OS FILHOS DO ÓDIO

Jorge Linhaça

Acordou disposto a tudo naquela manhã, sob o chuveiro ensaiou os seus gritos de guerra, deixando que a adrenalina se despejasse desde cedo em sua corrente sanguínea.

Mentalizava, passo a passo, o que haveria de fazer, criava situações diversas com desfechos sempre favoráveis aos seus desejos. Criava dificuldades e encontrava desde já as soluções, tecendo um mapa mental de cada passo naquele domingo.

Era um dia de confronto, um dia de matar ou morrer, não importa quem fosse o adversário direto que lhe caísse nas mãos, só importava que usasse outras cores.

A paixão e a falta de razão eram tudo que conhecia desde muito tempo, aprendera a ser uma máquina programada, qual um soldado que vai à guerra seguindo ordens obscuras pelo simples prazer de querer parecer mais másculo que os demais.

Para ele era heroico ser enterrado em um caixão com a bandeira de suas cores, cercado de outros como ele que faziam do ódio e da busca insana da autoafirmação um motivo “louvável” para perpetrar os atos mais estúpidos.

Partiu ao encontro dos seus amigos que já o aguardavam no ponto combinado. A concentração foi ganhando corpo, os gritos de guerra e promessas de morte ia se espalhando pelo ar contagiando a turba ensandecida. Nada mais importava; Nada mais era real, apenas o ódio e o desejo de vitória alimentava o bando. A bebida e as drogas rolavam soltas de mão em mão entre os uniformizados e animalescos para-soldados.

Relembravam embates anteriores, suas façanhas vitoriosas e as derrotas. Tudo isso aumentava o frenesi diabólico que tomava conta de suas mentes ensandecidas, empedernidas, incapazes de pensar em outra coisa senão na violência premeditada.

O satânico cortejo desfilou pelas ruas da cidade ao som dos cantos de guerra, empunhando suas bandeiras rumo ao confronto almejado.

Em outro ponto da cidade outro grupo se reunia, movido pela mesma sede de sangue, dispostos a tudo para honrar suas cores executando um ritual semelhante para potencializar seus resultados.

Ambos rumavam para o mesmo destino, uniformizados, bandeiras em punho, dispostos a tudo para demonstrar sua supremacia.

Estranhas sombras espectrais foram descendo sobre eles, incorporando-se à procissão, grudando-se invisivelmente aos corpos dos valentões.

O palco estava armado, a praça de guerra aguardava pelos gladiadores do inferno, demônios travestidos de gente cujo único e primordial objetivo era espalhar o terror.

Chegaram ao destino e cada qual se dirigiu aos seus locais de acesso, provocando os rivais que cruzavam seu caminho, preparando desde já o espírito para o confronto animalesco que poderia ocorrer a qualquer momento.

Na arena, abaixo deles, os representantes de suas cores foram ovacionados com seus nomes cantados em coro. O grupo que seria o centro do espetáculo preparava-se para o confronto sob os olhares de seus seguidores.

O coliseu estava repleto de gente de todas as idades, alguns, inocentes espectadores, outros cúmplices do ódio irrestrito.

Enquanto os protagonistas se preparavam para a batalha em campo, os grupos antagônicos gritavam provocações aos seus rivais, alheios mesmo ao que se passava lá embaixo, não estavam ali para ver os seus pretensos ídolos, estavam ali para roubar a cena diante de milhões de espectadores em rede nacional, esperançosos que as imagens rodassem o mundo como testemunhas de sua fúria insana.

A fama, para eles, era o que importava, fosse por qual meio viesse.

E o meio mais fácil é sempre o caminho do mal.

No campo a bola já rolava pelo gramado com cada jogador defendendo as suas cores da melhor maneira possível.

Nas arquibancadas os dois grupos mal olhavam para o campo, mais preocupados em atiçar seus rivais, cultuando a ira e evocando a morte como se esta fosse sua deusa.

A "temperatura" foi subindo, as ofensas ganhando força e, como que movidos por uma força invisível, empurrados pelas mãos do próprio Satã, os dois grupos lançaram-se, com fúria assassina sobre o espaço criado entre eles para evitar que se confrontassem.

A força policial nada pôde fazer para conter a fúria dos torcedores alucinados. Foram engolidos pela massa “humana” vinda das duas direções e só restou-lhes tentar defender-se da fúria assassina de centenas de demônios.

Cada um dos oponentes parecia tomado por uma força sobre-humana, seus olhos injetados de sangue pareciam as brasas do próprio inferno.

Os mais fracos caiam e eram pisoteados até a morte pelos adversários, enquanto que os mais fortes buscavam suas vítimas tal e qual os predadores que buscam os animais mais fracos das manadas para cravar-lhes os dentes.

A morte, vestida de seu manto negro sobrevoava o estádio com a foice em riste colhendo as almas dos abatidos na insana batalha campal ali instaurada, entregando-as às sombras demoníacas, aos seres das trevas que as acompanharam até ali, que, por sua vez, arrastavam-nas para o inferno entre gritos agonizantes e ameaças.

As câmeras de TV deixaram o campo de jogo de lado para registrar o vandalismo e os corpos que agonizavam aqui e acolá.

Os jogadores, sem crer no que viam, tinham as mais diversas reações, alguns gritavam inutilmente para que a turba se acalmasse, outros despencavam em prantos ao ver tamanha insanidade e selvageria.

Tudo lhes servia de armas improvisadas, cadeiras arrancadas, pedaços de concreto, cassetetes tomados dos policiais, agora acuados em um canto, sem ter como intervir.

Foram minutos de terror explícito em que o demônio festejou cada soco, cada pontapé, cada ferimento e cada morte como se fosse um gol de final de copa do mundo, enquanto enchia a antessala do inferno com seus novos “convidados”.

As imagens da TV registaram até mesmo atos de canibalismo durante o confronto, jamais se havia visto algo tão insano, jamais alguém estaria preparado para tamanha tragédia.

Bocas tingidas pelo sangue alheio mastigavam tecidos e entranhas de corpos humanos arrancados durante a luta.

Membros humanos arrancados, quebrados em fraturas expostas, tornavam-se armas nas mãos dos antagonistas.

Corpos sem vida de ambos os grupos rolavam pelos degraus tingidos de rubro num rio de sangue repleto de genes da selvageria.

O festim diabólico parecia jamais ter fim, até que uma grande tempestade formou-se como que do nada, nuvens negras e carregadas cobriram o estádio aumentando ainda mais o pavor dos que nada tinham a ver com o massacre.

Raios riscavam os céus enegrecidos precipitando-se sobre a turba enfurecida, fulminando os assassinos que buscavam escapar impunes, agora acometidos pelo medo da morte que pareciam não sentir durante suas ações malditas.

Entre trovões e raios, há quem jure que podia ver ouvir o gargalhar do demônio cuja face projetou-se nas nuvens, emanando de sua boca os raios mortíferos que caiam nas arquibancadas.

Lá fora, o som das sirenes de ambulâncias, bombeiros e viaturas policiais anunciavam a proporção da tragédia para aqueles que não acompanhavam ao vivo pela TV.

O diabo e seus ajudantes tiveram muito trabalho naquele dia, recepcionando centenas de almas que cultuavam a morte como sua rainha e agora a haviam encontrado da maneira mais selvagem possível.

Entre os primeiros a serem recepcionados estava nosso personagem.

Jorge Linhaça