245-SOB O SIGNO DE ESCORPIÃO

O ritual matutino de Zoroastro Apocalipse era seguido à risca: após o café da manhã, sentava-se à escrivaninha e abria a correspondência, coletada na caixa postal na tarde anterior. Na parte da manhã lia as cartas e respondia àquelas que mereciam sua atenção. A seguir, na velha Underwood dos anos 40, datilografava o programa de rádio para o horário da tarde e a coluna para os jornais da cidade e da região.

É um astrólogo de sucesso. Por muitos anos atendeu a consulentes em seu escritório. Sua participação no rádio e nos jornais ocupava apenas pequena parte do seu tempo. Entretanto, a partir dos anos 60, a emissora local convidou-o para fazer um programa diário, de cinqÜenta e cinco minutos. O programa radiofônico, transformado em coluna para jornais, levou o nome do astrólogo para toda a região circunvizinha de São Roque da Serra. E recentemente conseguira um espaço pequeno, é verdade, mas em bom horário, na TV-Regional.

Recebe dezenas de cartas todos os dias, de consulentes desejosos de informações mais acuradas sobre os astros e o destino das pessoas. Metódico, vai lendo as cartas à medida que abre os envelopes. Naquela manhã de quarta-feira, a rotina foi quebrada por uma surpresa. Entre as cartas, está a de um leitor da coluna de jornal e que se diz também, “ouvinte atento de seu programa diário”. Reclama de que as previsões feitas pelo astrólogo estão prejudicando sua vida. Não assina, mas há, na parte inferior do papel, um desenho rústico de escorpião.

Zoroastro nunca recebera tal tipo de reclamação. Evidentemente, é do signo de escorpião. Signo de pessoas violentas, intolerantes, irritáveis. Sem dúvida, devido a essa influência predominante de seu signo é que está descontente com as previsões astrológicas. Não deu maior importância à carta, que nem mereceria resposta na “Hora dos Astros”, pela Difusora Serrana, ou no programa da TV.

Na semana seguinte, novamente na quarta-feira, recebe uma nova carta do mesmo missivista, que não assinava, mas desenhava o escorpião sob o texto. “O senhor me persegue com seus prognósticos, Estou tendo problemas de saúde e perdi o emprego, por causa de suas previsões. Pare com essas palhaçadas”.

Pela letra, é homem. E a carta foi postada aqui mesmo, em S. Roque. Mas que quer que eu faça? Que pare com os programas de rádio? Com as colunas dos jornais? Que deixe de aparecer na TV? — A “assinatura” era a mesma, mas o desenho estava mal feito. Tremido. Ou ele tá muito nervoso ou com muita pressa.

O astrólogo não se impressionou. Lembra-se de certa ocasião em que uma ouvinte lhe telefonara, por diversas vezes, para dizer-se insatisfeita com os horóscopos do signo dela. A maluca lhe telefonou cerca de meia dúzia de vezes, e depois parou. Nunca mais foi incomodado por esse tipo de coisa.

Na terceira semana, contudo, ao receber mais uma carta do misterioso leitor/ouvinte de suas previsões, chocou-se com a ameaça: “Ou o senhor pára com essas malditas predições a meu respeito, ou vou ter de tomar uma atitude — o que não será nada bom para sua ”saúde”. — O escorpião lá estava, garatujado no pé da pagina.

Ameaçador? Bobagem. Uma pessoa que escreve este tipo de ameaça, jamais parte para executá-la” pensou o astrólogo.

Três dias depois, a ameaça veio por telefone.

— Você está arruinando minha vida, seu desgraçado!. Vou arruinar a sua também. — Uma voz masculina, grave.

— Quem está falando?

— Você sabe quem é. Sou o Escorpião.

— Que você quer que eu....

A ligação foi cortada bruscamente.

Zoroastro procurou o amigo Miguel Garcia em seu escritório de advogado criminalista. Colocou-o a par das ameaças que vinha recebendo, mostrou-lhe as cartas, falou do telefonema.

— Bem, vamos ter de traçar um perfil desse homem. Através das cartas e pela voz. — A experiência forense do doutor Miguel Garcia era enriquecida por muitos anos como delegado de polícia. Assim, era um misto de advogado e detetive, além de profundo conhecedor da mente de criminosos.

— Pergunte-me o que quiser saber.

— A voz. Você já disse ser de homem. É uma voz juvenil, de moço, ou de velho, de uma pessoa de idade?

— Certamente, é de uma pessoa adulta. Mais para velho. É firme e forte, grave, mas um pouco rouca. Fala com desembaraço, e não diz palavrões.

— Preste muita atenção, se ele chamar de novo. É certo que ele vai fazer novas ameaças, já que você continua com seus programas de rádio e TV e as colunas de jornal. Procure entabular conversa. Fique atento para ouvir sons do local de onde ele estiver telefonando.

Zoroastro ficou atento. As cartas cessaram e o segundo telefonema veio daí a três dias.

— Você não entendeu meu recado?

— Quem está falando?

— Escorpião, meu velho. Escorpião mortal. Vou te matar, se não parar de me perseguir.

— Perseguir como? Se nem mesmo o conheço. Mas não...

— Você me conhece, sim. Sabe que está me destruindo. Destruindo minha vida. Pare com isso.

— Não posso. Meu trabalho é fazer previsões. Você pensa....

— Idiota! Não entende nada, não é mesmo? Quantas vezes preciso lhe dizer?

Antes que pudesse responder, o telefone foi desligado. Zoroastro tenta se lembrar de sons, de algo que possa informar a Miguel. Nada. Nenhum ruído, nenhuma pista. A voz era a mesma, sem inflexões especiais. O “Escorpião” mantinha-se calmo, não se exasperava e não mudava o timbre de voz, nem mesmo quando o ameaçava de morte.

— Uma voz sem modulação... — Comentou o criminalista, quando soube do novo telefonema.

— Hei! Espera aí! É uma voz de profissional. Parece um ator declamando. Muito impressionante para ser uma voz comum.

A dica sobre a voz já era uma boa pista para as investigações. E na próxima ligação, repetindo-se as ameaças em tom mais virulento, Zoroastro prestou muita atenção no barulho “de fundo”: barulho de máquinas de jogos, tilintar de fichas metálicas e sons de pessoas conversando animadamente. Tudo muito longe.

— Vamos instalar um Bina no seu telefone. Amanhã cedo mando Jorge fazer a instalação.

Naquela noite, outro telefonema.

— Esta é a última vez que te telefono. É a ultima oportunidade que te dou — falou a voz do “Escorpião”.

— Mas o que você quer, realmente?

— Que você pare de me prejudicar com suas adivinhações malucas.

Zoroastro percebia de novo o barulho de máquinas de games. Parecia haver mais animação. O Escorpião parecia mais seguro, mais tranqüilo.

— Não posso cancelar os programas nem as colunas.

— Pare de fazer previsões do signo de escorpião. É o meu signo.

— Não tem jeito.

Zoroastro ouviu um grito de entusiasmo, um hurra! — Algum jogador ganhando?

— Então, adeus!

E desligou.

Passaram-se 5 dias sem que nada acontecesse com relação às mensagens do Escorpião. O Bina foi acoplado ao aparelho de Zoroastro.

— Ele afirmou que não voltaria a chamar.

E não chamou mais. Nem escreveu mais nada.

— Não devemos pensar que ele desistiu. Agora, mais cuidado do que nunca. — Com A experiência de muitos anos de lidar com criminosos, o doutor Miguel podia prever o próximo movimento do Escorpião. — Vou percorrer as casas de jogos eletrônicos, de games e de bingo. Uma investigação preliminar.

No sábado, Zoroastro sofreu um acidente. Ao voltar para casa, no elegante bairro das Acácias, seu carro perdeu o freio numa descida íngreme e não conseguiu fazer a curva no final da rua. Bateu violentamente contra um poste e ficou gravemente ferido.

No hospital, na manhã de domingo, estava ainda meio zonzo, sob efeito de medicamentos, quando foi visitado pelo criminalista e detetive.

— O escorpião ataca pra valer. Não podemos brincar com ele. — Doutor Miguel entrou eufórico.

— O que se pode fazer?

— Chequei todas as pistas que temos. Passei a noite estudando tudo o que sabemos. Já visitei quase todas as casas de jogos eletrônicos. Esta pista é quente.

— E o carro? O mecânico já viu o que causou o acidente?

— Um vazamento no depósito de óleo do freio. Sem dúvida nenhuma, a propósito para causar um desastre.

À tarde, em nova visita a Zoroastro, Miguel é categórico:

— Tenho o suspeito sob a mira.

— Pode me dizer quem é? Eu o conheço?

— Se você prometer absoluto sigilo.

E contou-lhe sobre as diligências do dia.

— A cidade tem 12 casas de jogos eletrônicos. Passei por todas elas, que ficam abertas vinte e quatro horas, sem fechar, nos fins-de-semana. Vi as pessoas que freqüentam e as que dirigem os estabelecimentos. Na maioria, gente jovem. Até os gerentes são jovens, é o tipo de negócio que exige muita disposição, ficar a noite inteira ali no batente. E um dos gerentes me chamou a atenção. É o que toma conta do “Game’s Palace.

— Que tem ele de especial?

— Bem, é mais velho que todos os outros gerentes. Deve ter seus sessenta anos. Já te disse que este é um ramo no qual só tem rapaziada trabalhando. E está há pouco tempo no serviço. Acho que você o conhece, sim. Chama-se Josué Machado.

— O nome não me é estranho. . . Como é o tipo?

— Alto e magro. Caminha arqueado e arrastando os pés. Aparenta uns sessenta anos. Cabelos grisalhos, muitas rugas na face, um ar de cansaço no semblante. A figura de um homem derrotado.

— Peraí! Conheço, sim, o camarada. Trabalhou na emissora aonde vou todos os dias, para fazer a “Hora dos Astros”. Ele era um dos locutores. Agora me lembro de seu primeiro telefonema, como achei sua voz empostada. Entretanto, faz tempo que não o vejo na emissora.

— Pois é dele que suspeito. Renan, o boy do meu escritório, esteve duas vezes no “Game’s Palace” e soube que o tal é muito supersticioso, tem medo de gato preto, de sextas-feiras, de todas essas besteiras.

— Nunca me pareceu um cara perigoso.

— Nunca se sabe, meu caro Zoroastro. Vou falar pro Renan voltar lá ainda hoje, e averiguar como é o cara, com relação à astrologia. Enquanto isso, é bom você tomar cuidado. Peça a alguém para ficar com você aqui no hospital, pelo menos à noite.

— Bingo! — exclamou Miguel, assim que viu Zoroastro, na segunda-feira, acomodado no grande sofá da sala de visitas da casa do astrólogo. — Josué é o homem que procuramos.

Zoroastro estendeu as mãos para cumprimentar o amigo.

— Desculpe-me por não levantar. Tive alta médica, mas ainda tenho que manter repouso. Posso ficar sentado aqui, mas nada de muito exercícios. — Zoroastro arranjou as almofadas, e, recostado com conforto, preparou-se para ouvir o relatório do detetive improvisado.

— Renan desencavou informações preciosas. O tal Josué é maníaco por horóscopo. Não faz nada sem consultar os jornais e ouvir seu programa. Está trabalhando no “Game’s Palace” depois que foi despedido da Difusora Serrana. Contou pro meu “investigador” que foi mandado embora da emissora devido à posição desfavorável dos astros.

— O cara é maluco.

— Eu diria que é louco de pedra. Psicopata. Não esconde sua personalidade violenta. Enquanto estava na casa de jogos, Renan viu o homem partir pra cima de um dos jogadores, não se sabe por qual motivo. Se o rapaz não tivesse saído na carreira, teria levado uns murros ou tapas do gerente.

— Convém comunicar à polícia?

— Não. Sem provas, só vamos assustar o cara, que poderá revidar de acordo com sua maneira de ser, isto é, com violência. Tenho um plano que parece arriscado, mas que poderá pegar o homem no ato. — Miguel passou então a explicar como deveriam fazer .

Noite de quinta-feira. Calor de rachar, o verão estava insuportável, independentemente da situação favorável de São Roque da Serra, encravada nas montanhas, a mais de mil metros de altitude. Toda a semana tinha sido assim. Zoroastro trabalhava no escritório, datilografando os artigos para os jornais e os comentários para o programa.. Na impossibilidade de sair de casa, o programa era levado ao ar na voz suave e canora de Gabriela Martins e sua apresentação na TV estava sendo gravada durante o dia. As amplas janelas abertas, as cortinas puxadas para o lado, a fim de permitir que um mínimo de frescor da noite amenizasse o ambiente de trabalho do astrólogo.

Desde o início da semana, assim trabalhava Zoroastro. Roupas leves, camisa aberta na frente, uma jarra de refresco e copo ao alcance da mão. A aparência descontraída era aparente. Zoroastro estava atento a tudo o que se passava ao seu redor. Tenso. Por volta das onze horas, ouviu um som estranho. Um baque surdo. — Alguém pulando a janela, pensou. Continuou trabalhando na Underwood, os ouvidos atentos. De repente, um vulto salta para dentro do escritório. Um homem alto e magro, com um gorro de meia na cabeça e um lenço amarrado sobre a face, tampando nariz e boca, permitindo apenas a visão de seus olhos.

— Ãh! Quem é o senhor? O que quer? — Gaguejou Zoroastro.

— Sou o Escorpião. O das cartas e dos telefonemas. — O homem tinha um punhal ou faca na mão esquerda. Na mão direita, um vidro de boca larga. Um desses vidros de doces ou conservas. — Vim cumprir o prometido, já que você não pára de me perseguir com suas malditas previsões. Seus horóscopos estão me atrapalhando a vida. Por causa deles, perdi meu emprego na emissora, e agora estou trabalhando numa espelunca dia e noite. Tudo por sua causa.

— Mas, espera aí. Não sou eu que manipulo os astros, não. — Zoroastro, apesar de aterrorizado com o ataque, procura ver (ou antes,adivinhar) quem está atrás da máscara. Pelo porte, quase tem certeza de se tratar de Josué Machado.

— Conversa fiada. Agora num adianta mais nada. — Antes mesmo de terminar a frase, abre com agilidade a tampa do vidro e joga seu conteúdo sobre o astrólogo: três grandes escorpiões voam pela sala. Um cai dentro da máquina de escrever, outro bem em frente de Zoroastro, sobre os papéis na escrivaninha e o terceiro sobre a sua mão direita, que estava sobre o teclado. A reação do astrólogo foi instantânea: safou-se do bicho num gesto instintivo, e o animal voou de volta para o bandido. No gesto de se livrar do escorpião, Zoroastro perdeu o equilíbrio, e caiu. Sentiu uma dor lancinante de suas costelas enfaixadas. Gritou de dor e de terror.

— Ah! Tá vendo como é bom atrapalhar a vida dos outros, né? Pois seu fim é agora. — O louco — pois o homem agia como um louco varrido — pulava ao redor de Zoroastro, num simulacro de dança mortal. O punhal na sua mão direita emitia reflexos das luzes do teto.

— Espere! Sei quem você é. Se você me matar, a polícia já sabe a quem procurar.

O vulto estacou. Os olhos vermelhos, duas brasas em fundas covas, piscaram, mostrando indecisão.

— Como é? Claro que sabe! Sou o escorpião.

— Você é Josué Machado. — Zoroastro grita, na tentativa de deter, pela surpresa, o homem ameaçador.

— Adivinhou, hein? Leu nos astros, foi? — Num gesto de orgulho, puxa da face o lenço e se exibe ante a vítima, ainda no chão. — Sim. É claro que você sabia. Todos os dias me mandando mensagens de fracassos, de ameaças. Você sabia que eu estava ouvindo. Lendo. Todos os dias. A mesma coisa. Que é que você tem contra mim? — Voltou a andar em volta de Zoroastro, que se esforçava, arrastando-se no chão, para ficar de frente para o bandido. Por isso viu quando outro vulto, saindo das cortinas, jogou-se por trás da alta figura de Josué, abraçando-o fortemente, imobilizando duas mãos, ao mesmo tempo em que caíam juntos sobre o piso de tacos.

O punhal saltou da mão de Josué. Pego de surpresa, não teve como reagir. Caindo, bateu com a cabeça na borda de madeira do pesado sofá. De um corte profundo na testa o sangue escorreu, descendo pela face. Não se levantou. Ali permaneceu, no chão, inerte, enquanto se erguia a figura que impedira o assassinato do astrólogo.

— Puxa, foi por pouco. Se ele não vira as costas pra mim, naqueles pulinhos, o situação ia ficar preta. — Sério, ainda sob o impacto dos momentos terríveis e da agitação que vivera, o jovem Renan se apruma. Dirige-se para Zoroastro, prostrado a poucos centímetros da imagem de Josué.

— Vamos, eu ajudo o senhor a se levantar. — Passa seus braços fortes sob os do astrólogo.— Cuidado com os escorpiões. Vamos ter de achá-los imediatamente.

— Um está na máquina de escrever. Os outros dois estão por aí.

Localizados e mortos os três perigosos insetos, telefonemas foram dados, primeiro ao doutor Miguel Garcia, em seguida à polícia. Os carros chegaram à residência de Zoroastro ao mesmo tempo.

— Eu sabia que ele iria atacar. Ainda mais ciente de que você estaria sozinho em casa, todas as noites. — O advogado-detetive exultava com o resultado de seu plano mirabolante. — Era só uma questão de tempo

— É, mas escapei por pouco. Da próxima vez, vamos colocar um figurante no meu lugar.

— Não vai haver próxima vez, por dois motivos. — Era Renan quem falava, já descontraído — Primeiro, que eu nunca mais vou fazer esse serviço de tocaia. Me deu nos nervos. Quase não agüentei esperar o momento certo para atacar o bandido.

— Tá bom, tá bom — O Doutor Miguel entrou na conversa. — Vou promovê-lo de boy a meu auxiliar direto e não precisará fazer mais esses “serviços sujos”.

— E qual é o segundo motivo? — Quer saber Zoroastro.

— Segundo, porque este aí nunca mais vai atacar ninguém: tá mortinho da silva.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 26 DE SETEMBRO DE 2003

CONTO # 244 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/06/2014
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