A MALA
— Puxa, como a Neuzinha está diferente! Nem parece mais aquela moça tão calma que a gente conheceu quando morava no Brasil.— Basílio comentou com Marly, enquanto a frenética Neuzinha estava dependurada no telefone, disparando chamadas para a agência local da Varig, para o Rio e para os Estados Unidos . — Qual é a razão dessa atribulação?
— Coitada, está desesperada! E com razão. Sua única mala extraviou-se na viagem de Nova York ao Rio. Toda sua roupa e o material para suas conferências, tudo estava na mala, que não chegou no aeroporto do Rio.
— Uai, gente, é só reclamar com a companhia na qual viajou. Eles são responsáveis. — Basílio estranhava a preocupação de Neuzinha. A moça estava acostumada a viajar, fazia pelo menos uma viagem internacional a cada ano. A trabalho ou por lazer, era muito viajada.
— Ela tomou todas as providências, mas não consegue se acalmar.
Basílio e Marly conversam enquanto lancham na copa. Neuzinha, tendo encerrado mais um de seus frenéticos chamados telefônicos, vem sentar-se à mesa.
— My God, se não receber esta mala até amanhã cedo, estou frita! Meus apontamentos para a conferência, os slides, todo o material está na mala. Vou ter de cancelar a conferência. — Neuzinha está corada, os cabelos loiros revolteados. Agita os braços ao falar.
— Calma, querida! Tou chegando agora, me diga aí, que providências você já tomou? — Basílio tenta tranqüilizar a moça.
Neuzinha tenta resumir o verdadeiro dia de cão que está vivendo. As palavras se atropelam, ela não se aquieta nem quando toma uma xícara de café. Parece estar à beira de um ataque de nervos.
Enquanto ela conta a Basílio o drama da mala extraviada, Marly volta seu pensamento para alguns anos atrás, quando conheceu Neuzinha. Decidira-se a voltar a estudar inglês, apenas para sair de casa e arejar a cabeça, e a jovem loirinha foi sua primeira professora no curso para adultos. A mestra era competente, já tinha residido nos Estados Unidos e logo as duas tornaram-se amigas. Fizeram, juntas, diversas viagens pelo Brasil, antes da mudança de Neuzinha para os Estados Unidos. Corresponderam-se intensamente. Neuzinha fora para Bekerley, fazer um mestrado na Universidade da Califórnia. Ao mesmo tempo, conseguiu uma vaga para lecionar Português, no departamento de línguas da mesma Universidade. Competência era o que não lhe faltava.
Dois anos depois, Marly e Basílio foram visitar a amiga. A amizade tornava-se mais forte, apesar da distância. Por exigência de seu mestrado, Neuzinha fazia conferências, escrevia livros sobre literatura americana e brasileira, e viajava muito pelos Estados Unidos, Canadá e Brasil. Quando vinha ao Brasil, hospedava-se na casa dos amigos, já que sua família morava no interior, distante da capital.
Ao terminar o mestrado, Mrs. Neuza Gouveia ocupava a chefia do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia e fixou residência em San Francisco. A mudança que se operava na suave e tranqüila professora de inglês era evidente. Marly observava a transformação nas diversas vezes em que Neuzinha voltara ao Brasil, e nas visitas que fizera à amiga.
A moça adotara a maneira e os modos de uma eficiente executiva americana. De suave e tranqüila, passou a ser agitada e extremamente dinâmica. Não parava um só instante. Aos dias cheios de trabalho seguiam-se noites de reuniões com colegas, diretores, “aves da mesma plumagem” (conforme Basílio classificava todos os americanos que rodeavam Neuzinha). Nas suas viagens estabelecia roteiros intensos a serem cumpridos em cronogramas apertadíssimos. Mas sempre mantendo o domínio de tudo, como convém a uma perfeita “business woman” , figura tão apreciada pelos administradores americanos. O que não prejudicava, em absoluto, a maneira cordial e amiga com que tratava Neuzinha e Basílio, a quem se afeiçoara muito. A recíproca era verdadeira: o casal tinha pela amiga um carinho tão grande quanto o que dedicava aos seus quatro filhos. Nos últimos anos, Neuzinha estava vivendo com Kevin, médico em San Francisco e residiam no elegante bairro de Sausualito, do outro lado da baía, bem próximo à ponte Golden Gate.
— Agora, não sei mais o que fazer. — Neuzinha acabava de narrar a Basílio o seu agitado dia, o primeiro dia de uma semana que passaria no Brasil, fazendo conferências e promovendo a edição de seu livro mais recente. Publicado pela universidade americana, o livro, em inglês e português, era uma biografia literária de famosa escritora brasileira.
O dia fora “de amargar”, realmente. A viagem tinha sido exaustiva: de San Francisco voara a Boston, a fim de visitar a irmã, Débora. De Boston a Nova York e Rio de Janeiro, uma viagem sem interrupções de quase quinze horas. Ufa! Que maratona aérea.
Ao chegar ao Aeroporto do Galeão, teve início outra maratona, agora em busca de sua mala extraviada. Primeiro, aquela angustiosa sensação de esperar a mala aparecer na esteira rolante. Todos os passageiros – e eram mais de duzentos no seu vôo – iam apanhando as respectivas malas. Shit, minha mala nunca aparece! Será que esqueceram de mim? — A esteira circulava com menos malas, até que a última foi recolhida e a esteira parou.
Surpresa e angústia. Que fazer? Nunca, em toda sua vida, algo nem parecido lhe havia ocorrido. Ficou sozinha no salão. Dirigiu-se à saída, ainda indecisa. Espero mais alguns minutos?
O funcionário notou sua aflição.
— Posso ajudá-la, senhora?
Neuzinha parece não ter compreendido. O rapaz insiste:
— Excuse me, can I help you, miss?
— Oh, thank you! Minha mala… não apareceu na esteira.
— Tem certeza?
— Sure! É uma mala enorme e bem diferente.
— Deve reclamar no balcão da empresa do seu vôo.
— É a VARIG.
— Fica logo ali, no final daquele balcão comprido.
Carregando sua maleta de mão, Neuzinha procura o balcão da VARIG.
— Por favor, minha mala não chegou. Que aconteceu?
Uma jovem morena e simpática levanta os olhos do monitor do computador e abre um sorriso. Eu reclamo aflita e ela me sorri! Será que ela entendeu o que eu lhe disse?
— Ah, sim, sua mala extraviou-se. — Puxa uma página impressa, que passa a Neuzinha. — Preencha este formulário.
My God, começou a burocracia! Preenche o formulário sem relaxar um só instante. Toda a minha roupa e meu material para as conferências, minhas anotações, está tudo na mala. Se perder a mala, perco a viagem!
Devolve o modelo preenchido à atendente que, com o mesmo sorriso, começa a lhe explicar.
— Vamos localizar a sua mala e entregá-la no endereço que mencionou. É só uma questão de tempo.
— Mas estou sem condição de sequer trocar de roupa. Só tenho comigo esta bolsa com objetos de maquiagem, essas miudezas.
— Oferecemos-lhe uma quantia suficiente para a compra de uma roupa. Cem dólares, está bom?
My God! Eu preocupada com minhas coisas e essa dona me oferece cem dólares. Quer comprar o meu silêncio, ou o quê?
— Vou pegar outro avião daqui a pouco. Meu destino é Belo Horizonte. Não tenho condição de sair por aí comprando roupas.
— Por hora, é o máximo que posso lhe oferecer. Mas fique tranqüila, que sua mala chegará às suas mãos.
Neuzinha aceita os cem dólares oferecidos pela atendente sorridente. Afinal, posso pelo menos comprar alguma coisa a fim de usar após o banho. Deu-se conta de que precisava urgentemente de uma ducha. Sensação que veio se juntar à preocupação e ao aborrecimento.
Pensa em procurar ajuda extra. Daquela atendente nada mais receberá do que promessas vagas e sorrisos alcalinos. Vou telefonar para o Kevin, quem sabe ele me dá alguma orientação melhor?
Telefona, mas não localiza o bom amigo de todas as horas. Deixa recado na secretária eletrônica, a fim de que ele lhe dê um retorno para o telefone da casa de Marly, onde vai hospedar-se.
Embarca novamente, desta vez no avião da ponte-aérea para Belo Horizonte. Fica amuada e não aceita o lanche nem bebidas O companheiro de viagem ao seu lado nota sua aflição, procura puxar prosa, mas ela não está a fim de conversar. Ao descer do avião, no Aeroporto da Pampulha, procura imediatamente o balcão da VARIG. É atendida por uma sósia da moça que a atendeu no Rio.
— Sim, temos aqui no computador o registro do extravio de sua mala. Pode aguardar que ela lhe será entregue no endereço que indicou.
Como é que essa gente consegue ficar tão distante de um problema assim? Nem parece que estão lidando com gente. A ansiedade aumenta a cada instante. Percebe que ninguém, mas ninguém mesmo, vai ajudá-la nesta emergência. Do aeroporto dirige-se diretamente para o escritório da VARIG, na Savassi. Não sabe o que vai fazer ali, mas deseja encontrar alguém que se interesse pelo seu problema. Inutilmente.
— Hoje em dia todas as companhias aéreas registram bagagem extraviada. Temos até um índice baixo de extravios, que está em torno de quatro por cento. — A explicação técnica, feita pelo gerente do escritório, longe de tranqüilizar Neuzinha, a aborrece ainda mais.
— Não sou estatística, nem número! Sou uma cliente desesperada pelo extravio de minha mala.
— Calma, minha senhora! Garanto-lhe que sua mala será localizada e entregue no endereço que indicou.
Desistiu de conversar com o gerente. Saiu, procurou uma loja de roupas por perto, onde comprou uma saia, blusa, sutiã e calcinha. Tomou um táxi e foi para a casa de Marly.
Era por volta do meio-dia, e mal havia terminado de falar do extravio da mala, o telefone toca. É Kevin. Neuzinha lhe conta tudo, e explica-lhe a sua preocupação. Kevin, que é bem relacionado, promete entrar em contato com quem quer que possa ajudá-la.
O estado de espírito da professora não melhora nem depois de uma boa ducha e de alguns minutos de repouso. Telefona para a agência da VARIG. Uma voz simpática lhe dá um telefone no Rio e outro em Belo Horizonte: são os telefones dos depósitos de cargas e bagagens, onde sua mala extraviada poderá ser localizada. Dispara a telefonar e recebe sempre respostas protelatórias. — Sua bagagem por certo viajou para outro aeroporto, talvez no Brasil , possivelmente para o exterior. Mas fique tranqüila que...
Neuzinha desliga o telefone, interrompendo a voz melíflua. Não sossega um só minuto. À medida que as horas avançam, mais desesperada se mostra. Volta a telefonar para Kevin, uma, duas vezes. Nem a voz do amigo tem o dom de tranqüilizá-la.
Quando Basílio chega do trabalho, pelas seis da tarde, conta de novo, timtim por timtim, o que lhe sucedera, terminando com a frase desanimadora:
— Agora, não sei mais o que fazer.
Dorme mal, tem sonhos e pesadelos nos curtos períodos de sono. Levanta-se cedo, e dispara nos telefonemas. Kevin é acordado de madrugada (há diferença de algumas horas no fuso horário, o que Neuzinha esqueceu) e nada tem a lhe falar senão a certeza de que ela irá receber a mala sem tardança.
— Vou cancelar todas as minhas conferências e atividades. — Neuzinha está no paroxismo de sua preocupação.
— Não faça esta bobagem! — Marly tem liberdade com a amiga de lhe falar com energia. — Quanto menos se espera, a mala chega.
Telefona para o escritório da VARIG, mas ainda é muito cedo, o expediente inicia-se às nove da manhã.
— Vou telefonar de novo para o Kevin.
— Calma, Neuzinha. — Agora é Basílio quem entra em cena. — Você está completamente desvairada. Assim, não se resolve nada. Olha, deixa por minha conta, vou dar uns telefonemas, enquanto você toma café.
Basílio telefona. Marly e Neuzinha tomam o café. A campainha da porta toca. Maria, a empregada, vai atender. Vozes vêm do portão. Maria chega agitada à copa:
— Dona Marly, tem uns home aí no portão com uma mala discomunal de grande, querendo entrar. Melhor a senhora atender.
ANTONIO ROQUE GOBBO –
BELO HORIZONTE – 14/MARÇO/2001
CONTO # 79 DA SÉRIE MILISTÓRIAS