SUSPEITA E CONSPIRAÇÃO

Dedicada demais à sua profissão, Janete descuidara-se da própria felicidade. Sua juventude fora gasta no afã de estudar muito, obter boas notas na Escola Normal e, em seguida, no Conservatório de Música de Campinas. Diploma na mão, voltou à pequena cidade de origem, a fim de conquistar a vaga de professora de arte no Ginásio Municipal. Formada e empregada, dedicou-se com amor ao seu mister de colocar um pouco de beleza na vida dos garotos e garotas de suas classes. Com a pequena renda de sua atividade tem de sobreviver e ajudar os pais, idosos e sem fonte de renda. Aulas particulares de piano (felizmente o piano estava pago, graças à ajuda do padrinho, Dr. Romeu Fontes) acrescentam alguns cruzeiros ao seu salário. Janete agradecia sempre que podia esse grande auxílio do amante da ópera e da música erudita, que reconheceu na afilhada o talento musical.

Dessa forma, eis Janete aos trinta anos, linda moça que já fora objeto de olhares e suspiros por parte de alguns moços da cidade, mas agora definitivamente inserida na classe das solteironas, na qual estavam já diversas outras professoras, aliás, a maioria das professoras do curso primário, mais quatro enfermeiras da Santa Casa, seis ou sete telefonistas e duas funcionárias do Banco da Lavoura. Vivia-se na década de ’40 e, de maneira geral, as moças que eram obrigadas a trabalhar “fora de casa” permaneciam no celibato.

Mas Janete era vistosa demais, elegante, afável, brilhante sorriso e olhos azuis muito vivos, para não despertar paixões. Viu-se alvo das atenções de Casemiro Barbosa. Logo quem... pensou Janete, na primeira abordagem, numa quermesse da festa do padroeiro da cidade. Nem soube como responder. Sentiu um misto de lisonja e de afronta. Porque o Miro era um homem e tanto. Alto, moreno, vasto bigode preto e olhar penetrante, seria um excelente companheiro, sem dúvida. O sentimento de afronta era por conta de um detalhe: Miro Barbosa, grande fazendeiro, criador de gado, era casado.

A turma dos criadores de gado, a principal atividade dos fazendeiros de São Roque da Serra, era unida para todos os negócios. Quem passava pela Praça da Matriz entre uma e três horas da tarde, só via um amontoado de chapéus brancos. Sob as copas dos chapelões os grandes criadores conversavam, faziam e desfaziam negócios. Alguns, menos poderosos ou mais espertos, iam até a agência do Banco do Brasil propor financiamentos baseados nas negociatas tramadas na praça. Era a turma dos “chapéus brancos”, o grupo mais poderoso e audacioso da cidade. As maiores fortunas estavam em suas mãos, representadas por gado e por polpudas contas correntes nos bancos locais. As carteiras sempre cheias de notas de mil.

Quando Miro Barbosa apostou, por brincadeira, com o vizinho de terras Joaquim Carvalho que conquistaria Janete (olhada com cobiça por todos do grupo) foi objeto de risos e brincadeiras. A aposta foi aceita não só por Joaquim, mas por diversos outros, que sabiam da integridade da professora. Era do conhecimento de todos: ela jamais tivera sequer um namorado.

Entretanto, a insistência, a lábia, os presentes e o assédio foram tão intensos e feitos de maneira tão romântica, que Janete caiu na trama de Miro. Aconteceram encontros secretos, Miro se locomovia com facilidade, pois era um dos raros donos dos poucos automóveis da localidade. Tinha um vistoso Chevrolet modelo Vitória, do ano de 1946, que usava tanto para o trabalho – idas e vindas da fazenda – como para lazer: tardios passeios noturnos com a namorada. Janete só acedeu em sair com Miro mediante a promessa solene de que ele iria separar-se da mulher.

Ora, essa promessa de Casemiro era uma enganação. Bem casado, pai de quatro moças, elemento de destaque na sociedade, a separação de Dona Candinha era a maior balela que Miro podia impingir a Janete.

Dona Candinha, a esposa de Casemiro, era dama da alta sociedade. Estimada por todos. Participante de quantos movimentos caritativos surgissem na cidade. Colaborava com Monsenhor Licurgo nas atividades da paróquia: fiscalizava a limpeza da igreja, examinava diariamente os armários da sacristia, a ver se paramentos e objetos para a celebração da missa estavam todos em ordem. Dirigia a distribuição da “sopa da caridade”: uma refeição diária, por volta das 11 horas da manhã, para mais de cem mendigos e necessitados. Para ela e para a maioria das mulheres do mesmo grupo – as carolas, rezadeiras e outros epítetos colocados — coisa curiosa — pelos próprios fieis da igreja, as atividades caritativas eram como que um refúgio, uma fuga dos problemas familiares. No caso de Dona Candinha que, nos seus quarenta anos ainda mostrava um resto do charme da juventude, era uma compensação para o descuido do marido, que só aparecia em casa para as refeições e chegava para dormir quando a madrugada já ia adiantada. Dona Candinha não sabia por onde o marido andava — ou fingia não saber. Porque os boatos já lhe tinham dado conta dos passos de Miro, de dia e de noite.

São boatos. É intriga dessa gente invejosa, que não sabe o que é felicidade. Mulheres que nunca foram felizes com seus maridos. Pensava, e se sentia satisfeita. Apoiava-se cada vez mais no grupo de mulheres dedicadas às obras sociais, bem vistas pela pobreza, liberadas diariamente de suas culpas no confessionário e na mesa da comunhão e que se colocavam acima dos zunzuns que corriam pela cidade.

Tudo tem um limite, entretanto. Até a compreensão e a paciência de uma alma cristã. Cresceram tanto os rumores sobre o romance “secreto” entre Miro e Janete, que Dona Candinha não teve como ignorá-los. Aliás, o romance de encontros fortuitos tinha se consolidado, nos últimos meses, numa convivência em comum e no estabelecimento de uma casa só para Janete. Miro não teve nenhum escrúpulo em comprar uma casa em local bem situado, no alto da cidade, em bairro de classe, e instalar Janete com todo conforto. Já não tinha cuidado em estacionar seu carro defronte a casa durante o dia, nem evitava levar a professora, em seu carro, até o ginásio, onde ela continuava lecionando, apesar dos comentários que fervilhavam ao seu redor.

Dona Candinha se aborreceu com o desplante do marido e da amante. Isto exige uma atitude, não posso ficar assim, sem fazer nada.

Procurou a Maria das Ervas. A misteriosa provedora de ervas medicinais para uma grande clientela na cidade tinha remédio para tudo. Principalmente para casos de amor, traição, infidelidade e afins. Os chás preparados com suas ervas eram tiro-e-queda. Fazia também garrafadas, principalmente para os clientes masculinos. Poderosas beberagens que despertavam o entusiasmo sexual e potencializava outras capacidades adormecidas.

Maria das Ervas comparecia à distribuição da “sopa da caridade” nos dias em que vinha à cidade. Morava num lugar tenebroso, o Brejo do Desterro. Só ela sabia o caminho de sua cabana, construída no meio do pântano. Ninguém se atrevia a chegar nem perto de sua morada: lugar tétrico, de arvores retorcidas e mirradas, o solo encharcado exalando miasmas durante o dia e soturnos ruídos nas horas sombrias. Maria das Ervas era uma das últimas representantes da confraria milenar de bruxas e magas que, como se pensava, estava em franca extinção.

— Maria, passa lá em casa mais tarde. — A ordem foi dada com autoridade e, pelas quatro horas, entregues todas as encomendas, Maria das Ervas bateu à porta do sobrado de Dona Cândida.

Dona Candinha foi direta ao assunto, não havia segredos entre a ervateira e os clientes.

— Quero algumas ervas pra trazer meu marido de volta. Está sustentando a amante, até montou casa pra ela. Quero ele de volta. Você me arranja o que for preciso.

— A senhora quer as ervas ou uma garrafada, já preparada?

— Me traz uma garrafada que eu possa misturar no aperitivo ou no vinho pra ele tomar.

Na semana seguinte, a bruxa entrega o encomendado por dona Candinha.

— Mistura uma colher desta poção num copo de vinho ou de aperitivo. — Passa o frasco acompanhado das instruções verbais. — Uma vez por dia, na mesma hora.

Miro apreciava bebidas fortes. Indispensável um aperitivo, antes das refeições. No seu armário de bebidas mantinha diversas garrafas de cachaça, que tomava pura ou misturada com fernete, forte bebida amarga que oblitera, por completo, o sabor da mais forte aguardente. A mulher, astuciosamente, mistura a poção à fernete e deixa a cargo do próprio marido a ingestão da beberagem que o trará de volta ao aconchego de seus braços.

Na manhã seguinte, começou o tratamento. Miro chega para o almoço cansado pela lida da fazenda, vai ao armário de bebidas e serve-se de uma generosa dose de cachaça com fernete. Toma o martelo de bebida em dois goles rápidos. Senta-se à mesa com a mulher e as filhas e almoça com apetite. Para desconforto das meninas e da mulher, emite sonoro arroto final, antes de levantar-se e sair de casa.

Satisfeito, dirige o carro para a casa de Janete, onde pretende descansar até a hora de encontrar-se com os amigos de chapéus brancos. Antes de lá chegar, sente uma zoeira, uma nuvem passa por sua vista, tem um instante de branco. Quase atropela um ciclista, antes de recuperar-se do colapso momentâneo.

Ao entrar na sala da casa, outro mal-estar, desta vez acompanhado de fraquejamento das pernas. Quase cai ao abraçar Janete, que o sente afogueado e desconexo. Enquanto ampara o amante, levando-o para o quarto, grita para a empregada:

— Lilica, corre, chama o doutor Geraldo.

A menina é esperta e o doutor Geraldo mais ainda, apesar dos seus sessenta anos bem vividos. Contudo, ao chegar, encontra Janete chorando desbragadamente sobre o corpo do amante. Tarde demais para providenciar socorro, mas em tempo para verificar a causa mortis.

— O senhor Casemiro foi envenenado, disso não tenho a menor dúvida. — Foi a primeira declaração do doutor Geraldo, em seu depoimento no inquérito policial, no dia seguinte. — Agira com presteza e conforme sua obrigação, comunicando sua suspeita ao delegado de polícia tão logo saíra da casa de Janete, na tarde do dia anterior.

— Como pode afirmar de modo tão categórico?

— Pela própria aparência do corpo. O homem havia expirado há poucos minutos, ainda mostrava sinais evidentes de cianose. Os resultados da autópsia irão confirmar minha denúncia.

Sim, o doutor estava certo. Foi constatada a presença dos elementos causadores da morte. Haviam sido ingeridos naquela manhã, antes ou durante a refeição. A investigação feita pelo delegado, entretanto, acabou num beco sem saída. Se, por um lado, inocentou Janete, não o levou a examinar detidamente os hábitos de Casemiro. Não havia a mínima suspeita de crime, a família era um exemplo social, o falecido estava bem de saúde e não tinha desafetos. Mantinha bom relacionamento com todos: amigos, empregados, filhas e esposa.

Dona Candinha, na sua inocência aparente não ligou a ingestão do aperitivo à morte do marido. E tudo terminaria por aqui não fosse a virulenta rejeição social àquele incidente fatal.

A primeira suspeita caiu sobre Janete. O fato de Casemiro ter morrido na sua casa foi a gota d´água para sua demissão do ginásio. O affair entre Casemiro e Janete já durava mais de cinco anos, mas foi preciso a constatação do fato dramático, para que a direção do ginásio exercesse o patrulhamento e despedisse a professora. Sem direito a apelações.

Em seguida, a viúva sofreu a rejeição do próprio grupo que liderava. Foi considerada culpada pela traição do marido e, pouco a pouco, foi sendo isolada, deixada de lado. Monsenhor Licurgo tentou manter o seu prestígio nas obras de caridade, precisava dela e de seus recursos financeiros, doados à larga à igreja. Inutilmente. O poder das carolas reunidas foi muito maior do que qualquer solicitação do Monsenhor. Dona Candinha finalmente abandonou as obras sociais e foi diminuindo sua freqüência na igreja, a ponto de agora só ir à missa de quando em vez.

Alguém do grupo dos “chapéus brancos” desconfiou da coisa. Um vaqueiro da fazenda do falecido Miro passara a informação da garrafada preparada por Maria das Ervas às vésperas do evento. Ligou um fato com outro e levou sua desconfiança para o grupo.

— Acho que devemos comunicar ao delegado.

— Cê tá mas é besta, cumpadre (todos se tratavam como compadres naquela irmandade). Que é que temos a ver com isso tudo? — Quem mais alto estrilou foi Joaquim Carvalho, ganhador da aposta feita contra Casemiro. — Vamos acabar sendo enrolados na confusão.

O boato chegou aos ouvidos do delegado, que convocou os chapéus brancos para depoimentos na delegacia. Foi um Deus nos acuda! No primeiro momento, os convocados pretenderam ficar unidos, ninguém sabe de nada, ninguém fala nada. Ficou tudo acertado. Alguém quebrou o trato e falou das suspeitas, do relatado pelo vaqueiro.

O enérgico e impoluto Dr. Archibaldo passou a suspeitar de um complô contra o falecido. A investigação aprofundou-se e a solidariedade entre os “chapéus brancos” evanesceu-se como orvalho da madrugada aos primeiros raios do sol forte da manhã. Cada um para o seu lado, o diabo que pegue o último, pensou Joaquim Carvalho. Dessa forma, a suspeita chegou ao grupo mais poderoso da cidade.

O assunto iria mais longe se um dos importantes pecuaristas, sentindo-se ameaçado, não tivesse usado seu prestígio político: viajou para a capital, onde, em seu nome e em nome de todos os chapéus brancos da cidade, exigiu de seu deputado a solução do problema. Conseguiu a transferência do Dr. Archibaldo para uma cidade no norte do estado, local muito além de onde o Judas perdeu as botas.

Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 8 de maio de 2001.

Conto # 90 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/03/2014
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