QUASE UM CRIME
— Estou passando uns dias aqui no hotel, a fim de esquecer.
— Bem, se a senhora está querendo esquecer, não serei eu quem vai fazê-la se lembrar de nada.
— Sim, agradeço. Mas faz parte do processo falar sobre o assunto. Falar é uma espécie de terapia, principalmente quando a gente encontra uma pessoa para desabafar.
Estavam iniciando uma caminhada pela trilha entre os pinheirais que circundavam o hotel-fazenda. Na frente, o guia dava explicações sobre o percurso que estavam começando. O grupo era constituído de hóspedes que estavam mais interessados em conversarem entre si do que na caminhada. Pessoas de idades várias e crianças se misturavam. Alguns, mais precavidos, usavam galhos apanhados ali mesmo, à guisa de cajados.
— Por favor, me dê a mão, a subida aqui é forte e você pode escorregar.
A jovem senhora aceita a ajuda do companheiro. Estão no final da fila e a trilha íngreme está resvaladiça, tantas pessoas já tinham passado por ali. Ela observa o companheiro. Pelas rugas do rosto e os cabelos, completamente brancos, deve ter setenta anos. Gentil e vigoroso, procurando esconder ou disfarçar a idade debaixo de um chapéu panamá de abas largas e atrás de óculos ray-ban.
— Estou me recuperando de uma experiência terrível. Fui assaltada em minha casa há quinze dias, estou ainda abalada. Principalmente porque estava com minha filhinha. Porisso viajo. Para espairecer.
— Está sozinha?
— Não, viajo com minha família. Ali na frente está meu marido, Lauro, com a Soninha. — Indica os dois. — Eu sou Fabiana.
— Ah, sim, estou vendo os dois — Uma pausa. — Meu nome é Amadeu Gonçalves.
Caminham calados um bom trecho. Ambos observando a trilha e se observando. Fabiana é ágil, caminha com passos firmes, parece afeita a exercícios. Cabelos loiros curtos, olhar firme e franco, um sorriso constante revela dentes muito alvos, perfeitos. Trinta anos é sua idade, pensa Amadeu.
— Pelo menos aqui estamos tranqüilos. Longe da civilização, esquecemos do mundo.
— É o relax de que estava precisando. Tanto eu quanto minha filhinha. Ela ficou muito traumatizada com o assalto.
— Hoje em dia todos somos vítimas da violência. Está por todos os lados. Por mais cuidados que tenhamos, por mais defesas que usemos, mais cedo ou mais tarde, acabamos sofrendo algum tipo de violência. Um dia a casa cai.
— Sim, é verdade. Somos pessoas cuidadosas, eu e meu marido. Tomamos todas as providências, temos grades sobre os muros de nossa casa, cerca eletrônica, alarme no carro. Tudo o que é necessário para manter os bandidos longe da gente. Mesmo assim...
Amadeu fica silencioso. Será que estou sendo indiscreta? Pensa Fabiana. Afinal, nem nos conhecemos. De repente vou chatear uma pessoa com meus problemas. Mas o homem é atencioso, parece compreensivo. Decide-se por desabafar de vez.
— Moramos num bairro bom, residencial. Ultimamente tem aumentado muito a construção de novas casas, é intenso o movimento de trabalhadores nas construções. Gente humilde, sabe como é. Mas tem também desempregados, pessoas que se oferecem para fazer pequenos serviços, como jardinagem, lavar carro. E malandros no meio deles. A gente não sabe diferenciar quem é honesto dos bandidos, essa é a verdade.
— É a mesma coisa em todos os lugares.
Seguem a trilha e os companheiros. A conversa não os atrasa. Mantêm o ritmo da caminhada. Amadeu bem que gostaria de adiantar-se, mas em atenção à companheira, continua ao seu lado.
— Pois é. O que me aconteceu foi inusitado. — Fabiana fala claro e pausadamente, como uma professora dirigindo-se aos seus alunos. — Vinha do supermercado, onde havia feito as compras do mês. O bagageiro do carro lotado de sacolas de compras e algumas amontoadas no banco traseiro. Por isso tive de colocar Soninha no banco da frente, ao meu lado. Dirigia tranqüilamente, era cerca de oito horas da noite. Ainda não tinha escurecido de todo, horário de verão, sabe como é, anoitece tarde. Lauro estava na quadra de futebol de salão, jogando com os amigos. Ao chegar em frente da minha casa, acionei o controle remoto que abriu o portão da garagem. Entrei dirigindo o carro e acionei novamente o controle, para fechar o portão. Quando me preparava para sair do carro, o portão quase fechado, eis que vi um vulto entrando na garagem, pela fresta do portão, que se fechava lentamente.
Fabiana interrompe a narrativa. O grupo havia chegado ao topo do monte. Exclamações vinham de diversos caminhantes, admiradas pela beleza da paisagem. Dali, a mil e oitocentos metros de altitude (conforme explicava o guia do hotel) descortinavam lindíssimo panorama de montanhas, todas cobertas de pinheirais, um reflorestamento extenso, a perder de vista. Manchas de terreno cultivado, de um verde mais claro, com casinhas brancas no centro ou pelas bordas. Vales profundos, escondendo rios, em todas as direções. Cliques de câmeras fotográficas e o suave chiado das filmadoras.
Fabiana junta-se ao marido e à filhinha. Conversam animadamente e se mantêm juntos na descida. Amadeu fica novamente para trás, agora procurando realmente estar só, observando e sentindo as árvores que sombreiam a trilha. Deixa que o grupo se distancie bastante, quer ouvir os ruídos da natureza, absorver a energia que flui das árvores e da brisa que passa por entre as copas e chega até ele. Ouvir o farfalhar das copas baloiçantes. Assustar-se com os estalos dos troncos vergando-se sob a força do vento.
Amadeu permaneceu diversos dias no hotel-fazenda, avistando Fabiana, Lauro e Soninha constantemente. Cumprimentam-se no restaurante ou no bar, mas sob circunstâncias que não permitem o prosseguimento da narrativa, interrompida dias atrás. Não está muito curioso, mas bem que gostaria de ouvir o final da história, pelo menos para aliviar a mãe na catarse de sua experiência.
Na manhã de sábado, último dia de sua estada no hotel, Amadeu encontra-se com a família de Fabiana à beira da piscina. Enquanto toma lentamente seu gim on the rocks tem oportunidade de conversar novamente com Fabiana. A conversa naturalmente dirige-se para a história do assalto. Fabiana retoma a narrativa.
— Pois é, o bandido entrou pela fresta do portão. Não tive tempo de fazer nada, em seguida ele estava ao meu lado, eu paralisada de terror, sentada no carro. Apontou-me uma arma. Gelei e gritei, ao mesmo tempo. O bandido parece estar drogado. Chuta a porta do carro diversas vezes, grita “Calada! Saia do carro! Vamos, já, já”. Abraço Soninha, que chora de terror. Escondo sua cabeça em meu colo enquanto tento descer do carro. Quero manter a calma, inutilmente. “ Por favor, moço, me deixa fugir, fica com o carro, o porta-mala tá cheio de compras, fica com ele, me deixa sair com minha filhinha! “ Consigo sair do carro, fico de pé, cara a cara com o bandido, que me aponta o revólver. Seu rosto e a testa brilham de suor. Os olhos parecem querer pular das órbitas. “ A chave, cadê a chave do carro? Me arranca da mão o molho de chave. “A bolsa, cadê a bolsa? “ Pergunta. “Tá lá dentro do carro! Mostro pro bandido a bolsa no painel. Estou apavorada. Soninha berra alto. O bandido parece hesitar. “Sai, sai, corre daqui !” Ele manda e eu obedeço. Corro para a rua, aterrorizada, ele pode me disparar um tiro pelas costas. Minha casa é de esquina, corro para o vizinho mais próximo, virando a esquina. Pelo menos, ele não me vê. Desesperada, aperto a campainha da casa, uma, duas, três vezes, inutilmente. Grito, chamando. Ninguém atende. Ouço barulho do carro saindo da garagem. Corro de volta. Soninha soluça baixinho, a cabeça entre meus seios. Escondo-me atrás de uma árvore, agora já está escuro. O bandido está afobado na manobra do carro, raspa a lateral pelo portão, manobrando para sair. Consegue sair e foge, na direção oposta de onde estou.
Lauro, o marido, e Soninha se aproximam de nossa mesa. Vêm molhados e alegres, procurando toalhas. Novamente a narrativa é interrompida. Tenho a impressão de que Fabiana não quer que o marido ou a filha a ouçam contando sua experiência para um recém-conhecido.
— Mamãe, vem com a gente pra piscina, a água está gostosa!
— Vai indo filhinha, que vou em seguida.
Voltando os dois para a piscina, Fabiana retoma o fio da narrativa.
— Permaneci apavorada, atrás da árvore. Soninha fez xixi, não suportou tanto terror. Volta a chorar alto. Fico sem saber o que fazer. Será que não tem outro bandido dentro de casa? Tenho medo de tomar qualquer atitude. A rua está deserta, não passa uma vivalma. “Não chore, filhinha, já passou, já passou.” Converso com Soninha, mas é a mim mesmo que tento encorajar. Finalmente, depois que quanto tempo nem sei, entro na casa. Devagar, bem devagar, vou acendendo todas as luzes, subo ao segundo pavimento, acendo as luzes dos quartos, vou me acalmando. Limpei e troquei Soninha. Deito-a na sua cama. Pretendo deixa-la ali enquanto telefono para Lauro, mas ela se agarra a mim, não quer ficar sozinha.
Fabiana olha na direção da piscina, vê a filhinha, que lhe acena. Amadeu nota uma grande tranqüilidade no olhar de Fabiana, quando ela responde ao aceno da filha. Aproveita o lapso para saborear mais um gole de seu gim.
— Telefonei para Lauro, que veio imediatamente. Somente com sua chegada é que fiquei relaxada. Mas Soninha continua agarrada em mim, soluçando sem parar. Tomo um calmante e dou-lhe um copo de leite com bastante açúcar. A noite parecia não ter fim. Dentro de alguns minutos, chegou uma viatura com policiais, atendendo ao pedido de Lauro, a fim de fazerem a ocorrência policial. Tive de contar com detalhes, repetindo os trechos mais terríveis do assalto. Quando os policiais se vão, já é quase meia-noite. Lauro procura por todos os meios me tranqüilizar. Soninha adormeceu nos meus braços. Quando vou colocá-la na caminha, acorda e diz que está com medo, não quer ficar sozinha, pede para dormir comigo.
— Dormi mal naquela noite. Acordei diversas vezes. Soninha teve pesadelo, fez xixi na cama. Acordei como se não tivesse dormido. Soninha ficou dormindo na minha cama quando Lauro e eu descemos para o café. Assustei-me quando ouvi o choro de Soninha. Subi as escadas saltando os degraus, encontrando-a sentada na cama. “Mamãe, tô com medo do bandido, num me deixa sozinha!”
Interrompendo, olha para a filha, na piscina. Terna e carinhosamente.
— Mas vejo agora que ela está bem descontraída. Pelo menos nestes dias no hotel.
— Sim, agora ela já está bem. Eu é que ainda estou traumatizada. Ficamos, eu e Soninha, durante uma semana, completamente atordoadas. O carro foi encontrado na tarde do dia seguinte. Sem grandes estragos, só o raspão que deu no portão, ao sair da garagem. Sobre o banco estavam meus documentos, talão de cheques, cartão de crédito... O bandido levou apenas o dinheiro que estava na bolsa, pouca coisa, não chegou nem a cinqüenta reais, e as sacolas com as compras. O bandido que me aterrorizou tanto não passava, na verdade, de um pé-de-chinelo.
— Nunca se sabe ao certo o grau de periculosidade dos bandidos, hoje em dia.
— Resolvemos sair de casa para uns dias fora. Está sendo muito bom. Soninha já se esqueceu de tudo, acho que quando voltarmos tudo estará bem com ela.
— E a senhora...?
— Bem, confesso que até uns dois dias atrás ainda estava muito tensa, preocupada com Soninha. Mas me sinto agora completamente bem.
— Graças ao repouso, às caminhadas, à descontração total neste fim-de-mundo!
— E graças, principalmente, ao senhor. O desabafo que fiz, alugando seus ouvidos, contando-lhe a terrível experiência, me aliviou de todo o medo que estava me dominando.
— Mamãe, vem, vem brincar comigo! — Grita Soninha. Está numa bóia, no meio da piscina, o pai borrifando água na sua cabeça.
Com um sorriso feliz, Fabiana corre para a piscina, mergulhando em direção da filha e do marido.
Amadeu toma um gole final de seu drinque, levanta-se, ajeita o chapéu e acena para os três.
— Está na hora de arrumar as malas. — Murmura consigo mesmo, deixando o deck da piscina.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE – 29.JANEIRO.2001
1970