A FUGA

— Izaura desapareceu! — Dona Dinda foi logo dizendo ao marido, ao sentar-se para o café da manhã.

— Como é que é? Desapareceu ? Como foi isso?

— Sumiu. Saiu ontem pra ir à novena da igreja e não voltou. Não dormiu em casa.

A notícia, dada assim, antes mesmo do “bom dia”, mais do que surpreendeu, aborreceu o Dr. Carvalho. De viagem marcada para a capital, onde ia tratar de importante assunto com o governador, não iria permitir que assuntos domésticos perturbassem ou modificassem seus planos.

— Não vou poder tratar disso agora. Estou de saída para a capital, o trem sai às 10 horas. Manda chamar seu irmão Leôncio, diz pra ele procurar a moça. Vai ver ela arranjou outro emprego, saiu sem falar nada. — Dr. Carvalho era decidido, sabia resolver as mais delicadas situações. Engenheiro e fazendeiro, não era à toa que gozava de grande prestígio entre seus amigos e companheiros de política e de mesas de carteado. — Não deixa o assunto espalhar. Que fique só entre nós.

Devedor de vultuoso empréstimo pela compra de um boi zebu (que morrera há quinze dias, picado de cascavel) , ia negociar a dívida, usando de sua influência política com o governador do estado. Com Dr. Carvalho vai seu filho Neobaldo. Pai e filho tomaram o trem na pequena estação de São Roque da Serra, rumo à capital do estado. O rapaz viajava pela primeira vez em companhia do pai e não estava totalmente à vontade. Sentia a prepotência paterna, homem acostumado a ser obedecido sem contestação nem perguntas. Neo preferiria ter ficado em casa nessa semana, a última das férias do meio do ano. Poderia voltar à fazenda e passar momentos muito mais agradáveis do que fazer essa viagem. O pai, entretanto, fizera questão de levá-lo.

— Será bom pra você, vai conhecer uma cidade grande, gente diferente, coisas novas. Você vai gostar. — O pai fora terminante e não lhe deixara alternativas. — Poderemos até visitar o Colégio Marista, onde você vai continuar estudando depois que terminar o ginásio.

Enquanto Neo lembrava dos dias de folgança na fazenda do pai, o trem-de-ferro vencia as distâncias, resfolgando, soltando fumaça e faíscas, que entravam pelas cabines de passageiros. A fumaça transformava-se em fuligem que assentava nos punhos e colarinhos, enquanto as faíscas caiam em qualquer lugar, queimando as roupas e, por vezes, a pele dos passageiros adormecidos. Dr. Carvalho e Neo usavam guarda-pós, recomendados para aquelas viagens, que aumentavam o desconforto de ambos. O calor do dia aumentava, mas muitos passageiros mantinham as janelas fechadas. Dentro do vagão era um sufoco.

Dona Dina foi expedita ao tomar as providências para saber o que acontecera com Izaura. Seu irmão Leôncio aceitou o convite para o almoço, durante o qual foi colocado a par da fuga da empregada.

— Vamos falar com o delegado de polícia. Ele pode saber de alguma coisa.

— De jeito nenhum! O Carvalho não quer que o assunto transpire. Vai ficar só entre nós. Se você não puder ajudar, então deixa, quando meu marido chegar...

— Não, não! Fica sossegada, vou ver o que posso fazer. — Leôncio era sagaz, sabia que uma boa investigação poderia render-lhe alguns contos de réis, naqueles tempos bicudos. Ademais, estava de olho no cartório do Raimundo Gomes, recém-falecido, e o cunhado poderia ajudá-lo muito. Uma mão lava a outra, o Carvalho pode me conseguir esse cartório fácil, fácil... — De certo a Izaura não está mais na cidade, vou ter de viajar, e preciso de um dinheiro para as despesas iniciais.

Saiu dali com duzentos mil réis no bolso. Passou na loja do Ermínio, misto de armarinho e papelaria, onde também eram vendidas revistas e jornais. Comprou um exemplar do “O Estado de São Paulo”, que exibia manchetes da evolução da guerra na Europa, em curso há alguns meses, desde que o louco Hitler invadira a Polônia e outros países. Por um extraordinário golpe de sorte, encontrou ali o próprio delegado de polícia, seu velho conhecido, com o qual trocou algumas informalidades. Ficou sabendo que a polícia perseguira, na noite anterior, Ramiro Jasmim, conhecido escroque, cafetão e aliciador de mulheres para a prostituição.

— O bandido esteve na cidade até a meia-noite. Perdemos a pista do sujeito, que sumiu na zona. As putas esconderam-no ou ele fugiu de maneira muito astuciosa.

Leôncio intuiu, do comentário do delegado, que o desaparecimento de Izaura estava certamente ligado à presença de Ramiro Jasmim na cidade.

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Ramiro Jasmim calculou com precisão seus passos na pequena cidade. Chegara com objetivo determinado de levar mulheres da zona para Goiânia. Sabia que duas putas da casa de Maria Duloca queriam se mudar, conhecia as mulheres, eram boas profissionais e foi tratar da mudança. Durante uma semana negociou com Maria Duloca e com as duas, num processo que não foi fácil. As mulheres eram uma mina, ele sabia. Nesse período, foi algumas noites ao Social Elite Clube, jogou e ganhou algum dinheiro dos fazendeiros da região, tendo faturado alto numa rodada de pôquer com um tal de Dr. Carvalho.

E, com seu faro delicadíssimo, descobriu duas novas mulheres para o metier: Carmem, uma fogosa ruiva que estava “no ponto” para a nova vida; Izaura, empregada doméstica, sem qualquer conhecimento do seu potencial, que ele, Jasmim, se encarregaria de administrar. Foi questão de uma conversa de meia hora, e tudo estava combinado com a morena alta, esguia, bem caipira no trato, apavorada com a descoberta de que estava grávida e sem a saber o que fazer. Foi fácil convencê-la, enganando-a com promessas de uma vida fácil em casa de bondosa madame em Goiânia. A moça se deixou levar pela conversa melíflua do rufião, e, principalmente, ficou fascinada com os cem mil réis, “adiantamento pelo seu serviço pra nova patroa”, conforme explicara.

Por azar, Jasmim estivera presente num entrevero num bar da cidade e teve que sair correndo, perseguido por dois meganhas. Foi ao anoitecer. Ajudado pelas sombras, embrenhara-se pela zona, onde era conhecido e onde se escondera. Por algumas horas, apenas. Rapidamente, mandou chamar Izaura, reuniu as outras putas e na calada da madrugada saíram pelos fundos da cidade. Ele e mais três mulheres. Carmem ficou pra trás, não conseguiu se aprontar a tempo de embarcar no automóvel de Jasmim. Enquanto a polícia dava buscas e mantinha sentinelas na rua da zona, o surrado Chevrolet-1936, tipo “guarda-louça”, saía sorrateiramente. Ao amanhecer do dia, já estavam distantes muitos quilômetros.

Sentada no banco de trás do acanhado automóvel, Izaura sentia o frio da noite entrando pelas frestas. Não levara bagagem, nem agasalho. Saíra de repente.

— Leuza, avisa a Dona Dinda que vou à igreja, vou à novena, volto logo. — Já tinha tudo preparado, inclusive a saída à noite, industriada pelo sr. Ramiro. Por isso, não levara bagagem nem mesmo agasalho. Agora, curtia frio. A companheira ao lado aconchegou-se e passou o braço por seus ombros, na tentativa de agasalhá-la. Ela aceitou, naturalmente.

Nos seus devaneios, lembrava-se dos poucos momentos em que tivera um momento como aquele. Apenas Leuza fora carinhosa, mostrara-lhe afeto. Principalmente quando Izaura começar a sentir tonteiras, mal-estar, cansaço, enjôos.

— Fala com Dona Dinda. — Foi o primeiro conselho. Mas, em seguida acrescentou: — Melhor não. Senti a mesma coisa quando fiquei grávida. Pode ser que você teje grávida. Vai procurar dona Bia, ela sabe dizer se tou certa ou errada.

Dona Bia confirmou a suspeita de Leuza. Izaura ficou desesperada, nada sabia dessas coisas de mulher. Leuza foi lhe explicando, ela devia ter tomado cuidado, com quem andava trepando? Sua mãe já sabe? Tem que falar com sua mãe, contar quem é o pai da criança.

Quem é o pai da criança? Izaura não tinha a menor noção do que lhe acontecera. Criada na fazenda, nunca ouvira qualquer coisa sobre isso de ficar grávida, ter criança. Era a única mulher na irmandade de oito filhos, e por ser a mais jovem, cresceu desinformada de tudo, totalmente ignorante das coisas da vida. No princípio estranhou quando o filho do patrão, o Neo, com o qual brincara entre as árvores do pomar e nas ruas do cafezal, a tombara sobre uma macega de capim seco e, passando os dedos entre suas pernas, proporcionou-lhe uma sensação tão boa que ela jamais sentira antes. Depois, outras vezes, sempre com o Neo, outras coisas aconteceram, mas será que fora naquelas brincadeiras gostosas que ela ficara grávida?

Neobaldo fora um moleque safado. Não menos safado por ser filho do doutor Carvalho. Na cidade, convivia com garotos mais idosos e sabia de todas as sacanagens que os maiores faziam. Tinha dinheiro, tinha tempo e tinha disposição para aprontar confusões. Quando ia à fazenda do pai, era para continuar no campo as pilantragens aprendidas na cidade. Quando garoto, usava estilingue e, depois, uma espingarda de chumbo, para dizimar os passarinhos e aves menores. Ajuntava-se com os filhos dos colonos, para liderá-los nas estrepolias.

Quando sua sexualidade se intensificou, nos seus catorze ou quinze anos, começou a perseguir as meninas e mocinhas da fazenda. Fazia com elas o que havia aprendido na cidade, e a maioria gostava. Levava as gurias para o cafezal, para o sombrio pomar, para o engenho de pinga (que permanecia fechado na entre-safra da cana) e nesses locais, deitava e rolava com elas.

Nunca fora denunciado, pois ameaçava as meninas de represálias por parte do pai, o dono daquelas terras e daquelas vidas. Por sorte, nunca “fizera filho” em nenhuma das mocinhas. Ou pelo menos não tivera notícias de.

Seus momentos de prazer com Izaura se multiplicaram quando ela veio trabalhar na cidade, na sua própria casa, empregada pela mãe nos afazeres domésticos. Dona Dina mantinha sempre duas empregadas em sua casa na cidade. Todas recrutadas na fazenda do marido. Quando uma saía, por motivos diversos, ia à fazenda e de lá trazia outra. As empregadas tinham seu quartinho nos fundos da casa e a patroa acompanhava o desenvolvimento das meninotas, ensinando-lhes tudo o que sabia para servirem com eficiência e educação. Mandava-as à igreja, fazia com que freqüentassem o catecismo e comprava-lhes roupas e calçados. Izaura era a mais recente, estava há pouco mais de ano. Chegara muito fraca, magrinha, e, graças ao bom trato de comida farta e trabalho leve, encorpara, crescera, tornara-se uma moça vistosa e atraente. Que atraia, principalmente, a atenção de Neo. Agora, não era mais no improviso dos encontros sobre o capim seco do galpão nem mais encostados nos barris de cachaça. O rapaz ousado e corajoso levava Izaura para seu próprio quarto, onde se deleitavam nas tardes mormacentas.

Se o pessoal da casa percebia esse arranjo, jamais foi comentado. Neobaldo não se preocupava, era o verdadeiro estróina, não deixava Izaura em paz. Até que, à mesa do café daquela manhã, antes de viajar, ouvira da mãe a notícia do desaparecimento da morena. Bandida! Deve ter se engraçado por algum Zé-ninguém, fugiu com alguém da sua laia. Quando voltar, vou procurá-la e dar-lhe uma lição!

Leôncio não teve muito trabalho em descobrir o paradeiro de Izaura. Soube da fuga de Ramiro Jasmim por vias indiretas e conversando com as pessoas certas. Na casa de Maria Duloca, que ele freqüentava com desenvoltura, ficou sabendo não só do destino de Jasmim e das três mulheres, bem como da gravidez de Izaura.

— Se a Dona Dinda está preocupada agora com a Izaura, deveria ter se preocupado quando o filho andava comendo ela lá dentro da própria casa. — Foi o comentário ácido da cafetina. — Agora é tarde e Inêz é morta. Ela tá com Jasmim e aquele é como cachorro em carniça: quando morde, num larga mais.

O tio de Neobaldo engoliu as palavras amargas dirigidas à irmã e foi em frente. Chegou a Goiânia dois dias depois de Ramiro e procurou a casa onde havia mulheres novas, vindas do interior. Foi fácil: essas notícias correm céleres, se espalham como fogo em campo seco. Encontrou-se com Izaura.

— Você sabe que Dona Dinda está muito magoada com você? Sair assim, sem dizer nada...

— Não tinha outro jeito. — A moça mostrava-se decidida. — Pelo amor de Deus, não espalha que eu fugi. Finge que não me encontrou.

— Você sabe em que tipo de vida está se metendo?

— Claro, não estou enganada não. Ramiro é um homem bom, me conta tudo, vai até me levar numa mulher pra tirar a criança. Pra casamento, não sirvo mesmo. Ou o senhor acha que Neo vai me ajudar? Era capaz do pai dele mandar me matar, se soubesse. Jura que não conta nada.

Ramiro entende que, enganada ou não pelo cafetão, ela tem razão.

— Sim, se você quer assim, não vou contar pra eles onde você está.

Dr. Carvalho voltou satisfeito de sua viagem. Neobaldo chegou ansioso para saber de Izaura. E Leôncio vinha com as notícias da empregada desaparecida. Reunidos à noite no palacete do eminente homem, estavam todos querendo contar e saber das notícias. Mas ninguém estava preparado para o que viria a seguir.

— Os encontros com o governador e com o dono do banco foram ótimo, a coisa está andando bem. — Dr. Carvalho saboreava um charuto de classe e explicava para a mulher e o cunhado. — Minha dívida é grande, tinha apostado muito nesse negócio do zebu. Mas o governo federal vai encampar as dívidas dos fazendeiros que quebraram com o negócio do zebu.

— E a Izaura, deu notícias? — Neo não esconde a aflição.

— O Leôncio foi atrás dela. — Dona Dinda falou, sem saber ainda o que o irmão tinha a revelar.

— É, descobri algumas coisas. Primeiro, ela fugiu porque está grávida.

— O quê ? — Pai, mãe e filho exclamam em uníssono. Todos assustados.

Há um momento de silêncio, que Leôncio deixa correr lentamente, mantendo o suspense. Carvalho pensa que é de Neo, mas Neo não sabe que o filho é seu. E Dinda desconfia dos dois...há! há! há!

Dona Dinda começa a suar.

— Não pode ser! Como é que isto foi acontecer? E aqui na minha casa!

— Mas nós não temos nada com isso! É coisa dela com esses safados aí da rua! — Dr. Geraldo já vai logo eximindo sua família de qualquer culpa.

— Tem, sim, Carvalho.

— Ô Leôncio! Cê ficou maluco?

— A criança é dela e do Neozinho, aqui.

— Mentira! Onde é que tá essa safada? Vai ter de desmentir isso! — Agora é Neo quem esbraveja, num acesso de fúria.

Tudo se precipita. Dona Dinda treme, sua testa inunda-se de suor e, enfim, desmaia. É cercada pelos três homens que, atarantados, não sabem o que fazer.

— Neo, depressa, pega o álcool alcanforado que tá em cima da cômoda, no meu quarto. – Carvalho determina com aspereza. O rapaz sai. O marido esfrega os pulsos da esposa, ao mesmo tempo em que se dirige ao cunhado:

— Que negócio é esse? Quer acabar com minha honra, com minha família?

— Fiz apenas o que Dinda me pediu: investiguei o paradeiro da empregada.

— Vou fingir que não ouvi o que você falou. E me faz um favor! Sai daqui e nunca mais apareça na minha frente! Se te encontrar novamente, acabo com sua raça!

Ao sair, o rabo entre as pernas, Leôncio cruza com Neo. Olhares de ódio. Nada dizem. Dona Dinda volta aos poucos do desmaio. Carvalho sabe lidar com a situação.

— Vamos pra cama, você tem de repousar. — E para o filho:

— Não acredito no que Leôncio contou. Mas amanhã você vai me dar uma explicação. Agora, vai dormir.

No dia seguinte, Dr. Carvalho ouviu a versão do filho e não acreditou numa palavra das explicações do malandro. Deixara a educação do filho por conta da mulher e deu nisso.

— Assim que terminar o ginásio, vai pro colégio dos Irmãos. Só volta de lá quando tiver formado. — Pensava que assim colocaria um ponto final da vida desregrada do filho. Ledo engano. Neozinho nunca se formaria em nada.

Dona Dinda jamais se recuperou do susto daquela noite. Caiu num estado de idiotice e nunca mais saiu do quarto. Virou uma morta-viva. Jamais tocou no assunto do desaparecimento do seu filho Neozinho.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 23 de agosto de 2001

CONTO # 111 da Série M,ILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/04/2014
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