A ÚLTIMA CARTADA

Nunca foi chegado ao trabalho. Gostava mesmo era de caçadas, de pescarias, de mesas de jogo e de bordéis. A fazenda herdada do pai, vendeu-a tão logo achou comprador e vivia da renda do capital emprestado a altos juros a diversos. Mas nem mesmo pela administração do seu dinheiro se interessava: deixava a cargo da mulher Eleonora. Com seus amigos de pescarias e caçadas aventura-se, a cada três ou quatro meses, em excursões para Goiás, Pantanal, e regiões mais remotas. As expedições de aventuras são entremeadas, sempre que possível, com visitas aos prostíbulos e pensões de mulheres. Gaspar Nazário goza a vida e gosta da vida que leva.

Quando está em sua casa, na companhia de Eleonora, é um homem tranqüilo. Aliás, nos poucos momentos em que fica em casa, descansando das noites passadas no Clube Elite. Ou na pensão de Maria Polaca, que tem as melhores mulheres da zona de São Roque da Serra. No Clube Elite joga todas as noites com a roda de companheiros, terminando quase que invariavelmente numa partida final com Ramiro Miranda. Se ganha numa noite, perde na outra e sai equilibrado em dinheiro, mantendo a fama de jogador frio e o respeito dos companheiros da mesa verde. Passa as tardes no Bar do Centro em intermináveis conversas com os amigos de pescaria e de caçadas, comentando os melhores lances da viagem anterior e combinando novas expedições.

Seu casamento com Eleonora, a princípio romântico, transformou-se, por força de seus constantes afastamentos em busca de aventuras, numa mera formalidade. Eleonora, como já se sabe, é quem administra os bens do casal, com certa habilidade. Não se incomoda nem um pouco com a rotina (ou falta de rotina) da vida do marido. Apaixonou-se por Gaspar, fascinada pelos relatos de suas caçadas e pescarias. Se sonhava viver com o marido aquelas exóticas aventuras, seus sonhos desvaneceram-se, pois jamais seria admitida na comitiva dos expedicionários, que era exclusivamente formada por homens. Com o passar dos anos, o relacionamento amoroso foi sendo substituído pela simples conveniência de ter um marido, uma casa, ainda que sem filhos. O amor acabou-se. Gaspar era indiferente à permanente beleza selvagem, à morenice brilhante da pele, aos olhos negros, aos cabelos cascateantes sobre ombros suaves, ao porte ágil e elegante de Eleonora.

Não têm filhos. Quando se deu conta do tipo de vida que o marido levava, Eleonora até achou conveniente a incapacidade de gerarem filhos. Ele jamais seria um pai exemplar. Há ainda a questão da fidelidade. Se Gaspar freqüenta com desenvoltura todos os bordéis do Triângulo Mineiro até Corumbá, passando por Goiânia e Ponta Porá, Eleonora é fiel. Ou melhor, foi fiel, até há uns dois ou três anos atrás. Não resistiu ao assédio do simpático, elegante e bem-falante Ramiro Miranda.

Ramiro Miranda: jogador profissional, ex-cafetão de Greta Garbo, nome de guerra de famosa prostituta em todo o Sul de Minas. Joga todas as noites, até de madrugada, no Clube Elite, e ganha sempre. A última vez em que perdeu foi para Fernando Moreira, que acabou sendo morto pela própria mulher, justamente na manhã daquela madrugada, ao chegar em casa. Ramiro nunca teve como recuperar o dinheiro, quinhentos mil réis, uma pequena fortuna na ocasião. Seus parceiros de baralho são fregueses habituais. Ramiro, entendido que é no carteado, permite que haja pequenos ganhos pelos adversários, maneira de conservar a roda. Mas, no final de contas, é ele quem leva a melhor.

Seu adversário mais corajoso é Gaspar Nazário — quando está na cidade. Atravessam as madrugadas com os cotovelos fincados na mesa do pôquer. Não se sabe qual dos dois é o melhor, pois ambos são frios, blefam e fazem altas apostas. Invariavelmente se equilibram nos ganhos e nas perdas. Todavia, Gaspar vem atravessando uma fase ruim e há duas semanas que vem perdendo, sistematicamente, para Miranda. Seus blefes não são eficazes e as cartas não estão a seu favor.

Bom jogador, Gaspar não se perturba à mesa do carteado ao desafiar o amante de sua esposa. Não será isto que irá prejudicar seus lances. Mas as noitadas de azar se sucedem inexoráveis. A sorte favorece Ramiro de todas as maneiras, o qual tem dupla satisfação ao enfrentar Gaspar: ganha no jogo e na cama (quando o adversário viaja). Sabe que o Gaspar conhece a traição da mulher. Gaspar tenta, na mesa de jogo, vencer Ramiro, mostrar que é o melhor. Mas o que está acontecendo é justamente o contrário: Gaspar está perdendo, e perdendo feio. Nas últimas noites, tem assinado promissórias de elevado valor para cobrir os lances de Ramiro.

Na noite de sexta-feira, ao sair de casa, pouca atenção dá à esposa. Diz um “até logo” ao qual ela responde sem entusiasmo. Leva no bolso a escritura de sua casa, hoje recupero tudo e vou quebrar esse escroque! Pretende usar o valor da própria casa, representada pelo documento, para forçar o adversário a um lance final e irrecusável.

Sentados à mesa, a rodada começa, como todas as noites, com os adversários se assuntando, pedindo cartas, formando seqüências e fazendo os lances. Uma falsa tranqüilidade num ambiente que vai se tornando carregado de nervosismo, cautela e desconfiança. Acontecem os primeiros blefes. A jogatina segue pela noite e madrugada. Alguns parceiros saem do jogo, mas permanecem sapeando. A roda de assistentes é sempre numerosa.

No centro da mesa amontoam-se notas de elevados valores, promissórias (principalmente de Gaspar) e fichas. No lance final, Gaspar coloca sobre o amontoado de valores a escritura de sua casa. É um lance de vida ou morte. Blefando e negaceando, enfrenta os olhos frios de Ramiro. Os dois estão atentos aos lances, às cartas. Nervosismo. Silêncio. Quebrado pelas palavras de Ramiro, ao revelar sobre a mesa as suas cartas:

— Royal flush! — E exibe uma seqüência de ouros, de dez a ás, entremeadas pelas figuras impávidas do valete, dama e rei.

A seqüência insuperável não tem resposta de Gaspar, que, impávido, fecha seu jogo, sem revelar as cartas. Sem titubear, convoca o parceiro para mais uma cartada, a última, na base do tudo-ou-nada.

— Mas o que você ainda tem para perder? — A pergunta sarcástica de Ramiro soa como uma chicotada em Ramiro.

— Ganhar! Ganhar! Agora, vou ganhar tudo o que perdi. — Gaspar, obcecado, não raciocina mais com clareza.

— O que quer apostar?

Gaspar chega-se ao ouvido de Ramiro e sussurra. Uma aposta tão pessoal que nenhum dos companheiros de mesa ou assistentes poderá saber. Os olhos de Ramiro se abrem de surpresa, e, em seguida, brilham de prazer antecipado. Nem acredita na proposta de Gaspar, mas responde no momento:

— Topo!

Abrem novo baralho para o último jogo. Agora entre os dois, apenas. No centro da mesa permanecem as fichas, as notas promissórias, a escritura da casa e o dinheiro dos parceiros, ganhos por Ramiro, tudo contra o lance apalavrado e secreto de Gaspar.

Gaspar recebe as cartas, está bem com uma seqüência de dois reis. Ramiro pede cartas, e compõe sua mão. Novo pedido de cartas e Gaspar se entusiasma. Ramiro está frio, olha de relance para Gaspar, percebe o brilho nos olhos do adversário. O jogo prossegue por muitos minutos, os jogadores formando suas seqüências. De repente, Ramiro diz, mansamente, quase que para si mesmo:

— Straight!

E esparrama sobre a mesa a sua mão: cinco cartas de copas numa seqüência de quatro a oito, sem figuras.

Gaspar empalidece por alguns instantes. Não, não pode ser, deve ser um pesadelo. Vou acordar. Mas se dá conta, em seguida, de que realmente perdeu tudo o que apostou. Levanta-se lentamente e aperta a mão de Ramiro.

— Tá certo, você ganhou. Fica com tudo.

Veste o paletó, aperta o nó da gravata. Desde a escadaria de cabeça baixa. Na portaria do clube, recebe o chapéu. Na rua, dirige-se para a estação da estrada-de-ferro. Amanhecia.

Diversas pessoas dão testemunho do embarque de Gaspar Nazário na composição de passageiros, que passou às seis e dez daquela manhã. Sozinho, sem mala nem bagagem. O bilhete foi comprado para a próxima estação, a uns poucos quilômetros de São Roque da Serra, conhecida como Avarémirim. Onde nunca chegou. O fiscal do trem afirma ter picotado a passagem de Gaspar pouco antes da passagem do comboio pela alta ponte sobre o rio Pedra Negra, encachoeirado e selvagem, que corre por entre pontiagudas pedras, uns cinqüenta metros abaixo.

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ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 18/JULHO/2001.

CONTO # 103 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/03/2014
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