TOCANDIRA- A VINGANÇA DO HOMEM FORMIGA.

Tocandira, a Vingança do Homem Formiga.

Jorge Linhaça

"As formigas, agora, deslizavam pelo solo em direção à minha cabeça ...

Tomaram o meu rosto qual um exército mongol a cair sobre suas vítimas, invadiram minhas narinas e ouvidos, picaram meus olhos, meu couro cabeludo... Até que, enfim, a suave mão da morte tocou-me a face disforme e carregou minha alma para fora do corpo martirizado.

Foi assim que deixei aquele corpo material disposto a executar minha vingança "

(O poço das Tocandiras)

***

Minha alma clamava por vingança contra os meus algozes, o suplício que havia suportado fora demasiado atroz para que minha essência eterna encontrasse repouso.

Por meses meu espectro vagou entre as formigas que haviam consumido minha carne, o meu desejo de desforra era tamanho que o próprio demônio compadeceu-se de mim (se é que o demônio se compadece realmente de alguém), de forma que utilizando seus sortilégios fundiu-me aos insetos, outrora meus algozes inocentes, de maneira tal que dessa mistura entre homem e tocandira, ressurgi como uma gigantesca formiga humanizada, ou quase isso, pois meu corpo formava-se e desfazia-se de acordo com minha necessidade, composto por milhares de formigas agregadas. O fato é que além de minha semelhança com as minhas agora amigas; De ter a força proporcional das mesmas e a capacidade de inocular veneno em minhas vítimas, também passei a ter controle mental sobre as suas colônias espalhadas pela floresta. Restava agora localizar aqueles que me haviam supliciado de maneira cruel sem que nenhum crime houvesse eu cometido.

Meu único pecado havia sido, por acaso, dar no seu acampamento de caçadores ilegais. Tão logo me viram e iniciou-se o meu martírio como já relatei anteriormente. Como todos sabem esses caçadores ilegais mudam constantemente de local de acampamento para evitarem ser encontrados pelos poucos policiais florestais. Lembrava-me de cada rosto, de cada traço dos meus carrascos e assim sendo coloquei minhas agora amiguinhas para serem meus olhos na floresta a fim de encontrar o refúgio dos malfeitores.

Passaram-se semanas até que encontrasse o rastro do primeiro deles, refugiado em um pequeno vilarejo de ribeirinhos, já era o suficiente para que minha vingança fosse preparada e eu pudesse saborear o prato que se come frio.

Tão logo minhas amigas formigas informaram o paradeiro do tal caçador, preparei minha tocaia, observando seus passos desde a floresta, esperando que o mesmo logo me levasse aos seus cúmplices. Confesso que meu sentimento de vingança era tão grande que sentia o impulso de acabar com ele logo na primeira vez que o vi, mas isso poderia espantar os demais facínoras, mas, aguardei angustiadamente por algumas semanas , tendo o cuidado de seguir seus passos sem perder o seu rastro.

Meu esforço em manter-me afastado foi finalmente recompensado, mas dois do grupo se reuniram a ele certa noite e montaram um pequeno acampamento próximo a alguns igarapés. Mais alguns dias e o grupo de 7 homens estava por fim reunido, planejando a sua caça de animais silvestres para revender a contrabandistas que os levariam ao exterior...

Esperei que se embrenhassem na mata e começassem a colocar suas armadilhas...Não resisti a semear um pouco de terror antes de executar minha vingança final... Quando colocavam as armadilhas e voltavam ao acampamento, eu as destruía, deixando em pedaços as mesmas com minhas quelíceras e garras.

Divertia-me ao vê-los no dia seguinte vendo o fruto de seus esforços ilegais destroçados e inutilizados...Olhavam ao redor sem nada entender e eu podia sentir o cheiro do medo do desconhecido exalar de suas peles. Passei algumas noites nesse jogo de gato e rato seguindo-os para novos locais para onde se dirigiam temendo que fosse a polícia que houvesse descoberto seus planos.

Nesse meio tempo andava pela floresta permitindo que um ou outro indígena ou ribeirinho me visse, sem, porém, lhes fazer nenhum mal, apesar de minha aparência aterradora. Meu intento logo começou a dar resultado, os boatos sobre o demônio formiga espalharam-se pela floresta e povoados até que, por fim, foram dar aos ouvidos dos tais caçadores que Já não conseguiam dormir estando em estado de alerta constante. Vi o terror se espelhar em suas faces mais e mais a cada dia que passava. Após o joguinho de gato e rato, de deixar meus antigos algozes com os nervos à flor da pele e andando de um lado para o outro da floresta, chegara a hora de efetuar realmente a minha vingança.

O grupo de malfeitores havia decidido fazer turnos de vigília para evitar surpresas do monstro que agora assombrava as mentes dos ribeirinhos e dos indígenas da região.

Evoquei minhas amigas usando os poderes a mim conferidos e fechei o cerco sobre o acampamento dos caçadores. Ao meu comando um grupo de tocandiras literalmente caiu sobre o vigia, soltando-se dos galhos de árvores onde se haviam posicionado. O pobre diabo nada pode perceber até que as ferroadas venenosas começaram a atormentá-lo. Tão logo elecomeçou a debater-se surgi à sua frente como que brotando da terra. Ao ver-me, um grito de horror congelou-se em sua garganta que logo depois jazia, junto com sua cabeça, no solo coberto de folhas da floresta.

Os demais despertaram com o barulho e o pressentimento da tragédia que se abateria sobre eles. Ao avistarem-me, começaram a disparar suas armas, o que foi em vão. Meu corpo, composto de milhares de formigas, recompunha-se imediatamente após ter sido extirpado das formigas onde as balas batiam, aumentando ainda mais o horror em seus olhos. Ao mesmo tempo minhas amigas subiam por suas pernas ferroando-os, causando-lhes dor e febre...Eu ria uma risada gutural e horripilante ao vê-los passar pelo mesmo suplício a que me haviam submetido. Deixei as formigas brincarem à vontade com o bando, fazendo-os contorcer-se de dor e perdendo a noção de realidade. Entrei lentamente pelo acampamento adentro e fui decepando membros e dilacerando carnes, sem pressa, pois o meu maior prazer era estender ao máximo a dor de meus assassinos.

Ordenei que minhas amigas batessem em retirada, deixando para mim o fausto banquete da vingança há tanto esperada. Deixei para o final o chefe do bando, um gringo desses que aprendem o idioma para tirar proveito do povo e das espécies que capturam para contrabandear. Ele bem que tentou resistir, mas, como resistir já com as forças consumidas pelas picadas de minhas amiguinhas ?

Seus olhos arregalados eram a face do terror estampada sobre o que lhe restara do rosto já cheio de calombos das picadas das tocandiras. Arrastei-o para longe do acampamento e prendi-o na mesma árvore ao pé da qual cavaram minha sepultura, para desfrutar de seu sofrimento. Quando me cansei de seus gritos implorando por compaixão comecei a devorá-lo num festim diabólico e delicioso, cuidando para que não atingisse nenhum órgão vital. Enquanto devorava suas carnes ia recompondo a minha aparência humana, pois desejava que ele levasse para o inferno a lembrança da face do homem que ele havia supliciado. Suas últimas palavras foram.

- Não é possível você está morto! Eu te vi morrer!

Cravei-lhe as garras no coração apavorado e devorei seu músculo com prazer.

Agora o morto era ele.