picada no meio da mata. O coronel usava a mesma estrada de carros de boi, transitando com seu Fordinho 29. Cada vez que vinha à cidade, no seu carro, era uma aventura, que ele enfrentava com coragem, pois se o automóvel enguiçasse, tinha de enfrentar a estrada a pé.

Quando chovia, então, era uma empreitada perigosíssima. Vocês sabem como o córrego das Garças é: qualquer chuvinha nas cabeceiras, no alto da serra, enche o córrego. As águas ficam brabas, os remansos viram corredeiras e a cascatinha vira uma cachoeira cujo estrondo se ouve de longe.

Pois assim foi naquele final de 1944, vocês se lembram, o ano das enchentes. Até aqui na cidade o ribeirão entornou, e as casas lá de baixo, do bairro do Espraiado, ficaram alagadas com meio metro de água.

O Coronel tinha de acertar alguma conta na cidade. Disso sabia seu desafeto, o vingativo Serapião Campeta, que ajustou o Zeca Mulango para “passar um susto” no Coronel. Isso de “passar um susto” era como ele falava, quando exterminava qualquer cristão, em serviços de encomenda de morte.

Assim, o matador de aluguel já estava de tocaia montada há quase uma semana. Ficou a cavaleiro da estrada, onde ela cruza com o córrego das Garças, antes das águas se despencarem na cascata que, de tão desimportante, nem nome tem. Mas o poço fundo e largo, escavado pelas águas que despencam por mais de cinqüenta metros, é temível, com redemoinho e sumidouro. Depois, o córrego segue mais uns cem metros, antes de desembocar na Lagoa Preta. O lugar é muito conhecido, preferido pelos pescadores, remanso abundante de trairões, carás e mandis.

Escondido na mata, as roupas escuras e o chapelão desabado sobre o rosto, confundindo-se com o verde das árvores e as sombras do matagal, Zeca Mulango espera. O cavalo, amarrado a uma sibipiruna, pasta na sombra, também escondido.

Na madrugada de sexta-feira choveu forte nas cabeceiras do Córrego das Garças. O bandido se abrigou como pôde em sua capa gaúcha, aguardando. De hoje o disgraçado num escapa. Ele tem que ir à cidade, de qualquer jeito. Foi o que o seu Serapião me falou. — Remoendo os pensamentos, mastigando um pedaço de carne-de-sol, mantém os olhos fixos no local onde forçosamente o coronel teria de passar.

A estrada de bois (e do Fordinho do coronel) cruza o córrego sobre o lajeado de pedra limosa. Além dos sulcos cavados na pedra, pelo uso de longa data, nada existe para demarcar a estrada. São estreitas valas que se ocultam quando as águas sobem. Então, só mesmo quem conhece a estrada se atreve a vadear o córrego.

De repente, Zeca Mulango ouve, ao longe, o barulho característico do automóvel do coronel. Tché-tché-tché-tché... E logo surge o veículo, descendo devagar, as rodas escorregando pelo barro. Firme na direção, o coronel está preocupado com a travessia do córrego. O carro avança bem devagar, as rodas cortando a água.

O homem na tocaia levanta a espingarda, ajusta a coronha ao ombro, firma a arma, dedo no gatilho, faz a mira. Uma bala, só uma. Não quero desperdiçar munição com esse disgraçado. Só irá atirar, quando o veículo estiver bem no meio da travessia, bem iluminado pelo sol da manhã.

O carro pára. O motor cessa de funcionar. O silêncio é interrompido apenas pelo escachoar das águas na cascata, lá embaixo.

— Diacho! Encrencar logo aqui! — Murmura o coronel, enquanto abre a portinhola do carro, num gesto brusco. Decidido, o coronel sai do carro, as polainas mergulhadas na água. Abre a tampa do motor e procura descobrir o defeito.

Do alto, Zeca Mulango na mira, esperando o momento certo. Quando vê o coronel abaixado sobre o motor, as costas brilhando ao sol, não espera mais. Puxa o gatilho num tiro certeiro.

O coronel tomba por cima do motor do carro. Um filete rubro corre por sobre o paletó. O fio de fumaça do cano da espingarda se esfuma no ar.

Ligeiro, o matador escorrega do esconderijo e se dirige ao local onde o coronel está imóvel sobre o veículo. Só bem próximo do corpo, nota que o homem não está completamente morto. Vira-o. Os olhos quase sem vida adquirem um estranho brilho quando miram o assassino. Num gesto instintivo, ainda tem forças para, subitamente, abraçar seu executor.

O abraço é forte. Zeca Mulango, surpreso, tenta se desvencilhar. Inutilmente, pois agora já está preso pelas garras geladas de um morto. Preso de maneira inexorável, o matador percebe que o córrego está subindo, transformando-se numa caudal que vai arrastando tudo à sua frente. Na tentativa de se livrar das tenazes mortais, enreda-se na maçaneta da porta entreaberta, e cai dentro do carro, arrastando consigo o corpo da vítima. .

Esse disgraçado inda tá vivo! — É o último pensamento do assassino, que, sempre abraçado pelo morto, é engolfado pela torrente repentina do riacho que se agiganta, arrastando, corrente abaixo, lançando no precipício de águas, o veículo e seus dois ocupantes.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 23 DE NOVEMBRO DE 2003

CONTO # 255 da Série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/06/2014
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