A Paixão

De repente ele sentiu que acordava do transe. Não sabia há quanto tempo estava olhando fixamente para aquele casal, tomara que não tempo suficiente para ser considerado esquisito. Mas estava observando-os há pelo menos duas estações.

Eram jovens. Ela de cabelos negros, magra, usava aparelho nos dentes, mas daqueles imperceptíveis. Precisava olhar bem fixamente para vê-lo. Ela vestia calça jeans envelhecida, e com alguns rasgos nas coxas. Usava uma blusa da banda Kiss, obviamente, fazia o estilo e era roqueira. Sentiu que ela era muito bonita para seu par. O rapaz, esse vestia bermuda jeans, camiseta regata exibindo seus braços magros, “provavelmente começou a malhar agora!” – pensou. E fazia todo sentido. Tinha a tatuagem de um capô de fusca no dorso da mão direita, e sobre seu colo, havia uma mochila.

Durante a viagem, ele falava coisas próximas aos seus ouvidos. Ela sorria, e pelo que pode ler em seus lábios, pedia sensualmente para que ele parasse, e às vezes, podia perceber que seus olhos viravam em sinal de prazer. Ela apertava seu braço, e tentava empurrá-lo. Observando, soltou uma risada sem querer. Achava graça naquilo tudo.

Ao notar que se perdera em pensamentos sobre paixão, ele olhou para suas mãos. Havia um buquê de rosas sobre seu colo. Olhou novamente para o casal, eles já não estavam mais no banco. Procurou com os olhos e pode vê-los descendo na estação do Méier. Suspirou e apertou o laço do buquê sem ter qualquer motivo para fazer isso.

Pensou na paixão. Pensou naquela fase dos relacionamentos onde o mundo ao redor não faz importância. Aquela fase onde tudo o que importa é ter a pessoa ali. Nada importa. Falta-se emprego, mata-se aula. A família não te vê em casa, seus amigos te chamam de sumido. A fase mais quente de toda relação. Sessões de cinema viram cenário de “amassos” quentes e preliminares. As madrugadas viram e os dois não largam os telefones. Estão tortos de sono, mas lá estão, falando besteiras que só riem por estarem apaixonados. Falando sobre planos, falando coisas somente para impressionar. Tudo combina, tudo se encaixa, tudo parece perfeitamente sincronizado para os dois.

Mas um dia... - e aqui pensou no casal do trem ainda pouco – Um dia tudo acaba. As ofensas surgem. Aquilo que faz sorrir, hoje irrita. Aquilo que gerava risos até mesmo nas falhas mais idiotas, aquilo se torna algo insuportavelmente sufocante e tedioso. A paixão acaba, não se sabe por desgaste, ou porque não era verdadeira. Ela derrete, se desintegra, ela finda... E então, por mais que o amor seja mais supervalorizado que ela, quando a paixão acaba, é que o amor sofre um baque. Um baque sombrio e triste. Sofredor. Um baque destruidor de relacionamentos. Um amigo, um companheiro, a paixão pode levar isso tudo a partir do momento que se perde.

Ele acordou do novo transe. Abraçou o buquê e saiu do trem na estação Madureira. Subiu as escadas e depois desceu-as novamente. Pensativo, continuou andando pela rua escura. Decidido, caminhou em passos firmes e sem qualquer receio. Sabia exatamente o que estava fazendo. Esperando o sinal abrir, retirou seu celular do bolso e com o dedo leu algumas mensagens. Respirou fundo, e involuntariamente apertou a base do buquê, atingido por uma pinçada de raiva.

Continuou andando.

Em seu apartamento, ela terminava de se pentear. Havia um sorriso em seu rosto. Sua pele clara fazia a luz bater contra seus ombros e criar um grande estouro branco. Foi ao banheiro e se perfumou com seu desodorante aerossol. Foi até a porta do quarto e trancou-a. depois sorriu e lembrou que morava sozinha agora.

Destrancou-a.

Deixou que a toalha que a vestia caísse no chão, sobre as roupas que havia acabado de tirar. Foi até o espelho e se admirou nua. Parecia melhor. Sentiu-se mais magra, mais saudável. Sentiu-se mais leve do que nos últimos seis meses.

Minutos depois estava vestida. Sentou-se na cama e ligou seu notebook. Conferiu as mensagens em seu Facebook. Havia algumas notificações, porém, preferiu ler as mensagens. Havia duas. Leu a primeira e ignorou. Na segunda, sorriu. Sorriu e terminou de se vestir. Trocou a blusa mais uma vez, talvez o vestido verde fosse melhor. Agora se sentiu linda.

Conferiu se o ferro de passar estava ligado. Conferiu se havia comida para o gato. Andou até a porta e abriu-a. surpreendeu-se. Havia um buquê de flores encarando-a. havia alguém na sua frente, escondendo o rosto atrás das rosas. Ela tentou ver quem era.

Ele sentiu que era a hora de se mostrar. Retirou o buquê da frente de seu rosto.

Ela deu um passo para trás. Estava surpresa, entretanto não parecia feliz.

Ele mostrou as rosas.

Ela as empurrou.

Ele insistiu.

Ela deu um tapa tão forte, que o buquê se partiu e caiu no chão. Imediatamente seu gato veio se roçar em suas pernas, e parou para cheirar as flores caídas.

Ele a segurou pelo braço. Sorrindo desesperado. Tentou falar algumas coisas, mas ela o empurrou.

Ela trancou a porta de seu apartamento, e tentou passar por ele irritada. Precisava sair, tinha um encontro, estava atrasada.

Ele se ajoelhou e implorou. Ela o chutou. Aproveitando que ele caíra, seguiu pelo corredor.

Ele respirou fundo e encarou o chão por alguns segundos. Levantou-se devagar e chamou-a. Estava prestes a virar o corredor e descer as escadas (seu prédio não tinha elevador, mas ela morava no segundo andar, não fazia falta). Ao ouvi-lo a chamando, virou-se.

Ele estava armado. Apontando o que parecia uma pistola na sua direção. Ela congelou. Tentou correr, mas ouviu um estouro. Seus ouvidos estavam “apitando”. Sentiu algo quente em sua barriga. Suas pernas pareciam molhadas...

Ouviu-se outro estouro. Depois, não se ouviu mais nada.

Assim como havia flores caídas. A paixão caía por sobre o chão naquele instante.

FIM

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 17/03/2014
Código do texto: T4731874
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