201-A FACA
Era uma faca de aço, de gume afiadíssimo, um excelente pedaço de metal, afilada e delgada, a ponta fina com uma agulha. Era uma faca para matar – e me pertencia.
Ao mesmo tempo em que a empunhava com firmeza, deixava o frio metal roçar minha coxa nua, num movimento inconsciente e reflexo, para aguçar ainda mais o seu gume, fino como papel. E enquanto em afiava a lâmina, esperava: apenas uma sombra entre as sombras, invisível, escondido por detrás do alto monte de entulho.
Chovia. Uma chuva de gotas geladas caindo em cortinas que vinham diretamente do céu, batendo forte sobre o solo. Gotas que açoitavam minha carne sem proteção, como pontas de um chicote manipulado por um braço ensandecido. Mas eu as ignorava, como já aprendera a ignorar, fazia muito tempo, os demais desconfortos físicos da nova era. E me sentia muito bem assim.
A fome é um professor implacável. Fome que jamais fôra totalmente satisfeita, que voltava sempre e voltaria outra vez, tão logo eu respirasse. Algo vermelho e feroz, que nunca podia ser esquecida. Por causa dessa fome, eu estava de pé, debaixo da chuva, e a faca firme na minha mão. Esperando.
Eu não detestava a chuva. De certo modo, ela era uma aliada e sua umidade me fazia lembrar sangue, o líquido fresco, vermelho, brotando de um corte recém aberto, escancarado. Outrora, numa época muito remota, eu poderia me horrorizar ante tal pensamento, porém não agora. Não agora, depois que o fogo provocado pelo homem tinha devastado o mundo e lançado os humanos em misteriosas sendas, para sobreviverem.
Por isso, ali me encontrava, esperando, e não sentindo vergonha nem horror pelo ser em que tinha me transformado. Nenhuma vergonha, nenhum horror, pelo motivo da minha tocaia. Estava faminto e espreitava a comida.
Ele viu, finalmente, chapinhando pela lama, passando rente ao meu esconderijo. Tinha um bafo forte e desagradável, um bafo de álcool barato, que nublava meus sentidos na presença do perigo. Ele nem mesmo percebeu quando comecei a seguí-lo.
Ele não gostou da maneira silenciosa com que usei a faca, da perícia que fez com que a faca fosse direto ao seu destino. Um impulso que o lançou ao chão, com a garganta regurgitando em sangue, os lábios com bolhas do líquido vital.
Ainda chovia quando voltei à caverna, que eu chamava de lar. Um edifício semidestruído, de barras de concreto manchado e de vigas retorcidas. Um monte de escória, no qual ratos e outros bichos tinham, de um modo ou de outro, encontrado um jeito de sobreviver, e de onde me espreitavam continuamente.
Eu notava apenas suas sombras furtivas, eram todos animais na luta pela sobrevivência, ms alguns tinham mais massa cinzenta que outros. Ou, pelo menos, eram mais bem aquinhoados em selvageria e determinação.
Caminhei com cuidado, sobre as ruínas, alerta para armadilhas e ciladas, ciente dos observadores que poderiam estar emboscados, mas que nunca seriam vistos. Só ao final do percurso foi que me apressei, ansioso em voltar ao calor e ao parco conforto de minha cova, com meu fardo sobre os ombros.
Livrei minhas costas do peso, deixando que a chuva lavasse as manchas de minha pele. Então, estaquei, tenso. Um cheiro estranho me chegou às narinas. Não estava sozinho. Alguém esperava por mim em minha própria caverna.
Quem quer que fosse, era um tolo. Saber disso já me deu algum conforto. Eu tinha a faca, e possuí-la já era uma vantagem sobre qualquer um que pudesse encontrar, naquele lugar e naquele momento. Armas eram raríssimas, além do simples bordão ou de lanças desajeitadas. Havia outras lâminas, claro, mas a minha era a melhor, na sua categoria. Com ela, podia cortar, apunhalar, arremessar com destino certeiro. Com ela, podia estabelecer uma cortina de morte ao meu redor, contra quem quer que se me deparasse. Ossos já esfarinhados, espalhados pelas fendas e por buracos das ruínas eram a evidência de minha habilidade para caçar, para matar.
Aqui, com minha faca, eu era um rei.
Por isso, não tinha medo de quem me esperava, no meu próprio refúgio, para me despojar do que tinha caçado lá fora.
O paradoxal e irônico da situação era que ele estava esperando por alimento, quando, na verdade, ele próprio iria me propiciar um reforço de meu sustento.
A faca ajustou-se automaticamente em minha mão, tão logo entrei na caverna. O fogo brilhava numa luz vermelha, eu iluminava a figura. Ele levantou-se num salto e afastou-se, ponto alguma distância entre nós dois.
Era um homem, e sorri quando ficou de frente para mim. Sorri e apontei-lhe a faca, dando-lhe algum tempo para ver a lâmina com seu gume ainda vermelho de sangue fresco; e para que ele visse também o vermelho ávido de minha boca.
Ele não falou, não se moveu. Apenas esperou por aquilo que, eu sabia, tinha de ser feito. Com toda a certeza, ele iria encolher-se de medo, ajoelhar-se, implorar. Assustado pelo poder visível que eu exibia em minha mão, completamente desperto para seu inevitável e fatal destino.
Mas ele não fez nada disso.
Na sua mão, o homem empunhava um revólver.
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte – 05.01.2003
CONTO # 201 DA SÉRIE MILISTÓRIAS