A ESCAPADA FATAL
Ela chegou cansada ao Resort em Punta Del Este. A viagem, embora curta, e feita no jatinho particular do marido, foi estressante. Seu humor não estava nada bom naquela manhã. Acordou cedo com a cabeça pesada e um gosto ruim na boca. O coquetel da véspera, ai, que festa chata!
— Nivalda, meu bem, estou vendo ali o Marcondes Albuquerque, vou levar um papo com ele. Divirta-se com suas amigas. — Ultimamente seu marido tinha mais tempo e dedicação para os amigos e conhecidos do que para ela mesma. Em todas as reuniões, ela acabava ficando sozinha, ou na companhia de gente chata. Obrigava-se a ser simpática com todos, sabia exibir um sorriso falso com grande naturalidade.
— Está bem, querido, fico aqui na sacada apreciando a paisagem.— A festa era no apartamento de cobertura do Armand Constantin, um dos diretores da nova fábrica de automóveis recentemente instalada em Curitiba. Seu devaneio foi por instantes, logo uma taça de champanhe lhe foi oferecida pelo elegante Miro Fuad, que esbanjava charme em qualquer situação.
— Permita-me oferecer-lhe? — A voz sedosa cantou suave somente para ela. Embora oferecesse a bebida, o convite insinuava-se para muito mais. — Venha, vamos até o deque da piscina, ali está bem mais fresco.
A residência era um verdadeiro palácio erguido no topo do alto edifício, com amplos salões e áreas ao ar livre, intensamente cultivadas com arbustos e palmeiras anãs. Não precisaram procurar muito por um lugar aconchegante e íntimo, onde ficaram bebericando e conversando. O sol despedia-se do dia avermelhando o céu entre as montanhas ao oeste. Um poente excepcional sobre a cidade, habitualmente chuvosa e fria.
Durou pouco o enlevo do encontro com Miro. Logo foram localizados por Ramiro. O marido a procurava para apresentá-la a um outro magnata, de cujo nome até se esquecera: baixinho, gorducho e ridículo, careca na frente e um incrível rabo-de-cavalo atrás.
— Muito prazer em conhecer. — Esforçava-se para superar seu sotaque oriental.
— Mister Conrad está procurando bons investimentos no nosso país. Quer comprar alguma empresa ou negócio aqui no sul. Creio que poderemos ser bons sócios, não é verdade, Mister?
— Sin, sin. Vamos ver alguns negócios nesta bela cidade. — Untuoso nas palavras e nos modos. Nivalda detestou o baixinho desde o primeiro momento. Mas caprichou no sorriso e na maneira elegante de tratar os amigos do marido.
Sócio do Ramiro? Pensou Nivalda. Só se for no controle das máquinas de pôquer eletrônico. Nos outros negócios do Ramiro, nem imaginar.
Nivalda sabia no que o marido ganhava dinheiro, rios de dinheiro, e que não repartia com ninguém: jogo do bicho e cassinos clandestinos por todo o sul, desde Curitiba até Canoas, Pelotas, Rio Grande. Não, esses negócios eram só dele, não admitia nem sócios nem parceiros.
Para ela, Nivalda, Ramiro dedicava uma atenção especial. Desde que a conhecera, ele lhe fazia todos os desejos, satisfazia todos seus gostos, sustentava seu luxo. Viajavam constantemente, ela conhecia o mundo inteiro. Ele, sempre a negócios, para jogar, beber. Ela, para distrair-se e conhecer pessoas – especialmente homens fortes, saudáveis e descompromissados.
Depois de conhecer o Baixinho de Rabo-de-Cavalo, a festa ficou insuportável. Ramiro insistia em ficar perto dela, Miro abandonou o grupo, a noite caiu e o encanto do entardecer evanesceu-se. Nivalda suportou o coquetel por mais uns quarenta minutos, quis sair. Saiu sozinha. Ramiro ainda ficou, paparicando o futuro sócio, estava mesmo interessado. Ia ser mais um logrado pelo marido.
Chegou em casa com dor de cabeça, tomou diversos compridos para relaxar e dormir. Noite terrível: o marido chegou tarde, acordou-a com sua alegria etílica, falando-lhe para acordar cedo, a fim de viajarem para Punta Del Este.
= . =
Enfim, ali estava ela. À beira da piscina, copo na mão. Quase cochilando sob o sol morno de inverno. Uma sombra se projetou sobre suas coxas morenas. Levantou a aba do largo chapéu que protegia seu rosto. Não conseguiu distinguir as feições do alto indivíduo em pé, ao lado de sua deck-chair.
— Bom dia, Valda! — Imediatamente identificou o dono da voz musical.
— Billy! Que surpresa! — Descobrindo totalmente o rosto, senta-se na cadeira, dá a mão e oferece o rosto para ser beijada em ambas as faces. Mas o recém-chegado beija-a nos lábios.
— Billy, que audácia! — Ela reclama, após retribuir e sentir a intensidade e o significado daquele beijo, cuja falta já sentia há meses.
— Não se preocupe, estamos sozinhos aqui, ninguém à vista. — O atleta loiro a tranqüiliza.
— Não sabia que estava aqui. — Billy senta-se ao seu lado. — A estação está fria, tem pouca gente no hotel.
— Cheguei há poucas horas. Saímos cedo de Curitiba, tivemos de descer em Pelotas. Você sabe como o Ramiro é, mistura o prazer com os negócios. Descemos na fazenda, você conhece. Mas foi só para determinar algumas ordens pessoais ao administrador. Enfim, aqui estou. E você, por que tanto tempo sem notícias?
— Também estou misturando o prazer com a obrigação. Vim fiscalizar umas concessões no Uruguai e não pude deixar de me hospedar aqui pra distrair um pouco, jogar... encontrar belas mulheres...
— Sem vergonha! — O tom de chacota denotava a intimidade entre os dois. — Encontrou muitas?
— Só você. — A mentira, dita com máxima sedução, encantou Nivalda.
— Finjo que acredito, seu malandro. Ai, mas que saudades!
— E o maridão, onde anda?
— Está no cassino desde que chegamos. Foi direto pra lá. É um viciado.
Ao garçom ele pediu drinques para os dois. Bebericaram e conversaram por mais de hora.
— Ramiro faz aniversário hoje. Prometeu uma grande festa aqui no cassino, com os muitos conhecidos de Punta Del Este. — Ela falou, era uma senha avisando Billy de seu compromisso noturno.
— Então convido você para um drinque ao entardecer, no meu apartamento.
— Combinado.
- . -
No imenso salão de jogos do Hotel-Resort Casino Nilton de Punta Del Este, Ramiro jogava freneticamente nas diversas mesas. Em algumas ganhava, em outras perdia. Consultou o relógio: quase 5 horas, fazia um tempão que estava jogando. Vou subir, ver como está Niva, pensou. Tenho de acertar a reunião de hoje à noite, vai ser uma boa ocasião de rever alguns conhecidos, gente importante de Montevidéu.
Sobe até seu apartamento, está hospedado no décimo terceiro andar.
— Onde está Dona Nivalda? — Pergunta à serviçal, que acompanha o casal em suas andanças pelo mundo. Serve-se de mais um uísque, deve ser o décimo do dia. Toma-o de um só gole, sem gelo, gosta do uísque caubói.
— Dona Nivalda? Ela desceu. . .
— Desceu pra onde? — Ramiro não gostou nem um pouco da maneira evasiva da empregada.
— Foi. . . foi procurar o senhor, no cassino.
Ramiro desce para o cassino. Ao sair do elevador, dá de cara com Billy . Conhece o tipo já faz tempo, ele e sua mulher são amigos. Faz o tipo do conquistador. Um pensamento atinge-o como um raio. Billy e Nivalda, Nivalda e Billy. No mesmo hotel. Muda de idéia, força uma situação.
— Billy! Cara, você por aqui? Então, como vai?
— Bem, obrigado. E você, como está? — Billy esconde sua surpresa.
— Há quanto tempo, hein? – Ramiro está hiper-sensível. A frieza do loiro parece indicar-lhe algo suspeito. — Vamos tomar alguma coisa.
— Desculpe, estou subindo para meu apartamento. Tenho de me trocar. — Aperta o botão do décimo sétimo andar.
— Vamos ao seu apartamento mesmo. Tenho algo que lhe interessa saber.
Sem uma desculpa plausível, Billy concorda. Terá de usar uma estratégia para alertar sua companheira da indesejável visita.
- . -
Ela estava tranqüila, recostada na imensa cama. Usava uma saia rodada, leve, de seda indiana, e uma blusa de algodão, de decote sedutor. Tudo muito a propósito para aquele encontro. Aguardava a volta de Billy, que tinha ido ao cassino. Não sabia nem mesmo porque Billy tinha de descer até o cassino naquele momento. Esses homens são imprevisíveis. Ramiro de certo ainda estava no jogo, só iria subir mais tarde. Pelo menos seu marido era previsível. E tolo. Na ânsia de ganhar dinheiro, de incrementar cada vez mais sua rede de negócios escusos, de aumentar o poder, esquecia-se dela. Aliás, era uma situação da qual ela até gostava. Tinha lá seus meios de dar umas escapadas e encontrar-se com homens bem mais interessantes e atraentes do que Ramiro.
Após combinar seu encontro com Billly, havia subido até seu próprio apartamento, a fim de trocar de roupa, vestir algo mais conveniente e sedutor. Descera em seguida, nem disse à empregada onde estaria. Na certa, Ramiro nem ia notar sua ausência. Estava cada vez mais distante dela. Era só negócios, negócios, negócios. Lembrou-se do seu affair com Billy, alguns meses atrás, do qual restou uma lembrança suave, gostosa. Agora, iria reviver com ele aqueles momentos inesquecíveis.
Ao abrir a porta, Billy exclama, falando diretamente para o interior do apartamento.
— Desculpa, RAMIRO, o ar condicionado está desligado. Fique aqui, RAMIRO, vou abrir as janelas para refrescar.
O estratagema funcionou. Billy viu a grande sala vazia, silenciosa. Foi até a porta para o quarto, fechando-a. Dirigiu-se ao bar, onde iniciou o ritual de servir as bebidas, para Rodrigo e para si.
Nivalda ouviu a porta ao ser aberta. E a voz cristalina de Billy, falando com... RAMIRO!
Deu-se conta da situação. Por qualquer motivo, Ramiro estava no apartamento de Billy! Pula da cama, pondo-se de pé e correndo na direção oposta da sala, onde estão os dois homens. Sua única saída é a janela. Mas está no décimo sétimo andar, sem chance de escapar. Sai até a sacada estreita. Nem ali está segura, seu marido pode vê-la a qualquer momento, basta chegar à janela da sala. Poderia pular para a sacada do outro apartamento, mas teria de passar em frente à janela da sala. Foi o que fez. Abaixou-se e correu, escondendo principalmente o rosto.
Apesar da rapidez, Ramiro viu o vulto. Não ficou surpreso, sua suspeita estava confirmada: Nivalda estava no apartamento de Billy, e não tinha como fugir. Calmamente, tomou seu uísque e sentou-se sem ser convidado.
— Então, seu Billy, divertindo-se bastante em Punta?
— Pouco. Estou mais a negócios. Fiscalizo nossas operadoras no Uruguai e aproveito para me distrair no cassino.
Nenhuma animação na conversa. Billy, preocupado, Ramiro, um gato esperando a hora de dar o bote. Na mulher e no loiro.
Na sacada, Nivalda continua sua fuga: de pé sobre o largo beiral da sacada, avalia a distância que vai pular. Está com a cabeça fria, não precisa pressa. Ramiro deve estar “pra lá de Marrakesh”, pensa. Já bebeu todas e vai ficar ali no apartamento de Billy enquanto houver bebidas nas garrafas. Idiota. Em vez de ir cuidar da festa de seu aniversário, fica amolando o Billy e interrompendo um encontro que estava prometendo tanto.
Tem tempo de sobra pra fugir. A distância é pequena, um metro, pouco mais, pouco menos. Não se intimida nem mesmo com a altura. Dá um balanço, um impulso e salta. Consegue colocar o pé direito sobre o para-peito da sacada.
— UPA! Consegui! — Pensa, ainda no frenesi da fuga.
Pisa, sem querer, na franja da saia rodada, e suas pernas se emaranham no tecido. Perde o impulso, por alguns centímetros não consegue colocar também o pé esquerdo no parapeito. Desequilibrada, cai para trás, tenta agarrar-se com as mãos, ao mesmo tempo em que bate com a cabeça na borda da sacada de onde pulara.
Não dá um grito, um ai, ao precipitar-se desmaiada pelo espaço. Cai sobre uma laje em construção, dez andares abaixo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE – 4.DEZEMBRO.2000
1880 PALAVRAS