A Mulher de Branco

1993.

Agosto mudara da forma mais repentina que pude imaginar.

Todos haviam se acostumado às noites mal dormidas devido ao intenso calor.

Mas estranhamente os dias e as noites seguintes ficaram gélidos como nunca havia sentido .

Acordei e pude sentir o corpo estremecer ao me levantar da cama e pousar os pés no chão. O piso se encontrava tão frio como a minha pele, a diferença era imperceptível.

Vaguei pela escura sala de estar. A madrugada ainda predominava no período em que saía para ir à escola.

Ao atravessar a rua, ouvi ao longe um carro se aproximando. Parecia vir depressa, mas sem dúvida daria tempo de atravessar para o outro lado.

Assim que atravessei, deparei-me com a figura de uma mulher sentada no velho banco da praça.

Seus olhos fitavam um poste de luz quebrado e retorcido. – como nunca o havia percebido?

Aproximei-me dela. O ponto ficava exatamente ali e ônibus não demoraria a chegar...

Limpei a garganta algumas vezes. –não à procura de conversa, mas o silêncio da escuridão deixava-me ansioso.

A única coisa que ouvíamos era o motor do tal carro vindo ao longe.

Ali, com as mãos entre os bolsos da calça jeans e a perna esquerda inquieta, tentei manter o pensamento em outro lugar... Mas uma coisa estranha aconteceu.

Não consegui me lembrar de absolutamente nada da noite anterior. Nem ao menos dos dias anteriores a ela.

Nada.

A única coisa que conseguia me lembrar era do frio que ainda me envolvia... E o ruído do mesmo carro que até então não aparecia em momento algum apesar de estar próximo.

Tentei me lembrar do que aconteceu na pequena praça durante todas essas manhãs para saber o porquê do poste retorcido.

Nada.

O vento gelado atravessou meu cachecol azul e se concentrou em minha nuca. Senti o corpo estremecer por inteiro.

Não era um simples arrepio. Fora como sentir algo atravessar o corpo.

Permaneci imóvel.

Inclinei o rosto levemente para a mulher ao lado e me peguei em um olhar extremo e aterrorizante ao dela em minha direção.

Seus olhos não estavam mais fixados no poste retorcido. Estavam arregalados, numa íris tão escura e profunda que me fizeram engolir seco.

Sua boca estava semiaberta, e sua palidez pareceu iluminar a rua deserta. O cabelo preto e eriçado batia em sua cintura e caía sobre o vestido branco rasgado.

Os olhos se abriam cada vez mais e mais, como se fossem saltar de seu lugar.

“ Onde é que estava o maldito ônibus?!”

Enquanto isso o ruído do motor continuava. Consegui por fim desviar meu olhar. Movi a cabeça para todos os cantos, mas não havia carro algum. Embora ele seguisse cada vez mais próximo.

O velho senhor saiu para varrer a calçada em frente sua loja e alguns pombos pousaram próximos a ele. Um homem de meia idade chegou à praça. Trazia um jornal embaixo do braço e sentou-se no banco ao lado

da mulh...

Ela desaparecerá.

Assim como o ruído do carro, ambos desapareceram sem rastros.

Por fim o ônibus chegara.

O homem observou o relógio de bolso e levantou-se no mesmo instante, indo em direção à porta do ônibus.

Aproximei-me dos degraus e então algo me puxara para trás...

Os olhos pretos e arregalados estavam fitados em mim.

-Mas o quê?! –desvencilhei-me ao entrar rapidamente.

O que foi aquilo?!

Respirei aliviado por estar longe.

Como previra, o dia não havia começado apenas de forma bizarra, como também sem sentido algum.

A sala de aula estava calada. As feições cabisbaixas e atentas por algo em particular.

O mesmo acontecia ao professor... O que teria acontecido?

Minha carteira estava ocupada por outra pessoa. O único lugar vago era ao fundo da sala, uma ilha distante comparada aos outros.

Sentei-me e pareci uma presença que não fora notada por ninguém.

Acompanhei o ritmo silencioso da sala durante todo o período.

Só um dia que terminaria dessa forma, pensei...

Mas estava errado.

Calafrio.

Acordei no dia seguinte, novamente com a sensação gélida e anormal.

Segui o ritual matinal, mas o frio era incessante...

Atravessei a rua e não pude acreditar ao ver a tal mulher sentada no mesmo local, com o mesmo olhar fixado ao poste retorcido.

Droga!

Posicionei os pés na calçada, atento a qualquer movimento que ela executasse...

Não me aproximei... Esperei pelo ônibus ali mesmo, alguns metros antes do lugar.

A sensação de que algo errado estava acontecendo me invadia a cada vez que a pegava em meus pensamentos...

O carro.

Era ele! Eu sabia que era ele... Maldito motor que se aproximava e em momento algum aparecia!

Seu ruído era alto e parecia aumentar a cada dia.

O tempo foi passando... Até que finalmente, ele conseguiu penetrar em minha mente...

Não me concentrava, não comia ou dormia. Meus olhos ardiam e pediam para que eu caísse em sono profundo para que pudessem descansar...

Era constante.

Incessante.

Terrivelmente ininterrupto...

Mais tarde, em uma das noites seguintes, eu não tinha mais como acordar de forma aflita ou assustada, ficar desperto desde aquele dia havia mudado a minha rotina.

Observava o teto do quarto até que formassem esferas coloridas, decorrente de tempos fitados na escuridão.

E o ruído do motor continuava...

Virava-me para a direita, para a esquerda. A cama completamente desfeita e o rosto em uma tentativa de se aprofundar no interior do branco travesseiro, cada vez mais e mais.

De repente as cortinas do quarto se balançaram violentamente, como se uma rajada de vento tivesse invadido o quarto como em uma tempestade.

Demorei alguns segundos observando-as, até levantar, me aproximar... E perceber que a janela estava fechada o tempo todo.

Foi quando senti meu estômago congelar, e minha garganta estava tão seca que chegava a doer ao tentar engolir.

Um choro veio repentinamente ecoado do corredor.

Eu o reconhecia...

Fui até a última porta do corredor e adentrei o quarto.

-Mãe! –chamei em voz alta, parado em frente à porta.

Nada.

Não havia reação alguma a não ser seu choro profundo e ofegante.

Quando voltei para meu quarto as cortinas ainda se balançavam. Abri as janelas, e do alto vi a figura de uma mulher que me observava.

Estava escuro, mas seu vestido branco e rasgado brilhava e me fez enxergar o que eu estava vendo há dias... A mesma mulher horrenda e bizarra sentada ao banco da praça.

Meu braço se arrepiou, mas o ruído assíduo do motor ainda presente sobressaía o medo.

Desci as escadas correndo, a madeira rangia a cada passo dado com força. Abri a porta e saí rumo à escuridão. Os pés descalços escorregando sobre o recente orvalho da grama.

-Onde você está?! –disse em voz alta.

A mulher havia desaparecido...

Comecei a girar o corpo para todos os lados, meu olhar aflito, perseguido, impaciente...

O carro parecia estar invadindo o canteiro de meu jardim e vindo em minha direção... Maldito barulho!

-Deus... O que você quer de mim?! –gritei o mais alto que pude até a voz falhar nas últimas palavras.

Levei as mãos ao rosto e apertei o olhar, como se tudo fosse um pesadelo.

Uma mão gélida pousou em meu ombro e apertou levemente.

A mulher estava bem atrás de mim. O mesmo olhar escuro, triste e ao mesmo tempo aterrorizante.

Não sei o que está acontecendo. Não sei por quanto tempo isso vai durar.

Eu só queria uma resposta

Ela se afastara lentamente... E então correu em disparada.

-Não!- girei o corpo enquanto a vi seguindo correndo pela rua.

Sem pensar mais, fui à mesma velocidade atrás dela. Não sabia para onde estava indo, ou que faria quando chegasse nesse tal lugar.

Quando ela de fato parara, percebi que estávamos na rua da praça.

O céu da forma mais repentina ficara laranja, mas era impossível já que tínhamos acabado de sair do meio da escuridão da noite...

Como poderia ser tão estranho e ao mesmo tempo tão lindo?

O homem que portava um relógio de bolso e um jornal por debaixo do braço acabara de chegar a praça e sentara-se no banco. Um velho senhor saiu de dentro da porta da loja e começou a varrer a calçada ao mesmo tempo em que dois pombos bicavam o meio fio.

Uma cena que eu parecia ter vivido a pouco.

Parado no meio da rua ergui a cabeça para o alto do relógio da rua que marcava exatamente... Duas e meia da tarde.

-Mas o q....

Uma sensação havia me invadido, e não era medo, ou pavor... A mistura da simplicidade daquela suposta tarde me entristeceu de tal forma que minha cabeça simplesmente parou de pensar.

Duas e trinta e dois.

Senti uma pontada no meu peito. Uma dor imensa...

A mulher parou ao meu lado e sua mão se ergueu de forma lenta em direção ao banco da praça.

O poste estava completamente intacto. Isso era impossível.

O motor de repente avançou e ali, no meio da rua ele de repente surgiu.

Não tive reação. A luz de seu farol penetrou em meus olhos o som dos pneus queimando no asfalto em uma tentativa imensa de fazê-los frear me ensurdeceu de vez.

Fechei o os olhos e me agachei esperando o impacto.

Foi quando abri os olhos lentamente, e o carro não estava mais na minha frente... Estava estraçalhado de frente para o poste.

Uma multidão de pessoas das quais surgiram como num passe de mágica formavam uma roda próximo aos estilhaços.

Observavam alguma coisa ao chão. Mãos levadas a boca por algo terrível que teria acontecido.

E quando me aproximei da multidão num impulso involuntário, meu corpo estremeceu e ficou extasiado ao ver que a pessoa que estava deitada ao chão, sob os olhares aterrorizados...

Era eu.

Meu corpo que estava lá... Os olhos estavam fechados e as mesmas roupas que usava naquele instante, marcadas de...

O cheiro tépido e singelo que a brisa levava me envolveu e então o ponteiro do relógio avançou.

As lágrimas escorriam pelo meu rosto, e a resposta estava bem a minha frente.

Tudo fazia sentido...

A mulher de branco segurou minha mão, e levemente me tirara de perto da multidão.

Para alguns, aceitar a própria morte pode ser algo rápido e de fácil compreensão...

Os motivos muitas vezes não são justos... Outras vezes eles apenas servem como pretexto para uma resposta que talvez nunca conforte as pessoas próximas que irão sofrer com ela...

Para mim, a morte no inicio me parecera uma figura assustadora e perturbada... A resposta veio dias depois, quando finalmente resolvi dar lhe uma chance e por fim aceitá-la.

O ruído do motor havia cessado, um silêncio como não sentira em tanto tempo, pairou. Era bom sentir aquilo,e pensar que o ruído nunca mais voltaria, foi a melhor noticia...

Isabella Coutinho
Enviado por Isabella Coutinho em 01/05/2014
Reeditado em 01/05/2014
Código do texto: T4790208
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