HELIPONTO: MAR

Ao ser chamado para mais um vôo de rotina, o piloto Délio Carvalho tomou todas as precauções de rotina, às quais ele fazia questão de dedicar especial atenção. Checou com o pessoal de manutenção todos os itens de segurança, verificou externa e internamente as condições da máquina que iria pilotar. Tratava-se de um elegante helicóptero Agusta 109 Power, de fabricação recente, dotado de aparelhagem para vôos por instrumentos nas situações mais críticas. Aos traços prateados e à cor negra do aparelho foram apostas a marca e o nome da empresa proprietária. Pelo relatório examinado, a última “Inspeção Anual de Manutenção” fora realizada há apenas quatro semanas.

— Vai ser um vôo de rotina até o litoral. Coisa de três ou quatro horas. — Informou ao co-piloto Otávio.

— Como está seu braço? — A ascensão foi suave, na tarde clara, a partir do Campo de Marte. Otávio checou o relógio de bordo: eram 17:22.

— Está bem melhor. Mas vou deixar pra você a maior parte do percurso. — O braço ainda incomodava um pouco ao comandante, não o impedindo, contudo, de pilotar. Sofrera uma luxação há alguns dias, nada de grande importância.

Alçado o vôo, o potente helicóptero foi direcionado para o topo do edifício-sede da Companhia, na movimentada Avenida Paulista. Ali embarcaram os dois passageiros: Marcelo Campello e Virgínia Marcondes. O destino: a casa de praia dos Campello, em Maresias, no litoral do estado.

Tanto o comandante Carvalho quanto o co-piloto Borghetti estavam a serviço da Companhia há mais de dois anos, pilotando juntos os helicópteros da frota. Carvalho era um experiente piloto de helicópteros, especialista em vôos com naves daquele tipo. Com mais de 10.000 horas de vôo, em 30 anos de profissão, jamais sofrera um acidente. Entre seus diversos empregadores estavam diretores e presidentes de grandes empresas e até trabalhara com um governador do estado. Otávio Borghetti, o co-piloto, também contava na sua ficha de serviço com uma longa lista de importantes clientes, sempre pontual e meticuloso. Fazia sempre dupla com Carvalho, pois igualmente se especializara em vôos com o Agusta.

Ela participara, na noite anterior, de mais um desfile de modas na “5a. Semana de Verão”, realizada no mais badalado centro de modas da capital. Seu namoro com Marcelo tivera início naquele evento, há apenas cinco dias atrás.

— Quando você terminar o desfile, descemos para Maresias. Vamos passar juntos o fim-de-semana por lá. Que tal? . — O convite, feito assim, sem maiores formalidades, foi aceito de imediato.

Vírginia era assim: decidida, alegre, de bem com a vida. Gostava de viajar, de conhecer pessoas e seu sucesso profissional era marcado pelo relacionamento com as pessoas certas. A esbelta morena dava um toque exótico aos desfiles dos quais participava: seu tipo semelhava o oriental, com os olhos amendoados e a tez morena acobreada. A carreira de modelo era seguimento natural para a garota que aparecera em diversos comerciais e a adolescente que participara de uma novela de televisão. O sucesso era produto de seu esforço pessoal, dedicação e vontade de vencer. Requisitada pelas melhores griffes, sabia escolher as marcas que representava, de tal forma que, aos vinte e dois anos, já tem o nome consagrado e um patrimônio considerável.

Ao subir a bordo do helicóptero, levava uma maleta que colocou ao lado de seu banco. Distraída na leitura de uma revista, não acompanhou por nenhum momento o percurso do aparelho, e só se deu conta do perigo quando sentiu um baque surdo que atingiu o helicóptero. Não tivera sequer o cuidado de apertar o cinto de segurança e a pancada, jogando o aparelho como palha seca ao vento, fez com que todos, na cabine, fossem lançados contra as laterais.

Sentiu a pancada no braço direito, gritou de dor e surpresa. Subitamente, o aparelho começou a adernar, virando-se de lado, a água entrando por uma janela quebrada. Ouviu gritos de todos os lados, e principalmente a voz de Marcelo:

— Vamos, rápido! O aparelho tá afundando! Tirem as roupas! Vamos sair daqui! Vamos, gente, depressa!

Marcelo gritava para os dois pilotos e a namorada, assumindo o controle da situação. O barulho da chuva e das ondas abafava suas palavras. Ainda assim, todos obedeceram com presteza. A água já havia inundado um terço da cabine. O aparelho, emborcado, afundava rapidamente. Marcelo abre a porta do seu lado. Olha para fora: um negrume absoluto, as águas da chuva misturam-se com o mar, as ondas balançam o helicóptero.

— Primeiro você, Virgínia. Fique por perto, vamos nadar juntos.

A moça, decidida, pula, seguida por Marcelo. O choque com a água salgada a assusta e começa a tremer. Mas agilmente se coloca ao lado de Marcelo, que a segura pela mão. Com sinais, o rapaz mostra-lhe uma tênue luz, indicando a direção para a qual devem nadar. Ela compreende e inicia o nado em braçadas precisas. O frio da água era terrível. As agulhas da chuva picavam sua cabeça e seus braços.

Otávio e Délio lançaram-se ao mesmo tempo nas águas revoltas. Bem a tempo de se livrarem do redemoinho criado pela imersão total do aparelho. Não tiveram tempo sequer de retirar os bancos do helicóptero que funcionam, em tais emergências, como bóias salva-vidas. Délio sentiu a dor no ombro logo nas primeiras braçadas. Tenho que me manter perto dos outros, pensou. Por duas vezes foi ajudado por Otávio. As ondas batiam com violência, o frio era intenso. Após alguns minutos, perdeu contato visual com os outros três companheiros. Às fisgadas no ombro acrescentaram-se as dores de câimbras nas panturrilhas. Nadava com dificuldade. O cansaço e as dores aumentavam os embates das ondas.

Os dois namorados nadaram com ritmo e calma. Não saberia dizer quanto tempo nadou, quando ela sentiu a primeira câimbra na perna direita. Tentam permanecer juntos, ele segurando-lhe a mão, gritando, animando-a. A chuva fina e gelada alfineta os corpos, diminuindo a resistência. Virginia sente câimbras, sua mão escorrega da mão do namorado.

Délio sente dores agudas no ombro esquerdo, Não consegue nadar com precisão, as braçadas são prejudicadas pela dor e, em seguida, pelo pânico. Tenho de conseguir. Na direção da luz. Está piscando. Será um farol? Por que pisca tanto? As ondas açoitam o corpo do comandante, submergindo-o a cada movimento. Não se dá conta de que é este se afundar e erguer-se sobre a água que lhe dá a impressão de que a luz pisca. Descansa um pouco. Nova onda o submerge. Estou mais perto, vou chegar lá ! Pela última vez observa a luz, antes que uma onda mais forte o submerja, mergulhando-o numa escuridão fatal.

— Marcelo, tou com câimbra. — Grita para ser ouvida acima do barulho da chuva e das ondas.

O rapaz toma-lhe a mão, puxa-a para si.

— Vamos, falta pouco.

Descansam por alguns instantes. Reiniciam as braçadas, mas as dores continuam. Marcelo nada vigorosamente, ela não mais o acompanha. Agora, também a outra perna fraqueja e o corpo todo parece sentir o frio, a chuva. Uma onda a submerge por instantes. Ao alçar-se novamente sobre a água escura e pesada, não mais vê o namorado. Grita. Olha para todos os lados. Não vê mais os dois pilotos, que vinham atrás. Está sozinha no oceano. Novamente tenta gritar, mas a água salgada entra-lhe pela boca, sufocando-a. Nova onda a arrasta para baixo. Mais para o fundo. Desesperada, bate os braços, chega mais uma vez à superfície, respira fundo. Não consegue nadar, as pernas não obedecem ao seu comando. Descansa um pouco. Meu Deus, tenho de manter-me na superfície.

Otávio não vê mais nada ao seu redor. Apenas a crista crespa das ondas batendo-lhe por trás, empurrando-o na direção da praia. Onde está Délio? Se não ajudá-lo, ele não conseguirá chegar à praia. Procura em vão o companheiro. Decide-se. Estamos perto da praia, vou chegar lá e pedir ajuda. Uma onda fortíssima abate-se sobre ele, que sente a pancada na nuca, fica zonzo, as braçadas se tornam desorientadas, sem ritmo. Por fim, perde os sentidos. Como um destroço, é lançado à praia, desmaiado.

As ondas se sucedem numa rapidez assustadora. Vírginia não consegue se sustentar na superfície. Uma onda mais forte fá-la submergir mais uma vez. Pela última vez. A escuridão final cobre sua consciência enquanto seus pulmões se enchem de água

Marcelo pára de nadar, tenta recuperar o contato com a moça. Não a vê mais. Algumas braçadas ao redor e constata que a perdeu. Tenho de chegar à praia, encontrar socorro. Com essa idéia, aplica-se com esforço redobrado, as braçadas vigorosas rompendo as ondas e ignorando o fustigar da chuva. Por mais de uma hora nadou na direção da luz. Atrás de si, o estrondo das ondas e a escuridão total. Apesar de seu preparo físico, ao chegar à praia mal teve forças para gritar na direção das luzes que via, a uns quinhentos metros, à sua esquerda. Depois de descansar alguns instantes, levantou-se da areia e caminhou em passos trôpegos. Um homem saiu da casa em seu socorro e amparou-o, enquanto ele balbucia palavras incoerentes, fornecendo as primeiras informações sobre a tragédia.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 17 de agosto de 2001

CONTO # 109 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/04/2014
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