Terror em Belém
Eram xarás. Paula Nunes e Paula Souza aceitaram o desafio de uma viagem improvisada. A verdade é que a viagem fora até muito bem planejada, mas não para elas, que conseguiram as passagens e a participação no congresso sem ter conhecimento seguro do que se tratava. Aproveitaram bem as ofertas da politicagem: no mínimo, ganhariam alguma experiência. Garantiram que votariam no patrocinador e pronto. Embarcaram. Contudo, não haviam conseguido o direito à hospedagem em hotel. Paula Nunes contactou uma família em Belém, amiga de uma de suas vizinhas de Macapá, cidade onde morava. Nem foi preciso para os três primeiros dias. Nestes, Ficaram hospedadas no apartamento de uma companheira de viagem, parenta de uma delas, a quem encontraram no navio. As três últimas noites em Belém teriam de ficar na casa providenciada anteriormente, pois a parenta seguiria para o sul do Pará.
A viagem de navio no trecho Macapá/Belém é, sem dúvida, um verdadeiro e excelente passeio, principalmente quando o navio é confortável e seguro, como foi o caso deste que transportou as congressistas. O dissimulado remelexo da embarcação é quase imperceptível. O vento a sambar no rosto e colo, além de sua perícia em desassossegar os cabelos, não causa dissabor. A vegetação que preenche as ilhotas do percurso propicia uma agradável sensação de bem-estar mesmo a um viajor displicente ou habituado àquela rota. Nunes e Souza sabiam admirar o crespar das águas e o cozinhar das ondinhas, rastro do navio. Na avaliação das xarás, a imagem das taperas à beira do rio dava um toque preciso à beleza rústica da paisagem. Só uma cena entristeceu as moças: num certo ponto da viagem, notaram várias canoinhas aproximando-se do navio. Na proa de cada canoa vinha uma criança ora abrindo e fechando as mãos, ora balançando-as em sinal de chamamento; na popa, outra criança remava com habilidade impressionante. Eram crianças ribeirinhas de idades variadas, trajando apenas uma peça de roupa puída, tanto menino quando menina. Alguns garotos estavam nus. Uma canoa ou outra é que vinha agitada por algum adulto. A atitude dos passageiros foi o que mais comoveu as garotas. Muitos deles atiravam às águas biscoito e pão envoltos em sacos plásticos, roupas, sapatos, outros objetos e comidas, os quais eram apanhados com voracidade por aquelas criaturinhas. Parte dos espectadores que viam a cena pela primeira vez até choravam. Entre estes incluíram-se as Paulas. Ambas perceberam, perplexas, um turista, cuja compaixão por aquelas crianças (ou talvez a perplexidade por uma cena, para ele, inusitada) foi tão exacerbada, atirando uma de suas malas com tudo o que havia dentro. Ele ainda a abriu, mas resolveu, num impulso, não reter nada.
***
A casa contactada para a hospedagem de Nunes e Souza, situada em um bairro periférico e pouco amistoso, estava em reformas. As duas garotas não imaginavam que seus dias naquele lugar seriam encurtados. Às oito da manhã do quarto dia, deixaram as malas na casa prevista e rumaram para o local do seminário em que foram inscritas. Após o almoço, entenderam que era mais proveitoso fazer um passeio pelo comércio, mesmo sem dinheiro para comprar uma insignificância que fosse. Enquanto a luz do sol se mostrava, ambas caminhavam tagarelando seguras e cheias de si. Próximo às dezessete horas, a prudência lhes soprava que era momento de retornar à segurança de um lar. Paula Nunes era a mais audaciosa e valente. Sem seu incentivo, a outra jamais ousaria deixar sua cidade. Tomaram um ônibus. A conversa entre as duas era incessante. Assunto não lhes faltava. Nunes já havia estado em Belém outras vezes, mas também já havia algum tempo. Esta tranqüilizava a conterrânea, convencendo-a de que conhecia bem o roteiro das linhas de ônibus. Escurecera. E as duas ainda não haviam encontrado o ponto onde deveriam descer de retorno à nova hospedagem.
Aproximadamente às vinte e três horas e 20 minutos, o cobrador do ônibus informava às congressistas que haviam chegado ao terminal e dali o ônibus só sairia no dia seguinte. Souza começava a entrar em pânico. Nunes procurou mostrar naturalidade à companheira e pediu-lhe que fizesse o mesmo diante de quem quer que encontrassem pelo caminho. Chamaram o primeiro táxi que avistaram: pagariam a corrida ao chegar em casa. Era uma Brasília antiga, três portas. O olhar assustado de Souza percebeu logo um bandido em potencial naquele homem de aspecto rude e olhar maligno. Sentou-se ao lado dele, imaginando ser mais fácil saltar para o asfalto estando perto da porta. Nunes, como de costume, tudo fazia para infundir segurança, puxando conversa com o motorista, tentando descontrair o clima de pavor que os modos de Souza favoreciam.
O sangue voltou a circular normalmente nas veias de Souza assim que o motorista foi despachado. A residência, onde passariam o restante dos dias, era um sobradinho de alvenaria. A família toda dormia nos cômodos de cima, por onde se chegava através de uma pequena escada que antecedia um corredor estreito e escuro, finalizado por uma porta de grade que resguardava a privacidade dos hospedeiros. Estes cederam a sala de estar, no térreo, como dormitório para as visitantes. Além da sala de estar, a parte inferior da casa continha a sala de jantar, um outro banheiro, que ficava entre esta e a cozinha, e uma área de serviço separada por grades. Por conta da reforma na residência, havia uma pequena abertura nesse banheiro, que ficava exposta por situar-se bem no alto da parede.
Depois do primeiro cochilo, talvez duas da manhã, Nunes foi até o banheiro. Meia hora mais tarde, levantou novamente para urinar. Ao empurrar a porta do privativo, notou que a luz que deixara apagada estava acesa e que havia uma cadeira junto ao vaso, na direção da abertura na parede, cadeira que não estava lá antes. Voltou à sala, acordou cuidadosamente Souza e contou-lhe, assustada, a incômoda surpresa. No mesmo instante, esta, num acesso imediato de coragem, decidiu tirar tudo a limpo: chegando ao banheiro, abre completamente a porta, a luz dali clareia a escada, sobe correndo e desperta os donos da casa. Mas tudo isso foi apenas um ímpeto do pensamento. Vendo o pavor nos olhos de Nunes, Souza começou a tremer, literalmente. Encolheu-se na rede e pôs-se a rezar todas as rezas que sabia.
Sentindo o coração descontrolado, pediu que Nunes o pressionasse, por estar a ponto de vomitá-lo. Nunes, preocupada com a palpitação acelerada no peito da conterrânea, teve ânimo de pôr os pés no chão e dar dois passos, apanhando uma bíblia enorme que ficava numa mesinha entre a rede de Souza e sua cama, o sofá. Abriu-a e estendeu-a sobre o colo da outra. Não obstante o descontrole que a dominava, estando à beira de um colapso total, Souza ainda tentou imaginar como o bandido conseguira penetrar na parte superior e matar toda aquela família: podia ouvir bem os pingos de sangue gotejando lá fora, provavelmente escorrendo pela varanda de cima e caindo na base de concreto alajotado. Agradecia a Deus por cada minuto de desespero, por ainda estar viva. Perguntava-se a que horas o bandido invadiria a sala para terminar a matança, ao mesmo tempo que sua fé se agigantava e lhe dava esperança de que escapariam.
O sono traiçoeiro foi mais forte que todo aquele pânico, impedindo a vigília obrigatória. Dormiram.
Às sete horas, com a claridade vazando pela cortina fina que ocultava a vidraça, Souza despertou, mais apavorada ainda pelos arranhões na janela. Sacudiu Nunes, que dormia e, como ela, babava na outra beira da rede, para interpretar os ruídos. Esta sentou-se na rede, encarou a outra e exclamou entre dúvida e certeza: “Meu Deus, ainda estamos vivas!”.
Postas no lugar as idéias, perceberam que, se escaparam até ali, não tinham mais o que temer. Afastaram as cortinas e, vendo a luz do sol, encheram-se de ânimo e subiram aos saltos as escadas, atravessando às pressas o corredorzinho e forçando a porta, que não cedia. Esmurraram-na até que uma figura de cara inchada a abriu. Era a dona da casa, amuada por se ver despertada com toda aquela rudeza.
Após o relato da aflição na madrugada, a família constatou que, de fato, a casa fora invadida por alguém: havia pegadas de lama no corredorzinho e estavam faltando calçados e roupas que ficaram na área de serviço e mais alguns objetos da sala de jantar, inclusive um pequeno televisor e um rádio. Chovera durante a madrugada. A chuva era bem perceptível somente para quem dormia nos quartos de cima; quem dorme embaixo, quando está tudo fechado, apenas discerne um estalar cadenciado de algumas gotas.
As Paulas, uma de dezenove e outra de dezoito anos, não se dispuseram a passar nem mais uma noite em Belém. Nesse mesmo dia, tomaram o primeiro barquinho que apareceu rumo a Macapá, levando consigo o ganho de alguma experiência. Nunes partiu incomodada com a excessiva naturalidade com que os donos da casa se acomodaram aos fatos.
(Escrito em 2000)