DEU A LOUCA NO PLANETA

DEU A LOUCA NO PLANETA

Não sou de acordar cedo. É tão difícil arrancar-me do sono que preciso de um desses relógios despertadores que tocam várias vezes a intervalos quase imediatos.

Hoje, porém, acordei espontaneamente. Olhando o mostrador luminoso, vejo que já são sete e trinta. Minha mulher dorme a sono solto. Estremunhado vou à janela e constato que o céu está escuro, a lua minguante é um retalhinho de luz no horizonte cinzento e umas poucas estrelas piscam docemente. As aparências não condizem com o horário. Um friozinho de madrugada corta o ar.

Confiro de novo as horas no despertador: é bem capaz que as crianças tenham adiantado o relógio, que para isso não lhes falta imaginação. Para tirar a dúvida, comparo com o meu relógio de pulso e também com o de Gisele. Penso “que diabos está acontecendo!”

Saio do quarto e vou ligar o rádio na copa. “Sete horas, trinta e dois minutos e vinte e sete segundos” anuncia a voz do locutor. Esfregando os olhos, encaro outra vez a janela. Verifico que lá fora e plena madrugada, tipo cinco horas da manhã, um nadinha de claridade pintando no horizonte.

O rádio inicia a transmissão de um noticiário. Fico escutando, pois no final sempre falam da temperatura e do tempo. ”Agora informaremos as condições climáticas em todo o país. Uma frente fria vinda da Argentina provoca inversões na temperatura, há nebulosidade pela manhã. O sul está completamente nublado, com temperaturas máximas de 18 graus, no sudeste há nevoeiros, com temperatura estável; no norte nordeste o tempo é nublado com chuvas ocasionais”.

Desligo o rádio lembrando-me de que combinei como dona Rosinha, minha secretária para chegar mais cedo ao escritório. Tenho três audiências no fórum a partir de onze horas e uma pilha de processos sobre a mesa para rever. Gisele continua dormindo. Tomo meu banho e me visto às pressas, estranhando que ela não tenha se levantado para fazer o café e mandar as crianças para a escola. Aí me lembro de que os professores estão em greve e vai ver que Gisele resolveu não se preocupar comigo, pois de manhã mal engulo um cafezinho para uma boca de pito.

Desço para a garagem, onde encontro um vizinho que me cumprimenta e comenta ”que dia esquisito este, nem parece que amanheceu”! Eu concordo e digo que ouvi no rádio que isso é coisa da frente fria que sobe da Argentina. Trato de arrancar o carro, pois o trânsito, como sempre deve estar um horror e, se não me apresso, não acho vaga para estacionar.

Parece que todo mundo pôs o carro na rua, é bem capaz de já haver alguma greve de ônibus, pois nesse país, só se fala em greve, de professor, de caminhoneiro, de portuário, de médico. Deus nos livre se as mulheres resolvem fazer greve, deixando p’ra lá a lida da casa, as compras por fazer, as panelas vazias, as crianças sem cuidar e os maridos a ver navios... Quem sabe já está acontecendo, por isso Gisele dormia tão sossegada, que nem deu fé na minha saída... Mas não pode ser... Ontem mesmo ela preparou o suflê de minha preferência e me fez um chá para prevenir resfriados... Ela estava é mesmo cansada depois do amor que fizemos.

Num sinal, o passageiro do carro parado junto ao meu me diz, como se me conhecesse, ”olá, amigo, será que o sol apagou?” ”Sorrio amarelo e respondo “é, parece...” O sinal abre e todo mundo arranca dentro de um dia que teima em permanecer madrugada, apesar de já passar das oito horas. Aperto a tecla que liga o rádio e ele está mudo; então me lembro de que a geringonça não funciona há semanas e que não tive tempo para levar ao conserto.

Gasto dez minutos para encontrar uma vaga e, no escritório, já encontro dona Rosinha que mal responde ao meu “bom dia”. Vai logo perguntando, “Doutor Antônio, o que está acontecendo?” Respondo “sei lá, dizem que o sol rolou pro fim do mundo e eu acho que já foi tarde!”. Estou impaciente, não quero conversa e logo enfio os olhos nos processos que se acumularam sobre a mesa.

Dona Rosinha se afasta ressentida com meus modos. Não tenho tempo para explicar coisas que eu mesmo não posso entender. Nem se passam dez minutos um cliente liga, outro em seguida e ainda outro e todos só querem falar do dia esquisito que se esqueceu de amanhecer, pois ainda se veem estrelas no céu. Não demora, dona Rosinha entra espavorida contando que as rádios noticiam que o sol ainda brilha em lugares onde deveria ser noite, e que em outros o crepúsculo permanece como se fosse uma tela pintada no céu.

Levanto os olhos dos papeis, angustiado com tanta celeuma em torno de coisa que deve ser culpa da tal frente fria e da massa polar que, andando pelo espaço, perturbam o tempo e agora fundem a cabeça do povo. Fico olhando para dona Rosinha que treme os lábios e pisca seus olhos redondos, esperando uma das minhas cáusticas respostas. Limito-me a balançar a cabeça em silêncio.

Junto a papelada, já são dez e meia. Saio para ir ao fórum, pois quero chegar pontualmente às audiências. Pela janela verifico que o céu está como antes, com a diferença que pouco a pouco acumulam-se as nuvens pardas da poluição.

Tomo um taxi; (não quero perder a vaga no centro). O motorista, um senhor de cara simpática, talvez vá puxar conversa. Ajusto os óculos, abro uma revista jurídica e finjo ler. O cara não resiste e diz: “com licença, doutor, não sei se reparou que o dia está diferente, outro passageiro falou que o sol foi engolido por um buraco negro.” Fecho a revista, disfarço a irritação, respondo: “é verdade, o sol foi mesmo engolido por um buraco negro que vai engolir cada planeta, dizem que já engoliu Mercúrio e não demora a galáxia inteira vai para o beleleu.”

O homem empalidece, avança o sinal e quase bate num carrão. Faço de conta que não percebo e continuo dizendo que vai ser bom quando a terra passar para outro lado, pois, quem sabe, lá as coisas são diferentes e a gente possa viver melhor. Acho que consegui escandalizar o pobre homem de vez, porque ele não diz mais nada. Fica me olhando de soslaio, talvez pensando que sou um desses loucos que aceitam qualquer absurdo com a maior naturalidade.

Chegando ao fórum, afasto-me apressadamente, sem esperar o troco do valor pago pela corrida. Subo as escadas do fórum dando risada e, pela primeira vez neste dia maluco, sinto-me bem humorado, sem vontade de dizer um palavrão.

Lá dentro o que ouço é a mesma conversa; para alguns acrescento minha versão do buraco negro, tratando de refugiar-me na sala de audiências, onde os juízes só tratam de julgar processos e proferir sentenças.

Logo que posso escapo sozinho para evitar conversas; vou almoçar num restaurante próximo. O dia continua com seu jeito de madrugada; acho graça de estar almoçando quando a aparência do tempo e para café da manhã. Lembro-me de quando era criança, minha mãe me tirava da cama bem cedo para estudar, punha na mesa um mingau de fubá com queijo picado e canela e dizia que era comida boa para se comer bem cedinho, pois despertava o corpo e punha a cabeça em dia. Vou pensando em pedir a Gisele para qualquer dia fazer um mingau à moda da minha mãe, pois vai fazer bem às crianças e matar as minhas saudades.

Voltando ao escritório encontro um recado de dona Rosinha, explicando que ficou doente e foi para casa. Uma pena, pois eu já tinha a ideia de falar sobre o buraco negro só para ver seu espanto.

Atendo a dois ou três clientes que também querem comentar o tal fenômeno. Limito-me a ouvi-los, trato de levar o assunto para o lado profissional, com todo o formalismo. Ás cinco horas, tiro o carro da vaga e volto para casa, evitando a hora do rusch.

Encontro Gisele excitada com as novidades que durante o dia teve tempo de ouvir. Não dou a mínima atenção para a conversa, tenho um ataque de ranzinzice e mal termino de tomar o lanche, tiro da pasta os papeis que trouxe do escritório e vou digitá-los eu mesmo, pois não sei quando dona Rosinha vai voltar ao trabalho.

As crianças não querem saber de dormir. Se não fossem os relógios marcando as horas, pelas aparências, ainda poderia ser ontem, pois a nesguinha de lua está lá, como antes, no céu desbotado, pintado aqui e ali por umas estrelinhas mixas.

Noticiários contam que o que se julgava ser o choque dos ventos frios do Atlântico com o ar quente dos trópicos, ou a inversão da temperatura pela elevação do ar poluído, evidenciou-se como uma interrupção dos movimentos da Terra, fenômeno que cientistas e astrônomos já estavam estudando nos observatórios com seus instrumentos e computadores.

Os dias passam e a situação permanece a mesma. O país continua imerso na sua aparente madrugada, com variações em cada hemisfério. Em outros quadrantes do planeta o sol permanece imutável, a vegetação morre, as colheitas estão perdidas. Onde as temperaturas já eram baixas, essas caíram aos menores níveis. A evaporação dos rios e lagos se tornou desastrosa ou o aumento dos cursos d’agua causam enchentes. Nos oceanos modificam-se as feições das marés; cardumes de peixes boiam mortos. Há um êxodo inusitado de pássaros fugindo da calamidade, não se sabe para onde. O pânico transtorna as pessoas e uma onda de suicídios assola o planeta.

Proíbo que ouçam os noticiários. Já chega o falatório dos vizinhos e os comentários ouvidos onde quer que se vá. Gise le diz que emagreceu três quilos nesses poucos dias, coisa que não conseguia há meses de regime forçado. Respondo que, como dizia meu pai em sua sábia filosofia, “pour quelque chose malheur est bom”, e vai ver que seu metabolismo trocou de ideia com a Terra e resolveu se apressar. Gisele se zanga com o meu comentário, diz que não ligo a mínima para o cataclismo, que eu deveria conversar com as crianças e fazer parte da corrente de orações que se formou na vizinhança.

Perco a cabeça e brado que rezar nesta hora é apelação, pois os culpados de tudo são os próprios homens, com seus loucos experimentos, bombas, gazes venenosos, lixos radioativos e outros crimes ignóbeis e que, apesar da situação caótica, ainda existe quem dela tire proveito. Afirmo que a louca que deu no planeta já estava prevista nas Escrituras e nas encíclicas de Notradamus e, quando chegar a hora do Juízo Final, serei um daqueles que têm as menores contas a saldar com Deus. Gisele emburra e me deixa de lado. Vou jogar videogame com as crianças que é bem melhor que ouvir notícias que só excitam o terror.

Até que um dia, uma tênue claridade avança no horizonte e o sol desponta num fim de tarde. E o que antes parecia madrugada, vira dia claro, numa hora em que, em tempo normal, seria noite. O povo sai à rua, assiste, festeja, ri e chora olhando o céu. Mas, de repente, como surgiu, o sol se põe e, num outro curto espaço, volta a brilhar, como se o céu estivesse piscando. Dizem que a Terra se apressa para recuperar o tempo perdido. A velocidade cresce a cada instante e o que se sabe é que o planeta rola no vazio para a destruição final.

Ouve-se falar em catastróficas inundações, vulcões inativos voltam à atividade com força inaudita. A terra treme, geleiras remotas despedaçam-se nos oceanos, que avançam intempestivos sobre os continentes.

Pela primeira vez, sinto medo. Havia-me mantido escudado pelo meu humor cáustico, e os meus desconchavos nada eram que cortinas de fumaça com que eu tentara ocultar de mim mesmo a iniludível realidade, a verdade aterradora do planeta solto de seu eixo, desembestado pelo espaço, prestes a desmanchar-se numa avalanche de fogo e cinzas.

Silvos prolongados e outro ruído sincopado enchem meus ouvidos. Acho que soaram, afinal, as trombetas do Apocalipse. Trescala no ar um cheiro sufocante de coisa queimada. Ouço vozes confusas, alguém diz “são dez horas,(quem se lembraria de dizer as horas num momento como esse?) Continuam os silvos, alto e continuamente. Soa a voz de Gisele nervosa, urgente “corre Paulinho, olha, está queimando! Julio Cesar vá lá dentro chamar teu pai, depressa, ai, meu Deus, que desgraça...” De imediato ouve-se um ruído metálico de coisa caindo com estrondo.

Tento imaginar o que se passa. Ergo o braço para afastar a cortina da janela e ver lá fora, mas minha mão toca o vazio. Na volta, esbarro num corpo que se debruça sobre mim. Arregalo os olhos e vejo o rosto sorridente do Julio Cesar, “acorda, pai, a mãe está chamando...” Gisele entra em seguida, apressada, “levanta, homem, que nem num domingo teus clientes te perdoam... Um já deu um tiro na mulher e está no telefone te esperando.” Ainda estou tonto, azoado. ”Gisele o planeta não levou a breca?” “Qual planeta homem de Deus, acorda de vez, desliga o relógio que essa campainha me dá nos nervos. Vou voltar à cozinha, que os ovos e o bacon se queimaram e o Paulinho jogou tudo no chão.”

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 12/06/2014
Reeditado em 30/11/2019
Código do texto: T4842305
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