A garagem Capitulo 1

Lucas tinha acabado de chegar em casa com seu “novo” carro, um ford 78. Tinha comprado o veículo em um feirão de carros usados em Flores, cidade vizinha à Nova esperança, onde ele morava. Lucas estava muito feliz com seu carro e fez questão de colocá-lo com cuidado dentro da garagem de sua casa, que havia alugado há pouco mais de dois dias. Depois de uma dolorosa separação, sem filhos, Lucas resolveu retomar sua vida e seguir em frente.

“Tenho que tocar o barco!” -- Sempre dizia para seus amigos e colegas de serviço que trabalhavam com ele no Royale restaurante, um dos melhores de sua cidade.

Lucas era garçom e começava seu expediente de trabalho às três da tarde, acabando-o à uma da manhã. Depois disso, ele pegava sua bicicleta e ia para sua casa. Porém, agora, a situação era outra. Ele estava separado e a velha companheira magricela, que poucas vezes havia-o deixado na mão (Exceto por um pneu furado em um dia em que ele saíra de casa atrasado), havia sido substituída por um Ford Corcel 78 com bandas brancas e banco de couro. Seu sonho de criança estava realizado e ele não se arrependia nem um pouco por ter juntado cada centavo do seu salário como garçom para comprá-lo; e esse foi o principal motivo de sua separação, contando um outro motivo que levou as coisas ao verdadeiro extremo.

Lucas era uma pessoa que pouco se importava com os gastos de sua casa e suas faturas viviam quase sempre atrasadas. Os telefonemas cobrando contas que haviam vencido eram comuns e isso incomodava muito sua esposa. Tudo o que ele mais queria era guardar dinheiro para comprar o carro dos seus sonhos. Aquele carro que ele havia sonhado desde criança e que foi o maior causador de suas brigas com sua esposa. Era óbvio que Lucas ajudava nas despesas de casa, ma, como é de imaginar, quem pagava maior parte das faturas vencidas, que se empilhavam na caixa de correios todos os meses, era ela. Com seu emprego de doméstica, sua mulher conseguia o dinheiro necessário para suprir parte da renda da casa e as faturas que Lucas não pagava, inclusive muitas das faturas que eram de responsabilidade dele.

Em sua maioria, eram coisas que Lucas comprava para si, como ferramentas de mecânico. (Ele dizia que quando comprasse seu carro precisaria muito delas, então, ele já estava antecipando um pouco as coisas para evitar aborrecimentos depois). O problema maior disso tudo era que Lucas não assumia inteiramente as dividas que ele mesmo fazia, deixando para sua mulher arcar com quase todas as contas sozinha. (Exceto com a parte da comida) Coisa que ele fazia questão de ressaltar toda vez que brigava com ela pelo mesmo motivo.

– Você só pensa em guardar dinheiro para esse maldito carro que só existe em sua cabeça!

Gritava ela, inconformada em ver que mais um mês havia se passado e não havia sobrado nem um puto para eles tomarem um sorvete juntos.

A mulher de Lucas era bonita. Fazia o tipo recatada e usava vestido rendado um pouco justo na cintura, o que fazia muitos marmanjos virarem a cabeça quando ela passava, porém ela não dava atenção para nenhum deles, até ela perceber que havia se cansado de Lucas e, esse foi o inicio do fim de seu casamento.

Certo dia Lucas chegou em casa passado um pouco da uma manhã e percebeu que sua esposa havia deixado a porta da casa aberta. (A porta sempre era trancada quando ele saía, pois ela tinha muito medo que algum estranho entrasse na casa enquanto ela estava sozinha). Porém, naquele dia, a porta estava aberta.

Lucas entrou na casa e tudo estava em completo silêncio. Ele andou pé por pé procurando não fazer barulho com seu sapato de sola dura. Afinal, ele não queria acordar sua esposa, ela podia estar dormindo e muito cansada, pois não era normal que ela esquecesse de trancar a porta da casa. Lucas largou sua sacola com o uniforme do restaurante encima do sofá da sala e caminhou até o quarto, devagar, compassado e... com um estranho medo.

“Medo do que? Pensava ele. De encontrar minha mulher dormindo na cama?” -- Ele sorriu de sua própria idiotice.

Lucas chegou na porta do quarto e viu que estava fechada, o que também era muito estranho. Ela sempre deixava a porta aberta para ele entrar sem fazer barulhos, pois a porta rangia como louca há quase um mês e ele ainda não havia dado jeito nisso. Hesitando, ele colocou sua orelha contra a madeira fria da porta e ouviu alguns ruídos.

Sim! Era ruídos, estralos e...

– Minha esposa, gemendo!

Lucas disse isso e abriu a porta que estava apenas encostada e enxergou o que nunca pensou ver em toda a sua vida. Ela estava com outro homem, cavalgando encima dele e se divertindo muito com tudo aquilo, gemendo de prazer. Lucas enlouqueceu com a cena, porém sentiu-se atônito. Ele não sabia o que fazer e percebeu que ela ainda não o havia visto. Quando ela olhou para trás e viu seu rosto cansado do trabalho e sem reação, soltou um sorriso irônico, enquanto pulava encima do homem do qual ele nem olhara o rosto.

– O que foi Lucas? Agora eu achei um homem de verdade. Se você quiser pode se juntar a nós, eu dei...

Ele não esperou ela terminar a frase. Era muita porquice para sua cabeça e nunca imaginou que sua esposa fosse uma porca, como ele próprio havia acabado de testemunhar. Voltou para sua casa só no outro dia para buscar suas roupas e levar alguns de seus pertences para a casa de seus pais, até achar alguma casa com garagem para alugar.

“Com garagem!” -- Era sua exigência.

Lucas já tinha em mente comprar seu tão sonhado carro e nunca pensou que fosse achá-lo tão perto. Na cidade de Dourados, vizinha à sua cidade, Flores.

Depois da traição de sua mulher, ele tentou retomar sua vida. Nunca imaginou que a pessoa com quem ele viveu quase cinco anos pudesse fazer o que fez com tanta frieza.

“E ainda me convidar para fazer uma... suruba? Isso já é demais!” – Dizia ele, toda vez que pensava no assunto.

Passados alguns dias da separação, ela veio até a casa dos pais dele, onde ele ficou hospedado por um tempo, até arranjar um lugar para ficar, para conversar com ele e pedir perdão pelo que havia feito. Ela disse que estava de cabeça quente e que se Lucas voltasse para ela, ela nunca mais faria isso com ele. Ela ainda disse que percebeu como a solidão era ruim e que queria Lucas de volta, mesmo do jeito que ele era. Lucas não aceitou e mandou ela voltar para os braços do seu amante – que ele descobriu ser um de seus colegas de serviço – ou arranjar outro homem para a sua vida.

Mas, ela não era um mulher ruim. Na verdade, Lucas que era inconsequente. Ele deixava de pagar as sua próprias contas para guardar todo seu dinheiro para comprar um carro, que ele nem sabia se iria encontrar do jeito que ele realmente queria. Claro que, ela não tinha razão de fazer o que fez, mas Lucas fez por merecer e cada um reage conforme seu caráter e isso ele pensou que ela tinha de sobra; e o tinha, só que com ele, foi vencida pelo cansaço.

Seu colega pediu demissão no outro dia e ele nunca mais o viu na cidade. Seus outros colegas não souberam da história, mas achavam que o tal rapaz havia pedido demissão porque morria de amores por uma argentina que havia vindo morar na cidade e tinha-o convidado para ir embora para seu país. Lucas viu o quanto eles estavam desinformados e dava graças a Deus por isso.

Lucas não ficou com raiva de seu colega, pois sabia que ele poderia ter sido fisgado por sua mulher, afinal ela era linda e seu jeito recatado mesclado ao seu charme enlouquecedor devia tê-lo tirado do sério.

Depois disso, sua mulher não tornou a aparecer, o seu colega sumiu do mapa de vez e, exatamente há dois dias atrás Lucas tinha conseguido alugar uma casa com uma ampla garagem para colocar seu tão sonhado Ford que comprara. Um dia antes do tal aluguel ele já havia comprado o carro e após a compra ainda havia sobrado dinheiro para encher o tanque de sua máquina. Lucas havia comprado seu carro, alugado uma boa casa na cidade em que sempre morou e agora estava solteiro. Foi tudo muito doído, mas, agora, estava livre e desimpedido para fazer o que quisesse.

Quando Lucas colocou seu carro dentro da garagem ele pôde perceber que ela era grande e espaçosa e dava para montar até uma pequena oficina dentro dela. Lucas estava muito feliz, afinal a casa que havia alugado até que era bonita, muito antiga, mas bonita.

Um velho que morava ali há mais de trinta anos dissera a ele que ali havia morado uma família de irlandeses há pouco mais de vinte anos. Por motivos até hoje misteriosos, em um belo dia de sol eles pegaram suas malas e um caminhão de mudanças e foram embora e ninguém nunca mais ouviu falar deles.

– Esses moradores antigos contam cada história. -- Dizia Lucas, bem humorado, enquanto enfiava seu carro dentro da garagem.

“Dizem até que quando eles vieram para cá eram em cinco. O pai, a mãe, um filho, uma filha e uma outra menina que me parecia ser filha adotiva. Quando foram embora, disseram ter visto só quatro dentro do caminhão de mudança. A menina adotiva não estava lá, só a outra. Ninguém sabe se ela foi primeiro ou se... Bem... ”

Lucas havia escutado o senhor Herb falar isso assim que chegara para olhar a casa há exatamente dois dias atrás.

Seu Herb era um dos moradores mais antigos daquele bairro e viu quando haviam construído aquela velha casa. Também conheceu os irlandeses que ali moraram há mais de vinte anos e alguns outros que habitaram aquele lugar, mas os irlandeses nunca lhe saíram da cabeça.

“Depois que os irlandeses saíram da casa, ninguém mais conseguiu morar nela por mais de um mês. Era um mês de aluguel e iam embora. Depois dos irlandeses, mais ninguém morou por muito tempo nesse lugar.”

Esse era seu Herb, um velho de olhar simpático e com uma pequena curvatura nas costas que, com a luz do sol da manhã, fazia ele parecer bizarramente com o corcunda de Notre Dame.

Lucas ouviu as histórias do senhor Herb, mas não deu muita atenção para “histórias de velho” como ele costumava chamar esse tipo de papo furado.

Dois dias depois, ele estava encostando seu Ford e já estava pronto para fazer as primeiras revisões nele. E, tudo isso seria ali, dentro de sua nova garagem.

Quando o dia amanheceu, Lucas já havia preparado seu café e o tomava calmamente enquanto revirava em sua caixa de ferramentas procurando por uma chave para poder afrouxar as rodas do corcel e dar uma boa lixada no cubo de roda que parecia estar bem oxidado. Lucas havia escutado um barulho contínuo na roda e deduziu que podia ser o cubo de roda enferrujado e iria dar uma conferida para ter absoluta certeza disso.

Lucas virou metade da xícara de café na boca, logo depois, pegou a chave e começou a afrouxar as rodas do carro. Lucas assoviava e, com prazer, tirava um por um dos parafusos e colocava-os todos juntos em um lugar que ele pelo menos pudesse esbarrar neles para não perdê-los.

“Dizem até que, quando eles vieram para cá eram em cinco. O pai, a mãe, um filho, uma filha e uma outra menina que me parecia ser filha adotiva. Quando foram embora, os que viram disseram ter visto só quatro dentro do caminhão de mudança. A menina adotiva não estava lá, só a outra. Ninguém sabe se ela foi primeiro ou se... Bem...”

– Velho besta! – Murmurou Lucas, pensando nas palavras que Herb dissera antes dele alugar a casa. Nem ele mesmo entendeu porque aquelas palavras lhe vieram a cabeça e completou: – Está com o pé na cova e ainda vive inventando histórias.

Lucas riu e limpou suas mãos em um pano velho e sujo que havia no porta-malas do corcel, após já ter afrouxado duas rodas do veículo.

Sem muita pressa, ele foi até a sala e em poucos minutos voltou para o que estava fazendo. Ele tinha mais duas rodas para afrouxar e pelo que viu na primeira tentativa frustrada de desenroscar os parafusos, não era só o cubo de roda que estava oxidado. Assoviando, Lucas levantou-se novamente e dirigiu-se até a pequena estante onde ele iria guardar todos os seus cacarecos de agora em diante. A estante já devia fazer parte daquela casa há um bocado de tempo. Era um móvel antiquado, feito com madeira de lei e talhada detalhadamente à mão, com desenhos de bois puxando pesados carros de madeira com grandes rodas barulhentas. Inevitavelmente, Lucas se arrepiava só de olhar para aquela estante que enfeitava aquela garagem um tanto suja e mal pintada.

Lucas estava com a ideia de fazer uma boa faxina e logo depois comprar um boa tinta branca e passar nas paredes para deixá-la apta a receber sua joia de metal. Ele sabia que a grana estava curta e, de inicio, iria dar só para fazer a faxina. Alguns desinfetantes não custavam tão caro e um litro dava para fazer toda a limpeza. Já a tinta custava e, ele pretendia dar uma três demãos para que pudesse fazer um bom trabalho. Afinal, aquele era seu novo lar e, sua primeira e nova garagem pra carros.

– E nada de acreditar em histórias de velho. – Disse Lucas para si mesmo, rindo ao mesmo tempo do que havia dito.

Lucas deu a volta no carro com o desengripante na mão e acocorou-se ao lado da roda dianteira, flexionando o macaco com destreza e aplicando o desengripante, enquanto embutia a chave de roda no parafuso, usando de toda a sua força, desenroscando-o logo após.

– Droga! Isso está apertado! – Murmurava Lucas, sentindo-se um pouco irritado devido à força que estava desempenhando.

Ele dava solavancos com ambas as mãos sobre a chave de rodas, enquanto ela desenroscava o parafuso, pouco a pouco, graças à ação do desengripante. Quando o parafuso desenroscou-se, fez um barulho ensurdecedor de ferro enferrujado que deixou os ouvidos de Lucas zunindo por alguns minutos. Mas, junto com o barulho que o parafuso havia feito, Lucas percebeu ter ouvido algo mais.

Sim! Ele havia ouvido algo mais e...

– Nãããããoooooo!!!!

Alguém gritou e isso deixou Lucas muito assustado, seu coração estava aos pulos e sua respiração chegou a ficar ofegante, muito mais do susto do que do esforço que havia feito.

– O que foi isso? – Perguntou a si mesmo.

Em um instante, o silêncio voltou a reinar e, tudo o que ele pôde ouvir foi o som metálico da chave de rodas caindo no chão da garagem. Lucas deu um pulo e colocou a mão sobre seu peito e as palavras do velho invadiram seus pensamentos mais uma vez:

“Depois que os irlandeses saíram da casa, ninguém mais conseguiu morar nela por mais de um mês. Era um mês de aluguel e iam embora. Depois dos irlandeses, mais ninguém morou por muito tempo nesse lugar.”

– Droga! Esse velho de novo! Por que estou pensando nele? – Resmungou Lucas, passando a mão sobre a testa, limpando o suor que escorria pelo seu rosto. Ainda era inverno, mas Lucas ainda suava muito mesmo nesse época do ano, principalmente, quando estava em atividade.

– Deve ter sido ilusão. – Dizia ele, tentando acalmar sua mente. – A chave caiu e ecoou nas paredes da garagem. Foi só isso!

Lucas sorriu juntando a chave de rodas que estava no chão, parecendo morta brilhando sob a luz da lâmpada fluorescente. Lucas deu um outro sorriso, dessa vez, mais calmo, fazendo com que seu ceticismo o confortasse e devolvesse a sua paz, novamente.

Não demorou muito para ele terminar de tirar as rodas de seu carro, lixar os cubos e recolocá-las no lugar. Foi pouco mais de meia hora para toda a mão de obra ser feita e ele não ouviu qualquer ruído que não fosse o de suas ferramentas depois disso. Após tudo pronto, Lucas guardou a chave de rodas e algumas outras ferramentas que havia usado dentro da pesada caixa de ferro e colocou-a na velha estante de madeira. Logo após, ele dirigiu-se ao banheiro para tomar uma bela ducha e sentir-se limpo outra vez.

Após o banho, Lucas dirigiu-se até seu “novo” quarto. O cômodo era espaçoso e possuía uma grande e confortável cama de casal, com um macio colchão de molas. Lucas deitou-se no colchão, esticou as pernas o quanto pôde e fitou o teto por alguns instantes, satisfeito. A madeira do teto estava com alguns bolores abaixo da tinta velha e descascada do forro e os cupins se aglomeravam por dentro da madeira, como formigas dentro de um formigueiro. As fagulhas de madeira caíam a todo momento no canto do quarto e formavam um aglomerado de madeira roída por cupins, mas Lucas não ligava.

Naquele instante, pensou em sua vida, em tudo o que havia acontecido e o que estava acontecendo. Sua separação, sua saída de casa, a compra de seu tão sonhado carro e... a traição de sua mulher. Naquele momento, Lucas tentou mudar o rumo de seus pensamentos; não queria lembrar-se da cena que vira naquela noite.

“Vai! Vai! Vai!”

– Merda! -- Murmurou ele e esmurrou a cabeceira da cama, levantando-se imediatamente e saindo do quarto em direção a cozinha.

– Preciso fazer umas compras. – Disse ele, ao abrir a velha geladeira e deparar-se com ela vazia, enquanto sua barriga se encontrava, também, na mesma situação.

Lucas dirigiu-se para a garagem e parou ao lado da porta de seu carro, tirou as chaves do bolso e enfiou na maçaneta, dizendo:

– Vamos dar uma voltinha, minha jóia? Iremos até o centro da cidade comprar algumas coisas que faltam e aproveitarei para comprar uma boa cera de polimento para você.

Lucas riu e entrou no carro, sua risada parecia com o riso de um lunático alienado. Dentro do carro, ele admirava cada pedacinho do estofado, dos bancos, do painel e cada fissura das portas. Ele passava as mãos pelo volante, alisando-o como se fosse sua mulher (Coisa que com sua mulher ele fazia muito pouco). Ele olhava atentamente para o para-brisa e via colado no canto do vidro o adesivo original da época em que havia sido lançado. Lucas estava satisfeito com tudo o que estava acontecendo em sua vida e tinha a sensação de que as coisas melhorariam cada vez mais.

Com um pouco de esforço, ele faria algumas horas a mais em seu serviço e logo poderia concorrer ao cargo de chefe de seu setor, pois o antigo chefe havia se demitido e ele estava dando graças a Deus por isso ter acontecido, por dois motivos: Primeiro, ele era um velho chato e beberrão que gostava de dar broncas nas pessoas com toda sua estupidez e falta de caráter e segundo, Lucas queria seu cargo e, como era um dos garçons mais antigos, achava que tinha muitas chances de conseguir ser promovido.

Depois que Lucas admirou o quanto pôde o interior de sua máquina, passou a mão nas chaves e colocou-as na ignição, virando-a logo em seguida. Na primeira tentativa, o carro não pegou e Lucas murmurou um nome feio. Na segunda tentativa ele até virou o arranque, porém faltou força para botar em funcionamento seu charmoso corcel. Indignado, Lucas virou pela terceira vez e o carro deu sinal de partida e ouviu um barulho rouco sair do motor, como se a descarga estivesse furada e aquele grito assustou-lhe outra vez:

– NÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!

Lucas deu um pulo no banco e o carro pegou. Seu coração foi a quase duzentos batimentos por minuto e o grito havia ficado em sua cabeça. Era o mesmo grito que ouvira antes. A porta da garagem estava aberta e Lucas engatou a ré para sair. Um estralo foi ouvido na caixa de transmissão e ele pisou levemente no acelerador. A ré não havia engatado. Engatou novamente, preocupado se fosse algum problema mecânico sério em seu carro, olhou pelo retrovisor e depois para a sua frente, enquanto o carro saia para fora da garagem, vagarosamente. O espaço foi abrindo-se à maneira que o carro ia saindo para a rua. E, no momento que Lucas fitou os olhos na parede da garagem, ao lado da velha estante de madeira, viu alguém. Sim! Uma pessoa! Mais precisamente uma... menina. E, lá estava ela, branca como uma cera.

Os olhos de Lucas arregalaram-se e suas pupilas dilataram-se para ter certeza do que via. Ela era loira, com a pele muito clara e os olhos muito azuis. Tinha uma aparência triste e parecia que havia sido abandonada há muito tempo. Suas roupas estavam sujas de terra. Seu rosto bonito, suas formas delicadas e sua pele clara fizeram Lucas lembrar da filha que sempre quis ter e que, se não fosse a separação, teria tido, pois sua esposa possuía os mesmos traços que a menina.

Por um instante ele suspirou profundamente, porém o susto ainda não havia passado. Seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam, como bambu em vendaval. O carro se afastava lentamente para a rua e a menina ainda o fitava atentamente. Seus olhos pareciam pedir ajuda ou, atenção, carinho ou, talvez, amor. Ela era tudo, menos má. Mas, mesmo assim, Lucas havia se assustado e esse susto foi o bastante para ele ter pisado mais fundo no acelerador, fazendo o carro se chocar contra o portão do pátio que ainda estava fechado. O portão caiu no chão, a traseira de seu carro amassou de ponta a ponta e quando olhou novamente para o interior da garagem, a menina havia sumido.

– Diabos! – Gritou ele. – O que foi que fiz?!

Lucas esmurrava o volante, inconformado, enquanto o velho Herb cruzava a rua até sua casa para ver o que havia acontecido.

– O que aconteceu, meu filho? – Gritou o velho, entrando por onde o portão estava minutos atrás.

Lucas passou a mão pela cabeça, olhando para o velho que estava parado ao lado de seu carro e disse:

– Olha a merda que eu fiz!

Herb sorriu, dizendo:

– Isso acontece com os melhores motoristas, meu filho. Certa vez eu tive um Lada e, isso a muitos anos atrás, aquele carro não havia nem sido lançado no Brasil, ainda. Foi um amigo meu que trabalhava com automóveis que me trouxe um exemplar da Rússia. Lembro-me até o ano dele. Um Lada Vazturbo's 1983. “Lembro-me que o sol despontava numa manhã florida, quando fiz o mesmo que você fez agora. Fui sair de ré com meu Lada que ainda cheirava a novo e, quando cheguei na calçada de minha casa, olhei para os dois lados da rua e não vi nada, então debreei engatei a ré rapidamente e entrei na rua. Porém, quando olhei para o lado, enxerguei uma sombra se aproximando e eu fui lançado na calçada. Isso mesmo meu filho! Na calçada.

O velho arregalava os olhos enquanto falava.

– E o que aconteceu? – Perguntou Lucas, fingindo demonstrar interesse na história de Herb.

– Um caminhão bateu na traseira do meu carro. O impacto foi tão forte que a porta se abriu e me jogou na calçada e foi o que me salvou. Se eu tivesse ficado dentro do carro, não sei se estaria vivo. Depois do acontecido, descobri que o caminhão estava sem freios e arrastou meu Lada uns duzentos metros até ele capotar e ir parar debaixo do para-choque do caminhão.

O velho tossiu e Lucas respondeu:

– Bem, acho que essa sua história serve de consolo para mim.

O velho sorriu franzindo a pele e mostrando sua dentadura amarela.

– Realmente! Meu carro deu perda total e demorei até conseguir outro. Aqueles modelos eram caros na época. Fui ter outro quase dez anos depois, mas ai ele já estavam sendo importados para o Brasil. Sinta-se feliz que o portão te segurou e você não bateu em ninguém ou ninguém bateu em você.

O velho sorriu, novamente.

– Tive sorte, então. – Disse Lucas, cabisbaixo. – Só terei que arrumar essa lataria.

– Não foi grande coisa. – Respondeu o velho analisando o estrago. – Um bom chapeador conserta isso em dois dias.

O velho sorriu, depois pôs os braços sobre a porta do carro de Lucas e indagou:

– Mas, me diga. O que lhe tirou a atenção? Vi de minha casa quando você estava saindo da garagem e de repente acelerou o carro como se estivesse bêbado.

Lucas fechou a cara e disse, imponente:

– Quer dizer que o senhor fica cuidando de tudo o que acontece na rua?

Herb sorriu, mostrando mais uma vez seus dentes cariados.

– Ora, meu filho. Eu moro aqui há mais de trinta anos e sei de tudo o que acontece nesse lugar. Sei que você não fez isso de propósito ou por barbeiragem.

O velho afastou-se da janela do carro, dizendo:

– Outros já fizeram coisa pior. Sinta-se feliz por ter sido só isso com você.

Lucas ficou abismado enquanto o velho virava as costas de volta para a sua casa.

O que o velho estaria escondendo? Será que ele sabia o que ele havia visto? Lucas viu quando ele chegou no portão de sua casa e enrolou um palheiro com fumo de corda e entrou dentro de sua casa soltando fumaça pelas ventas.

A menina estava em sua cabeça. Lucas olhou atentamente para a garagem, porém nada mais viu, somente a parede mal pintada e a velha estante descascada. A menina havia desaparecido.

– Isso é stress. – Resmungou ele. – Preciso de umas férias.

Um pensamento lhe abateu subitamente e ele murmurou.

– Não! Agora que tenho a chance de conseguir o cargo que quero. Eu ...

Sua cabeça estava doendo e seus pensamentos iam e vinham desconexos em sua mente embaralhada. Por um instante ele sentiu um arrepio lhe cruzar a espinha e, finalmente, desceu do carro para ver o estrago com seus olhos.

Lucas dirigiu-se até a traseira do corcel e viu que não havia acontecido nada muito grave, somente ia ter que desembolsar um bom dinheiro para consertar, coisa que no momento, ele não tinha.

– Maldita menina! – Gritou ele, irado. – Onde está você fruto da minha imaginação e do meu stress?

O velho já estava dentro de sua casa, encostando na janela de sua casa com um irônico sorriso no rosto, enquanto baforava, tranquilamente, seu cigarro de palha.

– Nada que um bom serviço não resolva, meu filho!

Gritou ele da janela, soltando mais uma nuvem de fumaça fedorenta de sua boca.

– É isso que vou fazer! – Gritou Lucas de volta, inconformado.

O velho deu uma risadinha e respondeu:

– Cuidado para não fazer isso outra vez, garoto. Coisas estranhas acontecem quando estamos muito nervosos.

Lucas deu de ombros e entrou novamente em seu carro, batendo a porta com força. A porta fez um PLAFT surdo que foi ouvido pelo velho no outro lado da rua. Herb deu mais uma baforada em seu palheiro e saiu da janela balançando a cabeça de um lado para o outro.

Lucas teve que engatar a primeira marcha e depois a ré, novamente, a primeira marcha e depois a ré, e de novo e de novo, até conseguir sair daquele buraco onde havia se enfiado. De certa forma, ele já tinha até desistido de ir fazer suas compras, porém algo o impulsionava a ficar um pouco longe daquela casa. Então, ele decidiu que iria até o supermercado nem que fosse à pé.

Quando Lucas estava de volta, uma hora depois de ter saído, o velho Herb saiu pela porta de sua casa e cruzou a rua em direção a residência dele.

Lucas entrou na garagem, com a traseira de seu carro amassada e desligou o motor. O velho entrou antes mesmo que ele saísse de seu carro. Herb abordou Lucas quando ele botou o primeiro pé na garagem.

– Belo amassado, meu filho.

O velho soltou um sorriso.

– O senhor precisa de alguma coisa? – Perguntou Lucas, achando a repentina visita do velho muito estranha.

Herb o encarou com firmeza e por um instante seus olhos se petrificaram como se tivesse sido amaldiçoado por uma Medusa. Sem hesitar, o velho lhe falou:

– Meu filho, por acaso existe algum motivo especial para você ter batido o seu carro, hoje?

Lucas demonstrou não haver entendido.

– Do que o senhor está falando? – Indagou ele.

– Estou falando se você viu alguma coisa que lhe atormentou e por esse motivo bateu o seu carro contra o portão.

Lucas irritou-se com a atitude do velho e respondeu:

– Olha aqui! O que o senhor está querendo dizer com isso?! O senhor está pensando que eu estou ficando louco?

Herb o encarou outra vez e depois respondeu:

– Não é isso que estou falando. Só vim até aqui lhe perguntar se existiu algum motivo para sua distração.

Lucas deu de ombros e respondeu:

– Senhor Herb. Desde que eu me mudei o senhor aparentou ser um vizinho excepcional, mas agora, agindo como o senhor está agindo, acho que perdeu alguns pontos comigo.

O velho deu de ombros e caminhou em direção a porta da garagem, pronto para ir embora. Lucas já estava fora de seu carro e, sem hesitar, o velho lhe apontou o dedo, dizendo:

– Só vou lhe dizer uma coisa: Não acredite em nada que ela disser. Nada! Tudo o que você ver aqui. Não acredite em nada disso. Você até pode acreditar no que vê, mas não acredite no que escutar.

– Do que o senhor está falando? – Indagou Lucas, transtornado.

– Você sabe do que eu estou falando. Não acredite em nada. Em nada!

O velho rosnou como um cão e saiu.

Por um instante, Lucas sentiu medo. Como o velho sabia da visão que ele teve?

– Doente mental... – Murmurou Lucas tirando as compras do carro e levando-as para dentro de casa enquanto o carro aguardava silencioso no quintal.

Quando Lucas voltou para pegar o resto das compras em seu carro, ouviu um gemido vindo do mesmo lugar onde tinha visto aquela estranha menina. Lucas ficou com medo e olhou rapidamente para a parede suja e descascada da garagem.

Não havia nada ali.

Lucas sentiu um medo estarrecedor e, por um instante, ele não conseguiu se mexer. O gemido era semelhante ao canto de uma coruja, no meio da madrugada. Era algo triste e sombrio. Ele não tinha palavras para explicar a sensação que sentiu naquele momento. Com receio, Lucas retirou os outros pacotes que estavam dentro do carro e caminhou até a entrada de sua casa. (A garagem e a casa eram ambas divididas somente por uma parede e para entrar na casa, Lucas, obrigatoriamente, tinha que passar pela garagem para depois entrar na porta que dava para a sala de sua casa que ficava ao lado da porta da garagem)

Olhando de um lado para o outro, ele entrou na porta de sua casa e largou os outros pacotes no sofá da sala, falando, indignado, com seu próprio medo:

– Eu não acredito que estou com medo de algo que não existe! Lucas! Ponha de uma vez por todas em sua cabeça que o stress pode estar lhe causando isso. Droga! Deve ser meu emprego ou reações psicológicas da minha recente separação.

Por um instante, Lucas sentiu que havia achado todas as respostas para os seus problemas. Na verdade, ele estava tentando enganar a si mesmo dizendo que tudo isso poderia ser causado pela separação que teve recentemente, mas ele sabia que ninguém no mundo teria ficado mais feliz por ter se separado do que ele. Afinal, ela o traiu com um colega de trabalho e, além disso, lhe convidou para uma suruba. Além do mais, ele já estava de saco cheio de todas as ordens dela.

"Amor, faz isso, amor, faz aquilo. Você não ajuda em nada nessa casa, eu estou de saco cheio de sua vadiagem, você não coloca comida dentro de casa só pensa nesse maldito carro que nem existe. Onde você anda com a cabeça, na lua?!?!??!?!?!?!" Etc, etc, etc...

Na verdade, Lucas estava dando graças a Deus que estava morando sozinho, tinha comprado seu tão sonhado carro e agora beirava uma possível promoção em seu trabalho. A vida não podia estar melhor para ele. O que ele queria mais? É claro que o stress devido ao trabalho era estarrecedor. Mas, isso só se dava nos finais de semana ou em feriados, quando a cidade ficava movimentada e os restaurantes lotavam de gente desocupada, que só queria encher o bucho em uma noite de sábado chuvosa. A mais pura verdade é que, ele não tinha do que reclamar e muito menos achar que estava estressado de tanto trabalhar ou, então, dizer que isso era culpa da separação com sua esposa, que trepou com seu colega de serviço. No entanto, isso não era o bastante para levá-lo a um estado onde ele pudesse estar vendo e ouvindo coisas que não existem de fato, ou criando fantasmas imaginários dentro de sua cabeça. E isso era o que mais o intrigava. Se a causa não era essa? O que era então?

“Não seriam essas vozes e aparições reais, meu caro Lucas?”

Disse uma voz que saiu de dentro da cabeça dele.

“Pensou nessa possibilidade, Lucas. Meu filho!”

A sua voz interior falou-lhe com a voz do velho Herb e Lucas teve que ter autocontrole para não se auto flagelar de raiva. Mais uma coisa que ele havia aprendido em sua época de casado. Época em que ele devia ter muito autocontrole para poder manter seu casamento nos trilhos, devido as justas e diárias reclamações de sua esposa quanto às suas atitudes dentro de casa.

Lucas caminhou pé por pé até a garagem e deu a volta em seu carro, analisando atentamente aquele tenebroso amassado na lataria.

– Droga! – Murmurou ele. – Como não vi aquele maldito portão? Eu sou um tolo!

Lucas estava indignado e pensar na hipótese que poderia estar ficando louco ou coisa assim o deixava mais indignado ainda.

Por um instante, as palavras do velho Herb vieram novamente em sua cabeça.

“Meu filho, só vou lhe dizer uma coisa: Não acredite em nada que ela disser. Nada! Tudo o que você ver aqui. Não acredite em nada disso. Você até pode acreditar no que vê, mas não acredite no que escutar.”

– Do que aquele velho estava falando? – Perguntou-se, aborrecido.

Lucas passava a mão por cima do amassado do carro quando ouviu uma voz que lhe disse:

– Desculpa.

Lucas deu um pulo onde estava, assustado. Tão assustado quanto um cão, em um dia de réveillon, à meia noite, quando começa a queima de fogos de artificio saudando o novo ano que está entrando.

– Quem está ai? – Perguntou ele, petrificado de medo.

Ele imaginava que podia ser qualquer pessoa e não havia motivos para estar com tanto medo como estava. O problema era que, essa voz parecia ter saído de qualquer criatura, menos de um ser humano da terra.

– Quem está ai?! – Perguntou Lucas, agora com as mãos tremendo, como um bêbado em dois dias de abstinência ao álcool.

– Oi.

Respondeu uma voz feminina, muito aguda. Parecia muito com a voz de uma criança e os ouvidos de Lucas tinham certeza de que era de uma criança.

E, Lucas percebeu que, realmente, era uma menina que falava. Uma menina que podia ser de qualquer lugar, menos da terra. A voz parecia distante. Era como se ela falasse dentro de uma lata, mas era bem audível aos ouvidos dele.

Lucas olhou de um lado ao outro da garagem, sem enxergar nada que pudesse comprovar que aquela voz não existia somente em sua cabeça.

“Não acredite em nada que ela disser. Nada!”

A voz de Herb outra vez.

– Velho maldito. – Murmurou Lucas. – O que ele estava querendo dizer com isso?

Os olhos de Lucas circuncidavam a garagem, como duas bolas de gude.

– Moço...

Disse a voz, novamente e, Lucas abateu-se em um profundo pânico que quase chegou a perder o ar. Quando virou seus olhos, novamente, para a parede suja e descascada, ao lado da estante velha e empoeirada, surgiu a imagem de uma menina. Ela o olhava atentamente. Ela era loira, tinha os olhos verdes com mechas azuis perto da pupila e não parecia ter mais de cinco anos. Lucas olhava atentamente, atônito e com o corpo duro como uma rocha. Seus olhos marejaram de medo e ele teve que limpar os olhos com as mãos para saber se era real o que estava vendo.

– Oi. – Disse a menina, balançando a boneca de um lado ao outro.

– O... O... i... – Disse Lucas, gaguejando.

– O senhor parece ser um bom homem. – Disse ela, em um tom de voz terno.

Lucas não sabia o que dizer. Ele estava de frente para algo que havia aparecido em sua frente. Aquela menina não havia saído de nenhum lugar, pois ele estava enxergando a garagem com um olhar amplo e distanciado. Ela não havia corrido até ali e, simplesmente, se levantado e dito: “Oi, moço. Está me vendo aqui?!” Não! De forma alguma. Aquela menina tinha aparecido em sua frente, como a fumaça de um cigarro aparece depois que o fumante a expele de seu pulmão. Lucas pôde ver que se tratava da mesma menina que fizera ele bater seu carro antes. De seus cabelos loiros, caiam grãos de terra vermelha. Era algo completamente surreal aos olhos incrédulos de Lucas. Petrificado de medo, ele arriscou uma pergunta para a menina que ele ainda julgava ser fruto de sua mente perturbada.

– Que... quem é... vo... você?

A menina sorriu como se estivesse achando engraçada a reação de Lucas.

– Meu nome é Clarita. – Disse ela, tranquilamente. E o seu?

Por um instante, Lucas quis sorrir, mas algo dentro dele não deixava.

“Deve ser o medo.” – Pensou ele, com os olhos esbugalhados e com as pernas tremendo.

– Eu... me cha-cha-mo, Lu-Lu-cas. – Respondeu ele, gaguejando.

A menina sorriu com generosidade, mas apesar do sorriso, Lucas percebeu que o seu olhar era tristonho e cabisbaixo.

– Lindo nome. – Disse ela.

Por um instante, Lucas começou a sentir menos medo e arriscou um passo em sua aproximação. Sem hesitar, a menina falou com aspereza:

– Não se aproxime, por favor!

Lucas parou onde estava e não se mexeu até ela voltar a falar, novamente.

– Não se aproxime de mim!

– Por quê? – Perguntou Lucas, sem entender a reação da menina.

– É perigoso. Eu sou perigosa e não quero que você sofra por minha periculosidade.

– Por que você é perigosa? – Perguntou Lucas, demonstrando menos medo, mas obedecendo a ordem dela.

– Não sei se você irá entender.

Ela abaixou a cabeça ao dizer isso.

– O que é que há, menina? – Perguntou ele, passando a mão pelos olhos, novamente.

Ela abaixou a cabeça e, logo depois, ergueu os olhos em direção a Lucas. Enquanto falava, ela não se mexia do lugar de onde estava. Era como se ela tivesse raízes.

“Não acredite em nada que ela disser. Nada!”

A voz de Herb outra vez e sua cabeça girou como se ele estivesse andando em uma roleta russa de cabeça para baixo.

– Eu moro aqui. Nessa garagem.

Por um instante, Lucas ficou abismado. Escorou-se em seu velho e, agora, amassado Corcel 78 e sorriu, não acreditando no que estava ouvindo.

“Não acredite em nada que ela disser.”

– Sim! Eu moro aqui! Há muito tempo.

Lucas perdeu a fala, mas tentou arriscar uma pergunta que surgiu em sua cabeça.

– Por que você mora aqui?

– Desde que meus pais foram embora. Eles me deixaram aqui.

Lucas sorriu abismado.

– Quem eram seus pais?

– Meus pais eram irlandeses. Acho que hoje podem nem estar vivos, mas acho que eles não quiseram me levar de volta com eles.

– Por quê você acha isso? – Perguntou Lucas, substituindo seu medo por emoção.

– Eu não sei te dizer. Meu pai me deixou aqui.

A menina abaixou a cabeça e chorou. Lucas sentiu-se emocionado e, de certa forma, incapaz de fazer alguma coisa para ajudá-la. Ele deu mais um passo, aproximando-se dela, no entanto, ela o advertiu novamente:

– Não se aproxime, por favor!

Ainda sem entender, Lucas recuou um passo, aborrecido e intrigado ao mesmo tempo.

– Queria poder lhe ajudar. – Disse ele, abaixando a cabeça, parecendo triste.

– Mas é isso que eu preciso. De sua ajuda.

Lucas sorriu para ela.

– Como assim? – Perguntou ele, atônito.

– Não sei se é hora de lhe dizer, mas vou lhe dar uma pista.

Lucas ficou atento, agora, seu medo havia desaparecido e, ele não sabia se ela era real ou não. Sem hesitar, ele perguntou:

– O que quer que eu faça?

A menina o encarou com um olhar firme e, logo depois, respondeu:

– Primeiro, quero que você entre na casa do velho que mora no outro lado da rua.

Lucas levou um baque.

– O que você está falando?

“Não acredite em nada que ela disser. Nada!”

– Eu preciso disso. Se quer me ajudar. Faça isso!

– O que tem lá? – Perguntou Lucas, perplexo.

– Não sei te dizer. – Disse a menina, parecendo estar triste. – Procure no quarto dele. Procure e você saberá tudo.

– O que eu saberei?! Perguntou Lucas, afoito.

A menina somente o olhava sem responder.

– Clarita! -- Disse ele, em desespero. – Me diga!

De repente, ela sumiu, deixando somente o vazio da parede sólida e descascada da garagem. Por um instante, uma lágrima brotou do olho esquerdo de Lucas e rolou pelo seu rosto até cair no chão frio da garagem.

“Eu moro aqui! Há muito tempo.”

“Não acredite em nada que ela disser. Nada!”

“Primeiro, quero que você entre na casa do velho que mora no outro lado da rua.”

Por um instante, Lucas sentiu-se reprimido. Por que o velho teria dito aquilo para ele? Como o velho poderia saber da existência da menina naquela casa?

– Clarita, lindo nome. – Murmurou Lucas, pensando na beleza e na generosidade daquela menina. -- Por que o velho não queria que eu acreditasse nela?

Essas perguntas rondavam os pensamentos de Lucas naquele momento.

Logo após, Lucas saiu da garagem e foi correndo até a rua. Parou no quintal de sua casa, em frente ao portão ainda derrubado, deixando livre a passagem de para dentro de sua propriedade. Por alguns minutos, Lucas fitou com atenção a casa do velho Herb e se perguntou:

Por quê que a menina queria que eu entrasse dentro da casa dele? O que tem lá?

“Procure no quarto dele. Procure, e você saberá tudo.”

Lucas coçou a orelha. Era um sinal de dúvida. Absolutamente, ele não sabia se faria o que a menina pediu.

“Não acredite...”

As palavras do velho insistiam em lhe atormentar.

Diego Gierolett
Enviado por Diego Gierolett em 09/06/2014
Código do texto: T4838280
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.