Casar ou não casar, eis a questão
Era começo do séc XX. Finalmente estava chegando o grande dia da sua vida. Mas ela ainda tinha dúvidas sobre o seu casamento - aquele sagrado contrato humano, que só se torna vigente quando se faz presente a suprema caneta de Deus -, e tinha a convicção de que algo ali definitivamente não estava certo. Não é que ela quisesse experimentar mais da vida como jamais poderia fazer quando assumisse o seu papel de esposa e de mãe. Não mesmo. O que acontecia é que o seu espírito – ou o seu inconsciente, como preferem dizer os pós-modernos – avisava que aquele casamento não era o que ela verdadeiramente queria e desejava para o restante da sua vida.
O seu futuro marido era conhecido por ser um homem honrado e trabalhador. Ele tinha lá o seu sex appeal, mas por algum motivo que a linguagem teima em não explicar ela sentia que aquele homem não era digno de desposar-lhe. Talvez não fosse algo relacionado especificamente com ele. Afinal, sentia um grande carinho, alguma atração física e até um forte amor cristão por esse homem. Contudo, algo no seu âmago existencial lhe soprava nos ouvidos que “aquele casamento não deveria acontecer”.
Situação delicadíssima! O casamento já estava marcado, e tanto os pais da noiva quanto do noivo gostavam e incentivavam de todas as formas possíveis a idéia da realização daquela união vitalícia. Seus irmãos, seus vizinhos e também os seus amigos mais próximos não compreenderiam e nem aceitariam em nenhuma hipótese a não realização desse casamento. Manfredo, o irmão mais velho e líder natural na ausência do pai, seria capaz de arrastá-la pelos cabelos até a igreja caso ela sequer ponderasse a hipótese de renunciar àquela sagrada união com seu futuro marido.
Toda essa pressão provocada pelo medo da repressão social e familiar foi deixando-lha aflita e desconcentrada. Naturalmente, se alguém percebia que a noiva estava a devanear profundamente, seja olhando para o céu ou para as fissuras das paredes toscas daquela velha casa, logo se dizia para uma audiência muitas vezes ausente “como é bonito ver a noiva sonhando assim com o dia do seu casamento...”.
Pois finalmente chegou a véspera do grande dia! A noiva estava pelo menos duas vezes mais nervosa do que normalmente ficam as nervosas noivas na véspera dos seus casamentos. Nada de preocupações com o seu vestido e nem com a cerimônia. Nada de fantasias sobre o sexo, os filhos ou a velhice. Seus únicos pensamentos dicotômicos eram o de luta ou fuga, casar ou não casar, ser ou não ser esposa. E por mais que ela tentasse organizar seus pensamentos, sua razão não conseguia vencer as suas emoções, e seus pensamentos dicotômicos deixavam-na mais atordoada e confusa do que ficaria hoje um craqueiro debaixo da chuva de granizo.
No dia do seu casamento, ela não teve coragem de assumir publicamente as suas dúvidas, os seus anseios e as suas dores emocionais. E no momento da troca de votos, ela simplesmente disse sim, o seu noivo também disse sim, e assim ela tentou fazer daquele dia “O” grande dia de sua vida.
Para a sua grande surpresa, a suprema caneta de Deus se fez presente, e eles formaram um casal muitíssimo feliz após a celebração do seu casamento. Viveram décadas como um casal alegre e apaixonado, servindo de exemplo de bom casamento para todos os seus filhos – mais de dez, diga-se de passagem. Por mais inacreditável que possa parecer, o dia mais infeliz de sua vida de esposa foi exatamente no dia do seu casamento, especialmente nas primeiras horas que sucederam a cerimônia religiosa. Na sua primeira fotografia como mulher casada, é possível ver um rosto triste, emburrado, de quem está maldizendo o destino e até mesmo a própria vida. Ao seu lado, na mesma fotografia, é possível percebermos um noivo com aquela mesma expressão facial de descontentamento. Quem sabe ele compartilhava das mesmas certezas infundadas sobre um provável casamento sofrível. Ou então ele apenas contava ansiosamente os segundos para finalmente poder carregar a noiva para uma cama bem quente a fim de realizar a sua aguardada consumação matrimonial.