192 - SEGURO MORREU DE VELHO
Salatiel Gusmão não reconhecia nenhum imposto. À sua maneira, era um rebelde contra toda forma de cerceamento de liberdade. Via o pagamento de taxas, impostos e seguros como uma maneira da sociedade e do governo controlarem as pessoas.
— Vejam o princípio do seguro de vida: você aposta que vai morrer dentro de um ano, a seguradora aposta que você vai sobreviver. Você “cobre” a aposta, isto é, paga o valor que a companhia banca, e, no fim do ano, como você não morreu, perde a aposta. Para mim, apostar na própria morte é o fim da picada. Estou procurando uma seguradora que aposte o contrário: eu aposto que vou continuar vivo, ela aposta que vou morrer. Se eu estiver vivo no fim do período, ela me paga o seguro. Não é lógico?
— Mas, Salatiel, aí não haveria seguradora que agüentasse. — O cunhado Leonardo não tem argumentação, mas dá sua opinião. A manhã ensolarada e fresca de domingo enseja a reunião do grupo de amigos, após a missa das nove da Igreja da Matriz. Na praça arborizada, alguns estão sentados no banco de granito enquanto seu Renato, Leonardo e Camargo estão de pé.
— O seguro de vida é coisa de judeu. Como é a agiotagem. — Salatiel não tem medo nem meias palavras para dizer o que pensa. — E é pelo seguro e pela agiotagem que eles dominam o mundo.
— É, mas agora ninguém escapa de pagar esse tal de Instituto de Aposentadoria. — Cesarino, idoso italiano, pedreiro por profissão, fala da nova lei, que entrou em vigor faz pouco tempo.
— Eu não pago. Já pensou? Entregar dinheiro na mão do governo, a troco de promessa?
— Ora, Salatiel, é a forma da gente ter alguma renda no fim da vida. — Dr. Mairinque vê mais longe.
— Vai esperando sentado. O dinheiro que entra nas burras do governo, só quem vê são os maiorais. Ministros, as altas patentes militares, esses sim, nadam no dinheiro público.
— Gusmão tem razão. Nunca vi benefício do governo. Não vai ser agora, com um gaúcho mandando, que as coisas vão mudar. — Camargo fala alto.
— Cuidado, Camargo. O baixinho tem espião em todo lugar. — Adverte Leonardo.
Conversando, o grupo se dirige ao Bar do Ponto, onde, após uma rodada de cafezinhos, se dissolve. Cada qual procura o rumo de casa. Já está quase na hora do almoço ajantarado.
São tempos tranqüilos para os moradores da pequena cidade de São Roque da Serra. As grandes mudanças na administração federal não afetam a vida pacata dos moradores. Mas as novas leis e regulamentos criados pelo governo revolucionário que se tornou ditatorial vão chegando. A criação dos Institutos de Aposentadoria era o tema predominante nas conversas dos trabalhadores.
— Não pago e não pago. — Salatiel é radical. — O que ganho mal dá pra manter minha família. Não tenho sobras pra entregar a esse tal de Instituto.
Vivendo de consertos de sapatos, botas e botinas, tem de controlar seus parcos ganhos, a fim de que comida e roupas não faltem em sua casa. À custa de muita economia, conseguiu construir a pequena casa onde mora, em cujo cômodo fronteiriço à rua está a oficina. Mas as perspectivas de uma vida futura são limitadas. Não tem filhos, não paga aluguel e não tem gastos extras. Como diz o povo, o que ganha vai da mão pra boca. Daí sua resistência a todo tipo de pagamento por aquilo que não diz respeito ao seu dia-a-dia. Não tem sequer conta em banco. Mantém-se pontual no pagamento do inevitável: o imposto predial da casa e a taxa da guarda-noturna.
Nada é imutável. Os ventos das transformações passaram por todos os lugares e afetaram a todos, de diferentes formas. Até na pequena cidade dos refratários pagadores de impostos.
— Salatiel, a Fábrica de Calçados acaba de fechar um grande negócio com o governo. Quem sabe você...
— Sim, já soube. — Interrompe a fala do amigo Zacarias — A mim, não me afeta.
— Eles estão procurando sapateiros, pessoas de prática com calçados. Estão admitindo empregados.
— Eu, trabalhar de empregado? Que é isso, Zeca?
Mas, por várias circunstâncias, Salatiel foi beneficiado pela grande demanda de mão-de-obra. Não se empregou na Fábrica de Calçados. Conseguiu um contrato para fazer, em sua própria oficina, uma quantidade de coturnos superior à sua própria capacidade. Teve de ajustar dois rapazotes, aos quais ensinou rapidamente a técnica de cortar, costurar e pregar couro. Antes de terminar o contrato das duzentas botas militares, já estava com uma fabriqueta de sapatos montada. Conseguiu outra contratação, desta vez para sapatos de homem, duzentos e cinqüenta pares para serem entregues até outubro.
Salatiel e seus dois auxiliares se esfalfaram dia e noite para darem conta do recado. Estavam finalizando a encomenda, os pares quase prontos, espalhados pelo chão da oficina, na sala de jantar e até no quarto do casal. Foi quando chegou um fiscal do estado.
— Seu Gusmão, o senhor vai ter de pagar imposto desses sapatos.
— Imposto? Que imposto? Tou trabalhando pra Fábrica de Calçados.
— Sim, mas tem dois empregados aí, sem registro. Além do imposto, há também o Instituto. As carteiras dos rapazes, onde estão?
— Carteiras? Que carteiras?
— Carteira de Trabalho — Seco e cruel, o fiscal Silviano ia descobrindo as irregularidades do negócio de Salatiel. — Dou-lhe uma semana de prazo para o senhor acertar a situação. Quarta-feira que vem estarei de volta, e quero ver tudo na legalidade. Senão... — Passando a mão pelo pescoço, num ameaçador gesto de degola. — Senão, caput !
— Capute ?
— Caput! — Confirma o fiscal.
Salatiel Gusmão entrou em parafuso. Que diacho! Se soubesse da complicação, nunca tinha entrado nessa empreitada. Vai conversar com o Dr. Mairinque, velho amigo, advogado sem grande prestígio, mas dotado de grande bom-senso.
— Ora, Salatiel, o jeito é ir na onda. Acerte tudo, legalize seu negócio, e vá em frente. Afinal, você está tendo um bom lucro trabalhando para a Fábrica de Calçados, não é mesmo?
— Sim, tou ganhando dinheiro. Mas a despesa tá grande, tem os dois ajudantes. Se pagar tudo o exigido pelo Silviano, não sobra nada.
— Sobra, sim. Aliás, não precisa pagar TUDO o que é exigido. Comece legalizando o negócio, acerte a situação de um dos rapazes, e esconde os sapatos já prontos. Sem mercadoria pronta, não há como aplicar selo de consumo.
Salatiel providenciou o acerto fiscal de sua “oficina de sapateiro”, como ficou registrado. Pagou uma licença na prefeitura, outra taxa na coletoria estadual, tirou a carteira profissional do Dimas e colocou Lilico, o outro empregado, trabalhando numa despensa do quintal. Na semana seguinte, pontualmente, eis de novo o Silviano visitando a sapataria. As explicações de Salatiel foram aceitas, viu os documentos e deu o assunto por encerrado.
Salatiel era turrão mas não era burro. Quando percebeu que tinha capacidade de ampliar sua oficina legalizando parte e trabalhando outro tanto na ilegalidade, encontrou o filão. Seus serviços interessavam à Fabrica de Calçados Fortal. Bom profissional, os sapatos que produzia eram de primeira qualidade e ficavam em conta. Conseguiu mais contratos, aumentando cada vez mais a produção. Transformou a despensa do quintal em prolongamento da oficina da frente. Ajustou mais dois empregados (sem carteira assinada) que trabalhavam “nos fundos”, local ignorado pela fiscalização. As entregas à Fábrica se tornaram volumosas e Salatiel, espertamente, as fazia à noite, passando desapercebido do olho grande de Silviano e outros possíveis agentes fiscalizadores.
Nos anos que se seguiram, trabalhou muito e muito ganhou. Aproveitou o quintal e fez um barracão, onde instalou algumas máquinas de costurar sapatos. No final de ’39, tinha cinco empregados e fornecia para a Fábrica de Calçados centenas de pares todos os meses. À Fábrica interessava o arranjo, pois essa parte importante de seu negócio era “por baixo dos panos”, sem pagamento dos impostos devidos.
Salatiel ficou ladino e atento às exigências legais. Sabia que, mantendo uma legalidade aparente, podia produzir muitos pares, a preços baratos, e obter bons lucros. Tornou-se comedido na sua aversão em pagar impostos, freqüentava o escritório do seu Trancoso, que lhe passava informações necessárias ao bom funcionamento da pequena indústria que mantinha sob a fachada de oficina de sapateiro.
A prosperidade proporcionou-lhe uma sabedoria marota de pagar um pouco de imposto e deixar a maior parte da produção isenta das taxas devidas. E, além de abrir um conta bancária, começou seriamente a pensar no futuro, a planejar. O bichinho da ambição se instalou na sua cabeça.
Comprou uma casa residencial, no centro, para onde se mudou. A casa antiga foi totalmente ocupada por mais máquinas, bancas e mesas da pequena indústria. A mulher, dona Belarminda, não podendo ter filhos, adotou Luíza. E assim, a família feliz e os negócios indo de vento em popa, Salatiel Gusmão era um homem realizado.
Até que Silvino, o benevolente fiscal do estado, foi transferido. No seu lugar foi nomeado o Chico Moreira, homem ranzinza e de pouca conversa. Antigo funcionário da coletoria, sabia, por ouvir dizer, que Salatiel, como, aliás, quase todos os comerciantes, industriais e pequenos empresários (os assim chamados “autônomos”) da cidade, sonegava impostos. A oficina de sapateiro foi um dos primeiros estabelecimentos vistoriados pelo novo funcionário, ávido por mostrar serviço e aumentar a arrecadação de seu departamento.
— Acho melhor o senhor ir hoje à tarde na coletoria, conversar com o senhor coletor. Encontrei um monte de irregularidades aqui na sapataria.
Salatiel tremia ao se apresentar na Coletoria para a entrevista. Sentado defronte ao rubicundo e gordo agente fiscal, não tinha como explicar as diversas irregularidades apontadas pelo visitante da manhã.
— Vou lhe dar quinze dias para acertar toda a situação. Se dê por feliz que não estamos aplicando as multas de praxe. Como o senhor é primário...tem esta semana para acertar todos os impostos atrasados. Olhe que fizemos um levantamento só dos últimos cinco anos. O senhor tem muito movimento. Devia ter pagado no tempo devido. Agora...
Feitos os cálculos, apurou-se uma importância muito aquém das possibilidades de Salatiel Gusmão. Vou ter de vender minha casa pra poder pagar os impostos e continuar trabalhando, pensa.
Ao sair da coletoria, dirige-se à residência do Dr. Mairinque, com o qual tem uma longa conversa. Vai ao escritório do Trancoso. Discutem o problema e as possíveis soluções.
À noite procura o Abelardo Moura, agente de seguros. Está calmo, tranqüilo, enquanto fecha o negócio de um seguro total para sua pequena indústria.
— Amanhã mesmo vou vistoriar toda a propriedade, e à tarde o senhor pode pagar a apólice. Mas o senhor era radicalmente contra seguros. Mudou de opinião, seu Salatiel?
— Seguro morreu de velho. — Foi a resposta do sapateiro, usando o velho dito popular. Estava preocupado com mais essa despesa, para a qual fora convencido naquela tarde, em visita aos seus amigos e conselheiros.
— Bem, é uma atitude acertada de sua parte. Fica tranqüilo com relação à sua fábrica.
— Oficina, seu Abelardo, pequena oficina.
Em três dias Salatiel tinha em mãos a apólice do seguro. Abelardo Moura e o avaliador da seguradora estimaram o patrimônio em quinhentos contos de réis, valor que Salatiel achou razoável. Só não gostou do “prêmio”, o valor a ser pago à seguradora. O seguro contra fogo é caro demais. Mas, enfim, faço o que tem de ser feito...
— O seguro é completo. A apólice cobre tudo o que acontecer.
Durante a semana, os empregados trabalham dia e noite para terminar o lote de cento e vinte pares de sapatos.
— Temos de entregar na sexta-feira. Vamos trabalhar todas as noites. — O patrão avisou aos empregados. — Depois, vocês terão uns dias de folga, para compensar o esforço.
Na noite da sexta-feira, entregam o lote à Fábrica de Calçados. A oficina de Gusmão fica praticamente limpa, sem matéria-prima, totalmente usada no trabalho final. Ao fechar as portas da indústria, Salatiel olha para as máquinas, os móveis, bancos, as ferramentas dependuradas nas paredes. As ferragens das máquinas se destacam na meia-luz do barracão: parecem esqueletos de fantásticas entidades estáticas, à espera.... Fecha cuidadosamente com trincos e cadeados todas as portas e portões. Caminha sem pressa, os passos ressoando na calçada da rua deserta.
Sábado, duas horas da madrugada. Pancadas fortes na porta da residência do sapateiro.
— Seu Gusmão! Seu Gusmão! Acorda! A oficina ...
Salatiel levanta-se. Desperto, pois não pregara os olhos naquela noite. Fora deitar tarde, a mulher notara a preocupação nos vincos de seu rosto.
— Preocupado, meu velho? — Ela perguntara, quando ele chegou.
— Não, não é nada. São os negócios... — Reticente e aborrecido, nada esclarece.
Corre à porta. Dois empregados gritam e agitam os braços.
— Seu Gusmão, que desgraça! A sapataria... — O moço gagueja.
— Que foi, homem de Deus! Fala logo.
O outro termina a informação:
— A SAPATARIA PEGOU FOGO!
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2002 –
Conto # 192 da SerieMilistórias