PRESO POR 265
— E quer saber do mais? Suma daqui, desaparece da minha vida!
— Mas, Dolores. . . !
— Não tem mas nem meio mas. Rua!
Com um cabo de vassoura na mão direita, apontou, com a mão esquerda, a porta da saída da pequena casa. Finalizava ali um relacionamento tumultuado de há mais de cinco anos. Para Zé Carlos a crise era o clímax de uma série de fracassos nos últimos meses. Perdera o emprego há tempos, envolvera-se com maconheiros e as brigas com Dolores amiudaram-se. Agora, com essa atitude da mulher, perdia, de uma só vez e definitivamente, não só o afeto da companheira como também o lugar onde morava sem pagar.
Zanzou desesperado pelas ruas durante toda a tarde do domingo. Pensando na sua vida. Cheia de sofrimento, desespero, decepções. Lembranças, todas tristes. Quando chegou em Sorocaba era apenas mais um trabalhador em busca de serviço. Recusara-se a participar do Movimento dos Sem Terra porque tinha medo dos entreveros com a polícia. Preferiu viajar da sua pequena cidade do Piauí, enfrentando todas as dificuldades para conseguir algum serviço no sul.
Através de ruas, vielas, sem destino. Desviou-se dos lugares onde poderia encontrar os “amigos” de fumar juntos. Caminhou por muito tempo, perdeu a noção do tempo. O cansaço e a fome aumentando o desespero. A desgraçada nem me deixou almoçar, tou até com dor no estômago, de tanta fome.
A caminhada ficou sem rumo, passou a andar a esmo, perdido em suas lembranças. Queria mais era sumir no mundo. Dolores era a razão de sua vida. Sua miserável vida. Que merda, sem ela num sou ninguém, nada mais vou conseguir nesta vida desgraçada. Às ruas asfaltadas sucederam-se os becos, caminhos entre barracos. As casas foram rareando. Zé Carlos continua. Agora, na rodovia, caminha pelo acostamento. Na tarde que está terminando, o trânsito de veículos é pouco e a estrada está sem movimento. Se passar um caminhão desses grandes, me jogo debaixo dele. – Pensa. Mas só passam carros.
Ao longo da rodovia Zé Carlos observa a fileira de torres de transmissão de energia elétrica. Fascinado pela altura e transtornado pelo desespero, pensa numa outra maneira de acabar de vez com sua desgraça. Trepo na torre e me jogo lá de cima. Do pensamento à ação apenas alguns minutos são decorridos e eis o homem subindo, com uma agilidade insana, pelos ferros da torre.
— Depressa, Gabriel! Mete o pé no acelerador, já está quase anoitecendo e... Epa! Que é aquilo lá na torre?
— Onde?
— Lá naquela torre, olha lá. — Jaime aponta e Gabriel também vê.
— É alguém que tá subindo. O cara tá louco?
Aproximam-se. Gabriel pára o carro ao lado da torre onde, vinte ou trinta metros acima, a figura de Zé Carlos se destaca contra o céu cor de laranja do poente. Descem ambos da camionete.
— Hei, cara! Desce daí. Cê vai cair!
Zé Carlos continua a subida. O vento forte mais o zumbido da corrente de alta voltagem, passando pelos fios, impedem-no de ouvir os gritos. Na ânsia de subir cada vez mais, nem mesmo viu o veículo e seus ocupantes, lá em baixo.
— Não adianta, ele não vai escutar a gente. Vamos avisar a polícia.
Entram na camioneta e disparam rumo à delegacia de polícia. Ao chegarem, já está escuro.
— Tem um cara trepado numa torre de transmissão, perto da rodovia. — Afobadamente, dão ciência do que viram.
O delegado Silvério, de plantão naquela tarde de domingo, se encarrega da diligência, acompanhado de um policial. Ao se aproximarem da torre, ligam o farol móvel da viatura. O poderoso facho de luz sobe pela torre e encontra o homem lá em cima. Imóvel. Com o megafone, o delegado ordena:
— Aqui é o delegado de polícia. Desce daí imediatamente! Ouviu ? Desce daí!
O homem na torre parece ter ouvido. Olha para baixo, mas permanece imóvel.
— Cabo, avise o corpo de bombeiros.
Através do rádio da viatura policial, o Cabo Elizeu se comunica com os bombeiros e pede ajuda. Os dois agentes da lei aguardam. Por mais duas vezes, pelo megafone, o delegado ordenou ao homem que descesse. Sem resultados.
— O camarada não se decide. Subiu e agora tá com medo de descer. — Comenta o delegado.
— Penso que ele vai se atirar de lá a qualquer momento. — Arrisca o cabo.
O carro do corpo de bombeiros chegou berrando a sirena. Com a presteza de sempre, a equipe tomou logo as medidas para o resgate do cidadão imóvel na torre.
— Sargento, peça à companhia de eletricidade para desligar a energia elétrica destas torres.
O pedido feito, a energia foi desligada. Eram 20 horas e a interrupção da energia das torres de transmissão afetou toda a região: 22 cidades e mais de 1 milhão de pessoas ficaram sem energia.
Trabalhando com destreza, três homens do batalhão de emergências subiram pela torre, usando cordas e ganchos, com segurança máxima, e levando cordas e apetrechos necessários para resgatar o homem.
— É claro que ele queria se suicidar. Jogar-se lá de cima. — A afirmativa é do tenente que comanda a esquadra de bombeiros, que tem experiência de lidar com casos assim.— Só que faltou coragem. O risco agora é de um escorregão,um movimento em falso.
O resgate levou cerca de quarenta minutos. Tempo durante o qual as linhas telefônicas se congestionaram. Milhares de pessoas precisavam de informações, ou queriam saber o que se passava. Hospitais, cinemas, casas de espetáculos, estações de trens, de ônibus, tudo se ressentia da falta de energia. Centenas de pessoas ficaram presas, por momentos, em elevadores. Assaltos ocorreram em todas as cidades que permaneceram às escuras naqueles minutos da noite de domingo.
Zé Carlos estava meio zonzo, ao ser colocado no solo, ao lado do carro de bombeiros. Seus braços estavam esfolados pelo atrito das cordas e esbarrões nas ferragens da torre. Não conseguia sequer falar seu nome, identificar-se. Foi levado imediatamente para o Pronto Socorro do Hospital de Sorocaba para receber curativos. Quando saiu do hospital, viu-se numa situação das mais estranhas que poderia imaginar.
— O senhor está preso. — A ordem veio do delegado de polícia. — Está enquadrado no artigo 265. — Sargento, recolha o indivíduo ao xadrez. — O delegado se referia ao artigo 265 do Código Penal, que prevê prisão para quem cometer atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública.
Zé Carlos demorou a entender o que se passava. Ao entrar na cela da delegacia, tremia e chorava como criança. Nem mesmo falar conseguia. Na segunda feira, foi transferido para o Centro de Detenção Provisória. Era um verdadeiro farrapo humano: muito magro, curvado, as faces encovadas e os olhos fundos nas órbitas negras. Ao dar entrada no Centro, foi submetido ao interrogatório de praxe. Verificou-se que o preso não tinha antecedentes criminais e jamais esteve internado para tratamento de moléstias mentais. Sem profissão, trabalhava como ajudante de pedreiro, até que perdeu o emprego e vivia de biscates.
— Os outros presos estão me ajudando, doutora. — Na entrevista com a procuradora do Estado, Zé Carlos vai falando de sua vida. — Não sei o que me deu. Saí de casa desesperado e deu na cabeça de me matar. — Relata seu desespero, a briga com a companheira. A advogada toma nota do endereço da casa de Dolores.
Durante uma semana Zé Carlos fica detido. Os dias são cinzentos, as noites frias. É a mesma coisa de estar enterrado vivo. Antes tivesse me atirado do alto da torre. Emagrece ainda mais, tem acessos de calafrios e tonteiras. Mas ninguém lhe presta atenção. Não tem para quem apelar.
— O senhor não pode me ajudar a arrumar alguma coisa? — Pergunta ao guarda, que se faz de surdo. — Eu também faço limpeza de jardim, serviço de ajudante.
No final da tarde de sábado, as luzes já começavam a ser acesas no presídio, quando o guarda vem falar com ele.
— Levanta daí, a doutora quer falar com você.
Surpreso, levanta-se devagar do chão imundo onde permanecia sentado por longas horas. Passa a mão na carapinha, esfrega o rosto, como que acordando de um pesadelo. É levado para a cela de visitas, onde fica alguns minutos com o guarda. Sentado em frente a uma mesa de metal, a cabeça baixa, espera, desanimado. A luz fraca no alto do teto torna o ambiente ainda mais deprimente.
A porta da cela se abre. Entra a advogada, que conversa com o guarda. Em seguida, senta-se á mesa, de frente para Zé Carlos.
— Tenho uma surpresa para você.
Zé Carlos levanta a cabeça. Olha para a advogada e em seguida, para a porta, que, de repente, se ilumina com a visão de Dolores.
— Oi, meu nêgo! Vim te buscar.
ANTONIO ROQUE GOBBO – S.Sebastião do Paraíso, 13/abril/2001
Conto # 86 da Série Milistórias