INCIDENTE EM GRUMARI
— Casar pra quê, meu nego? A gente vai vivendo bem, num tá faltando nada. Pra que complicar? — Doralice desenrosca-se do abraço do companheiro, saltando da cama e puxando um vestido leve sobre o corpo moreno e bem feito.
— A gente precisa pensar no futuro. De repente pinta um gurizinho, sei lá. — Marcinho quer ficar mais um pouco na moleza gostosa da manhã quente. Sente um torpor agradável, malemolência e preguiça. Suspira, aspirando o ar denso de maresia.
— Deixa de sonhar acordado. Vamos, levanta daí, tem gente chegando na praia. Vai pegar camarão fresco com o Zelão que, de certo, já chegou da pesca. —
Marcinho é rápido no vestir a camisa rala e os calções. Tropeça no pé da cama, procurando os chinelos-de-dedo. Em seguida, está com Doralice, no cubículo com chuveiro, pia e privada, escovando os dentes e aspergindo água no rosto, para espantar o sono, numa higiene sumária e apressada.
O sol sobe depressa, a claridade crua da manhã à beira-mar, na praia de Grumari, dói na vista. Uma névoa seca chega do mar, juntamente com os pescadores que voltam com a pesca da madrugada. Marcinho desce as escadas da edificação, caminhando ligeiro para chegar a tempo de selecionar os pescados e suprir as necessidades de seu restaurante praiano. Demora-se pouco, a transação é rotineira. Há anos que ele compra peixes e frutos do mar do Zelão, e se entendem bem. Volta com a caixa de isopor cheia de camarões, peixes diversos, uma lula de três quilos, ostras e coisas que tais. O suficiente para um dia normal em seu restaurante.
Marcinho e Doralice se desdobram o dia todo no atendimento de seus fregueses: freqüentadores contumazes e turistas aleatórios, todos merecem a mesma atenção e usufruem com satisfação da simplicidade do lugar. Através dos anos — e olha que já lá se vão mais de 20 anos — os dois se esmeram para manter a tradição de boa comida, barata e farta, acompanhada de deliciosas batidas que são especialidade de Doralice, mais a rapidez na confecção dos quitutes, sem falar no sorriso cativante da bela morena.
Não é por acaso que Marcinho é conhecido ali e além por Marcinho Peixe-Frito. Uma referência inconfundível que começou quando o quase-garoto começou fritando peixes numa simples frigideira sobre um fogareiro portátil, debaixo de uma encorpada sete-copas, cuja sombra se estendia por muitos metros sobre a praia. Com tempo e com jeito, foi fazendo sua vida: sob a galhada da amendoeira, construiu um barraco com tábuas, restos de caixas de madeira e coberta com capim seco. Daí para a primeira construção de tijolos e telhas, foi questão de poucos meses, e eis Marcinho Peixe-Frito estabelecido na praia e conhecido por todos da região. Uma geladeira pequena, um fogão de quatro bocas, algumas mesinhas e cadeiras espalhadas pela areia foram as próximas melhorias. Cervejas geladas, batidas e cachaça passaram então a ser servidas com as frituras.
— Marcinho, vê se me faz uma moqueca ou uma peixada de panela de barro.
Os pedidos constantes de outras comidas fez Marcinho sair à procura de uma cozinheira que o ajudasse na cozinha. Encontrou Doralice. Nada sabia de cozinha, mas seu sorriso, seu porte, seu chamego a levaram diretamente para o barraco (e para os braços) de Marcinho. Aprendeu rápido o necessário para se tornar indispensável no serviço de atender à clientela, fazer deliciosos pratos na cozinha e agradar Marcinho na cama.
De pequeno bar, a barraca passou a restaurante. De um cômodo rústico cresceu para uma construção de alvenaria e madeira à vista, ampla, arejada, fresca. O restaurante, abrigando mais de vinte mesinhas, com vista magnífica, recebendo diretamente a brisa do mar, aumentou a fama de Marcinho Peixe-Frito. Batizado com nome apropriado, tornou-se Meca de gente famosa, que não media distância nem dinheiro para apreciar as comidas de Doralice e as batidas de Marcinho.
— Marcinho, me prepara aí uma moqueca de camarão para vinte pessoas, para sábado de tarde. Pode ser? — O pedido era de um deputado estadual, famoso por sua glutonaria. Encomendava com antecedência, pois sabia da freqüência ao restaurante. Queria tudo de primeira. Marcinho e Doralice se esfalfavam, mas jamais deixavam de atender à clientela.
Ônibus com turistas do interior fluminense chegavam todos os fins de semana e encostavam-se nas proximidades do restaurante. Cariocas vinham do centro do Rio, ou dos distantes subúrbios, passando por Copacabana, Barra, Recreio dos Bandeirantes, até chegarem à praia de Grumari e ao restaurante famoso. Doralice se tornara uma especialista em moquecas, caldeiradas de frutos do mar, peixes assados em diversos molhos, bacalhau em diversas modalidades. Lagostas, lagostins, lulas assadas, fritas ou empanadas, eram com Marcinho, insuperável na sua especialidade.
Com o sucesso, veio o progresso. A simples estrada de terra foi asfaltada, a praia foi balizada, a região declarada como zona de preservação ambiental. Chegou a iluminação pública: uma fileira de postes que deram o tom de civilização à bucólica praia. Quiosques foram sendo construídos, ao longo da praia, modelos padronizados pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Rio. Construções de madeira rústica, cobertas de palha, de muito mau gosto. Conforto para os usuários, nenhum. Bitáculas muito inferiores àquela na qual Marcinho, há mais de vinte anos, iniciara sua atividade. Cerca de duzentos metros mediavam entre cada barraquinha que, com suas formas quadradas e simples, mostravam que a praia não era a mesma. Agora estava sendo cuidada e desenvolvida.
Marcinho não gostou nem desgostou do progresso. Seu movimento continuava o mesmo. Agora, se preocupava com Doralice. Queria dar uma situação estável para a companheira, pensava em casar, ter filhos. Mas ela desconversava toda vez em que ele tocava no assunto.
— A gente vive feliz, num precisa mudar nada. Vem cá, chega mais perto, tou sabendo o que você tá precisando. — E assim, com enleios e encantamentos, a linda morena ia protelando o assunto.
Marcinho não se incomodou quando recebeu um ofício da Secretaria de Turismo, avisando-o de que seu restaurante estava construído em área praiana. A mensagem convocava para uma reunião, tal dia e tal hora, no gabinete do secretário, para discussão do assunto. Sabedor de como tudo funcionava na Cidade Maravilhosa, ofereceu ao funcionário que lhe entregara o ofício um bom jantar e, discretamente, uma nota de mil. Deu o assunto por encerrado naquela tarde, quando o funcionário arrotou com satisfação, pegou o “agrado” e saiu. Nem com Doralice falou a respeito.
Um segundo ofício, uns dois meses depois, foi entregue a Marcinho, desta vez por uma jovem que recusou o convite para a refeição e qualquer abordagem diferente: entregou o documento, exigiu a assinatura de Marcinho no livro de entrega e saiu imediatamente, dirigindo o carro oficial. Desta vez, falou com Doralice.
— Os homens da prefeitura estão querendo mudar o nosso restaurante. Aqui no ofício dizem que está construído na praia, não tem segurança, tem de mudar.
— Mudar pra onde? Do outro lado da rua é área de preservação, não se pode construir nada lá. — Doralice expressa em voz alta o que Marcinho já tinha pensado.
— Se a gente for fazer como eles querem, temos de abandonar nosso restaurante. Se quisermos ficar, temos de alugar um desses barracos da prefeitura.
— Nem pensar! — Doralice é incisiva e terminal.
Durante a semana Marcinho vai à Secretaria de Turismo, conversa com um funcionário graduado, que confirma a calamidade em perspectiva. Marcinho esquece sobre a mesa do funcionário um envelope pardo com dez mil cruzeiros, a féria de uma semana de seu restaurante. Pensa que pode esquecer, também, o assunto — pelo menos, por algum tempo mais.
Enganou-se redondamente. Três dias depois, ao voltar da praia, com os peixes e pescados para o dia, depara-se com três enormes máquinas demolidoras em franca atividade ao redor do restaurante.
— Corre aqui, Marcinho, eles vão derrubar tudo ! — Doralice grita, desesperada, da porta, acenando uma folha de papel.
Marcinho apressa o passo, a cesta com o pescado está pesada.
— Que foi? — Nota o desespero da companheira, olhando para as máquinas, que trabalham por perto.
— Taí no papel. Eles vieram pra demolir tudo!
Marcinho passa os olhos no papel: é um documento que autoriza a derrubada do seu restaurante. Corre para perto da plaina, cuja lâmina enorme quebra a mureta externa, dirigindo-se para o recinto onde estão as mesas e cadeiras.
— Para aí, seu desgraçado! Desce daí, vamos conversar!
Inutilmente. Sua voz é inaudível, superada pelos ruídos da máquina, no seu afã destruidor.
— Eles vão derrubar mesmo ! — grita Doralice.
Desesperados, correm pra dentro do restaurante. Por detrás, uma escavadeira já quebrou uma parede, está destruindo a cozinha e as instalações sanitárias. Nem Marcinho nem Doralice têm tempo para tomar qualquer atitude. Pra onde quer que se virem, há uma máquina destruindo tudo. É uma cena de pesadelo. Correm para o quarto, onde outra máquina já entrou, quebrando paredes, móveis, tudo destruindo. Não há tempo para pegarem sequer roupas ou calçados.
Quebrando, destruindo, empurrando paredes, móveis, geladeiras, balcões, as máquinas são verdadeiros tanques de guerra manobrados por homens robotizados. Ao redor, distantes uns 50 metros, reúnem-se pescadores e freqüentadores da praia, que, surpresos e revoltados alguns, assistem à demolição. Uma poeira grossa se levanta dos escombros. As plainas amontoam os pedaços de concreto, paredes, caliça, móveis, metais retorcidos.
Estarrecido, Marcinho corre de um lado para o outro, sempre obstaculizado por uma das três máquinas. Doralice se entrega a um choro entremeado de gritos.
— Malditos, filhos duma puta ! Parem com isso, seus desgraçados. Parem!
Uma mulher alta e esguia abraça Doralice, tenta afastá-la do local. Marcinho sobe no monte de detritos, que já tem uns dois metros, e lá de cima também invectiva contra os motoristas das máquinas.
— Filhos da puta, cêis vão acabar no inferno! Oceis num têm mãe! Parem, parem! — Agita os braços, pretende ameaçar com sua pequena figura os robôs e as máquinas.
No meio da poeira densa, agora já são sombras que se movimentam, destruindo sempre. Em menos de uma hora, o local onde era o restaurante está aplainado, como se nunca houvera ali construção. Os detritos formam um amontoado sinistro: o trabalho e o sonho de Marcinho e Doralice, durante mais de vinte anos, de repente foram destruídos como se atingidos por uma bomba de grande potência.
Marcinho abraça Doralice. Perderam tudo, mas tudo mesmo. Só estão com a roupa do corpo. Desesperados, choram e choram.Algumas pessoas, amigos pescadores, tentam confortá-los.
— Venham, vocês ficam no meu barraco. — Convida Zelão. Eles se deixam ser levados à casa do amigo.
Marcinho perde a razão. Nas próximas semanas, é visto zanzando pela praia, de um extremo a outro. Sobe diversas vezes por dia no amontoado que encerra seu restaurante destruído. À noite, permanece ali mesmo, na praia. Não quer saber de ficar na casa de Zelão. Doralice também se desequilibra, e quer voltar para a favela onde morava.
Zelão não sabe como ajudar os amigos. Acompanha Doralice na sua volta à família. Nada pode fazer por Marcinho.
Passado algum tempo, Marcinho some do local. Não sem antes incendiar, numa só noite, 42 quiosques construídos pela prefeitura ao longo da praia.
Os sinais dos quiosques permanecem na praia: madeiras queimadas, áreas de cimento enegrecido pelo fogo. Os arames queimados e retorcidos são imensas flores negras, em luto pela destruição de Marcinho, de Doralice e do famoso Restaurante Flor de Grumari.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE (MG) 29/03/2001
Conto # 83, da Série Milistórias