A SEGUNDA MORTE
Entusiasmado com a visita dos pais, Gilberto esforça-se para mostrar-lhes os locais mais pitorescos do bairro.
— Aqui estamos no centro de Vila Madalena. — Dirige o Tempra com habilidade enquanto explica. — Nestas vielas foram gravadas muitas cenas da novela. Vocês viram?
— A Carminha gostou, mas eu não tenho paciência. — O pai, secarrão, responde. Falam da novela da TV Globo, recém-terminada. Sobem por uma rua movimentada, passam por uma pequena praça. Gilberto pára o carro.
— Aqui é um local especial. Vamos descer e vocês verão porquê.
Ao entardecer, a praça é iluminada pelos raios do sol que se põe. Os tons alaranjados derramam-se sobre gramados, arbustos e árvores. Os edifícios ao redor recebem e refletem a forte cor do poente.
— É a Praça do Pôr-do-Sol. — Explica Selma, a namorada de Gilberto.
— É lindo de morrer! — exclama Carmem .
Caminham pelos estreitos caminhos entre canteiros e chegam até o local onde uma estátua de metal e granito refulge igualmente o alaranjado do sol poente.
— Que representa? — Quer saber Carmem .
Selma, que reside no bairro há muitos anos, se faz de cicerone para os pais de Gilberto.
— Chama-se Os Anjos. É uma obra da artista Maria Bonomi e foi esculpida para homenagear Cecília Saldiva. Ela foi uma patronesse das artes, aqui em São Paulo e seus filhos quiseram homenagear a mãe com esta escultura.
Todos observam a obra de arte. Em bronze e granito, representa uma mulher carregando duas crianças.
— Esta pracinha tem o nome de Cecília Saldiva, mas todo mundo a conhece como Praça do Pôr-do-Sol. Os filhos moram por perto e cuidam da praça. Observaram como é limpa e bem cuidada? — Gilberto ajuda nas explicações.
— Vi sim, logo que cheguei. O gramado está limpo e não tem lixo nem mato na pracinha.— Concorda Seu Emídio.
— Pois é. A estátua também é limpa constantemente. Veja como brilha. —Gilberto continua.
— Estive aqui na inauguração da estátua. Foram necessários 25 homens para colocá-la no pedestal. Pesa mais de trezentos quilos e deu um trabalho danado. Mas ficou linda, não é mesmo? — Selma se entusiasma.
Permanecem extasiados por alguns minutos, observando o mundo em chamas, todas as tonalidades de alaranjado e vermelho exibindo-se num surrealismo incrível. Até que os tons violáceos do anoitecer tomam conta do ambiente.
— Carmem, você viu aqui no Estado de São Paulo, o roubo da estátua?
— Não vi, não. Que estátua?
— Lembra-se da Praça do Pôr-do-Sol, no Alto de Pinheiros? Estivemos lá no ano passado.
— E a estátua...?
— Foi roubada.
— Não acredito! — Carmem aproxima-se do marido. — Lembro sim. Mas, com aquele peso? Selma disse, naquela época, que foram necessários muitos homens para colocá-la no pedestal.
Emídio resume a notícia para a esposa.
— Pois é, desapareceu. Furtada. É uma tristeza, nem as obras de arte estão livres da violência. E olha que aquela praça fica numa região de constante movimento. Pode não ter a presença da polícia, mas tem os seguranças particulares, dos edifícios ao redor.
— E ninguém viu nada?
— Absolutamente ninguém. E olhe que para roubar uma estátua daquele tamanho foi necessário, com certeza, um veículo grande, além de muitos homens. Sem falar nos grampos que prendiam a estátua ao pedestal. Um serviço barulhento. E muita gente envolvida.
— E pra que roubar uma estátua como aquela?
— Pelo metal. Os ladrões certamente roubaram a escultura já com a venda acertada . Uma escultura que foi simplesmente vendida pelo preço do metal com que foi feita. Um barbarismo!
Algumas semanas depois, Emídio e Carmem conversam, por telefone, com Gilberto e Selma.
— Souberam do roubo dos “Anjos” ?
— Sim, vimos na TV. — Visitamos a pracinha, que agora não é a mesma. Os freqüentadores habituais estavam chateados. Agora lá tem um guarda municipal dia e noite.
— “Depois da casa arrombada, tranca-se a porta”. — Ironizou seu Emídio.
Mas, da estátua roubada, nenhuma pista. Haviam visto também na TV os irmãos Rose e Wanderley, que encomendaram a estátua à famosa escultora Bonomi. Estão desolados.
— O que tentei perenizar foi mais frágil do que a natureza humana. — Disse a escultora.
— Foi como se visse minha mãe morrer pela segunda vez. — Rose chora como criança. — E agora é pior, pois não encontro o corpo para enterrar.
ANTONIO ROQUE GOBBO –
BH, 16.4.2001 –
CONTO 085 DA SERIE MILISTÓRIAS