PINGA COM CAPILÉ
= PINGA COM CAPILÉ =
Amanheceu frio, chuvoso. Dia pra gente ficar na cama, preguiçando, como se fosse dia santo de guarda ou feriado nacional. Não era nem uma coisa nem outra, pensou Rafael. Tinha de acabar com aquela preguiça e levantar-se cedo. Era sábado, dia de movimento na cidade, intensificado pela presença dos trabalhadores das fazendas e sítios. Tinha de abrir logo as portas da venda, ou ia perder freguês.
Trocou de roupa com pressa, a calça e a camisa estavam frias. Calçou suas botinas ringideiras, e, sem querer, acordou a mulher, ao dar os primeiros passos pelo quarto.
— Tá levantando mais cedo, Rafael? — Ela passou a mão pelos cabelos, num gesto de abandono,abrindo os olhos para a escura manhã.
— Que nada, mulher. Tá escuro de chuva, passa das seis horas.
— Então tá mesmo na hora de levantar. — Fazendo o sinal da cruz, começou a fazer suas orações da manhã, num silêncio contrito de apenas alguns minutos.
Ele foi ao quintal, até a latrina, onde urinou com vontade. De volta, entrou no quartinho de banho, lavou as mãos, passou água no rosto — “Ai, que gelo!” — e na cabeleira preta. Penteou com os dedos os cabelos, mantidos compridos para esconder a careca que aumentava a cada dia.
Caminhou por toda a extensão da casa, do quartinho dos fundos até a sala de visitas. Saiu pela porta do alpendre, foi pela estreita calçada que levava até a porta dos fundos da sua loja de secos e molhados. Abriu depressa a porta, a chuva estava engrossando, molhando sua camisa fina. Entrou num supetão.
O salão da loja fora construído especialmente para seu comércio. Ele próprio orientara a construção, colocara a madeira do telhado. Rafael era carpinteiro, resolvera de repente experimentar o comércio. Ao lado de sua casa, construiu o cômodo: paredes de tijolos de primeira, chão ladrilhado. O forro de madeira protegia o salão do calor do telhado. Quatro portas abertas para a rua, uma porta lateral acessava à casa. Ele mesmo construiu as prateleiras de madeira aparelhada e sem pintura. Um balcão de tábuas grossas corria de um lado a outro, separando o recinto dos fregueses das prateleiras . No centro do balcão, uma balança de dois pratos, com o jogo completo de pesos, de 50 gramas até 2 quilos.
Rafael varreu rapidamente a parte externa, passou um pano sobre o balcão e limpou a balança com sua coleção de pesos. Numa pequena vitrina, num canto do balcão, os pratos de doces quase vazios. No outro lado, uma pia com torneira e água corrente, usada para lavar os copos de bebidas. Os copos e os martelinhos estavam limpos, lavados de véspera, emborcados sobre um pano que já fora branco.
— ‘Dia, seu Rafael. — O mulato entrou, batendo os pés e passando as mãos sobre a carapinha, a fim de tirar os pingos da chuva que escorriam pela cabeça, descendo pela cara e pescoço.
— Bom dia, Zeferino. Que tempo danado, hein? Vamos entrando, que a chuvinha tá fria.
— É verdade! Levantei de madrugada, ainda não tava chuvendo, mas tou caminhando debaixo dessa meleca faz mais de hora. Tou ensopado.
Chega a mulher com um prato esmaltado, no qual um xícara de café solta fumaça, ao lado de um pãozinho cortado ao meio, com fina camada de manteiga.
— Tá servido, Zeferino?
— ‘Brigado, seu Rafael, Já fiz meu quebra-jejum antes de sair de casa, tou satisfeito.
Rafael come depressa. Finalizando o café, limpa a boca com as costas da mão direita, e os dentes com sonoras chupadas de ar, que passa entre os lábios, as gengivas e a língua, maneira prática de desalojar os restos de pão que ficam entre os dentes.
— Luzia, me traz o paletó, tá um frio danado aqui. — Pede à esposa, que sai e volta num minuto, com o agasalho pedido: é o único paletó de Rafael, de casemira azul-marinho, faz parte do seu terno de casamento.
— Então, seu Zeferido, que é que manda? — Animado Rafael se dispõe a atender o primeiro freguês do dia.
— Primeiro que tudo, me dá aí uma pinguinha cum capilé, que num tou agüentando de frio.
Rafael pega um martelinho e faz a mistura: metade de pinga, metade de capilé. A bebida colorida brilha no copo de fundo grosso. Zeferido beberica e dá início à primeira venda do dia na loja de Rafael.
Vai desfiando sua lista decorada das mercadorias que deseja. A cada item, Rafael se vira para as prateleiras ou se abaixa, a fim de pegar algo embaixo do balcão.
O estoque é variado, a loja de secos e molhados tem de tudo um pouco: arroz, feijão, sal, açúcar, café, fumo em corda, rapadura, farinha de trigo, de milho, de mandioca, macarrão. Latarias poucas, apenas sardinha e massa de tomate. Sabonete, pasta de dentes, pentes, pó-de-arroz (cinco latinhas). Cadernos escolares, lápis, vidros de tinta e borrachas de apagar. Quatro “pedras de escrever”: as lousas, não mais usadas nas escolas, ficam junto com os artigos escolares. Rafael reluta em jogá-las fora, mesmo sabendo que ninguém vai comprá-las. Ferragens de um lado. Uma prateleira de tecidos mais comuns, linhas, botões, agulhas, miudezas para as donas de casa. Do outro lado do balcão, a prateleira de bebidas: cachaça, fernete, vermute, capilé, conhaque, muitas garrafas de cerveja e de guaraná. As cervejas são de diversas marcas e tipos: loiras, escuras, casco verde e casco escuro.
Rafael atende com presteza a Zeferino. Chegam mais dois fregueses, que se assentam em caixões vazios, à espera de serem atendidos.
Zé do Retiro acordou com o barulho da chuva no zinco de sua cabana, ao lado do curral. Solito na vida, estava agregado à fazenda Sapé há mais de 40 anos. Bom no cuidado das vacas, retireiro de primeira, era estimado pelos peões e companheiros de lida. Enquanto lavava o rosto, ouvia o barulho das vacas e bezerros no curral, apartados pelo Filomeno. Balde numa mão e banco na outra, lá foi Zé cumprir a sua tarefa. Não tirava um dia de folga, nem sábado, nem domingo, nem mesmo Sexta-feira da paixão ou Finados. O trabalho do retireiro não dava um dia de descanso. Se ficasse doente ou por qualquer motivo não pudesse trabalhar, outro retireiro teria de fazer a sua tarefa, as vacas não podem ficar sem a ordenha.
Gostava da sua vida assim. Não conhecia outra, sempre fora desse jeito, mesmo nos tempos em que vivia com o pai, a mãe e os quatro irmãos, todos homens. Nos pagos do sul, todos lidavam com o gado. Seus irmãos eram espertos campeiros, mas ele nunca gostara de montar, gostava mesmo era de cuidar de vacas e terneiros. Manso de natureza, nunca se aperreara em arrumar companheira, uma dona para lhe esquentar os quartos. Nunca esquentou a cabeça com esse bicho de saias, e na única vez em que se enredou por uma chinoca, se viu metido numa confusão danada. O pai da moça não concordou, ele teve até de sair fugido, no negrume de uma noite sem lua. Fugido da campina gaúcha, veio dar com os costados na fazenda do seu Lareano, nos grotões de Minas, onde se amoitara pra sempre.
— Então, Zé, hoje vamo na casa da Miquelina, vem com a gente ! — Os amigos o convidavam todas as vezes em que iam à cidade para uma noite de farra.
— Ara, cumpadre, cê sabe que num gosto dessas coisas.
Já era quase meio-dia quando deu por terminado o serviço do retiro. A chuva da madrugada prosseguiu durante a manhã, o curral era um lamaçal só, bosta misturada com a terra vermelha e urina do gado. Um fedor terrível que atravessava a pele e entrava no corpo. Zé teve de tomar um banho vigoroso debaixo da bica, esfregando a bucha e o sabão de cinza, a fim de trocar de roupa e ir à cidade fazer suas compras da semana.
Andava descalço, nunca usava bota, sapatos ou chinelas. A roupa era simples: camisa e bombachas brancas, feitas de sacos de farinha de trigo, costuradas habilmente por dona Nicéia, que não lhe cobrava nada pelo serviço. Nos ombros, as alças dos diversos embornais, nos quais ajeitará as poucas coisas que vai comprar no armazém do seu Rafael.
Quando chegou na venda, pelas três da tarde, o tempo tinha melhorado, o sol tentava rasgar as nuvens para botar seu brilho sobre a terra empapada. Na beira da calçada, amarrados em argolas cimentadas no chão, quatro montarias esperavam. Os fregueses da tarde demoravam-se nas conversas e nos tragos de biritas.
— Óia, gente quem tá chegando! — Rafael saúda Zé do Retiro . — Boa tarde, muchacho .
Zé do Retiro gosta do tratamento, lembra sua infância e juventude nos campos do Rio Grande. Abre o sorriso para todos.
— Boas tardes, cumpadres ! Boa tarde, seu Rafael. — Assenta-se num caixote e prepara-se para esperar, ao ver que há diversos fregueses na sua frente para serem atendidos. Puxa da palha e saca do bolso um canivete , um pedaço de fumo, começando a fazer seu cigarro. Puxa prosa e logo entabula uma conversa gostosa com os outros, todos seus conhecidos.
O jagunço acordou de bom humor. Passara a noite na pensão de Zefa Malaca onde a Tiroleza tinha lhe servido do bom e do melhor da bebida, da comida e de seu corpo. Acordou tarde, mas o dia estava escuro. Tomou café com a Tiroleza, vendo a chuva caindo em corda das bicas do telhado e foi ficando, contando prosa, os causos, alguns engraçados, a maioria de mortes e tocaias. O freguês era prosa, respeitador e as mulheres gostavam de clientes animados e com bastante dinheiro para gastar. Almoçou e tirou um cochilo, aproveitou para dar mais uma trepada com a Tiroleza, antes de ir embora.
— Fica mais com a gente. — pediu Zefa Malaca. — Onde é que mecê vai com esse tempo de chuva?
— Posso não, tenho de botar pé na estrada. Tenho serviço contratado. — Carlão ia explicando, enquanto arreava seu cavalo Zulu. Colocou a sela, apertou a barrigueira, afagou o animal. Verificou a manta, amarrou-a atrás da sela, logo ia precisar dela, se o tempo continuasse chuvoso.
Era perto das três da tarde, quando montou e esporeou o cavalo e tomou rumo da estrada. Feições rudes, a barba comprida mal cuidada, o cabelo emaranhado, molhado de chuva fina. Alto e magro, o chapelão sombreava sua catadura. Montado, era um cavaleiro imponente, causava admiração e inspirava respeito, medo.
Quando passou pelas últimas casas da cidade, já entrando na estrada, resolveu parar na pequena venda para comprar mais fumo e tomar uma birita, a derradeira. Viu os cavalos amarrados na frente, desceu e amarrou o Zulu numa argola.
— Boas tardes, gente. — A conversa animada entre a meia dúzia de fregueses estacou com a entrada do desconhecido. Alguns responderam, impressionados com a figura do recém-chegado.
— Então, cumpadre! — Dirigiu-se ao comerciante com familiaridade. — Tem aí pinga da boa?
Rafael não gostou nem um pouco do sujeito. Mas estava ali para vender, não tinha de ficar escolhendo freguês, pensou.
— Tenho uma das boas, a “Tomba Perna”. Conhece? Vem do norte de Minas, é especial.
— Me serve um trago.
Rafael serve um martelinho cheio até as bordas. O jagunço toma de uma só vez. No que devolve o copo, faz um esgar, arregala os olhos, estrala os lábios, tudo para aprovar a qualidade da cachaça, antes de expressar em palavras.
— Égua, sô, que prego ! Essa é mesmo da melhor ! Bota outra dose.
E em seguida toma a segunda, a terceira, a quarta. Vai se entusiasmando.
— Ei, pessoal, pago uma rodada pra todo mundo. Seu Zé, — fala com Rafael — bota aí um martelinho para cada um dos companheiros aqui reunidos. Eu, Carlão Tavares, pago pra todos os presentes.
Rafael coloca mais martelinhos sobre o balcão, que vai enchendo com cachaça. Lembra-se vagamente de ter ouvido alguma coisa a respeito desse cavaleiro, coisa antiga, não consegue recordar-se completamente de quem se trata.
— Pra mim faz uma com capilé. — Pede um dos fregueses.
— Eu quero com fernete, essa danada aí é muito forte pro meu gosto.
Rafael vai fazendo as misturas conforme os pedidos. Todos ficam satisfeitos com a rodada. O jagunço está satisfeito com a própria generosidade, quer que todos fiquem alegres com ele.
Sentado no caixão, Zé do Retiro não participa da folgança geral. Fica quieto, observando.
— Então, moço, prova aqui a dengosa ! — Insiste Carlão.
— Bebo não, senhor. Num agüento nem bicar, que já fico zonzo. Sou fraco pra bagaceira. ‘Brigado, assim mesmo.
— Qual o quê, seu. Faz aí pra ele uma pinga-doce, põe bastante capilé.
— Carece não sinhor. Num güento nada mesmo. Nem pura, nem misturada.
O jagunço não gosta da recusa. Fecha a cara.
— Até hoje, ninguém fez pouco das rodadas que já paguei. Mecê não vai ser o primeiro a me desfeitear assim. Bebe, home, nem que for só pra me agradar.
— Posso não, capitão ! Se bebo, caio aqui mesmo, no ato.
— Qual o quê, seu ! Vai beber sim. E sabe o que mecê vai beber? — Virando-se para Rafael, ordena:
— Põe aí um marterlinho de pinga com sal-amargo. O moço aí precisa de remédio, pois vai ter um.
Rafael pensa que é brincadeira, não leva a sério a ordem. Os outros fregueses estão calados.
— Tá esperando o quê? Já falei, ele vai tomar uma dose de caiana com sal-amargo. Num vai me dizê que nesta merda de venda num tem sal-amardo? Se não tiver, vai pegar na farmácia. — Sem terminar o mandado, abre o paletó comprido, exibindo o largo cinturão, com o revólver pendente ao lado do quadril.
O tom e os modos de Carlão Tavares intimidam a todos, principalmente a Rafael, obrigado a executar tão bizarra ordem. Claro que tem sal-amargo, laxante eficaz, muito vendido. Fica surpreso, entretanto, com a ordem do estranho. Procura o vidro do laxante, põe uma colherinha do sal no copo pequeno, que cobre com pequena dose de aguardente.
— Enche o copo, e põe mais sal-amargo. O companheiro ali agüenta!
Rafael obedece.
— Agora, bebe! Quem tá oferecendo é Carlão Tavares. Cês sabem quem sou, num sabem?
Ninguém sabia, mas todos vêem que se trata de um valentão, talvez um bandido, quem sabe um jagunço, desses que matam pra ver a vítima fazer careta.
Zé do Retiro obedece. Em dois tragos, emborca a mistura, deixando que boa parte escorra pelo queixo, molhando a camisa, o peito e até seus pés descalços. Engasga-se, tosse diversas vezes, é ajudado pelos amigos.
— Toma um copo d’água, Zé. — Rafael oferece, e Zé bebe, sofregamente. Senta-se de novo no caixão, arfando, os olhos cheios de lágrimas.
— Tá bom, assim tá bom. ! Quero também um pedaço de fumo. Quanto pago por tudo?
Pega o naco de fumo, paga e sai. Os fregueses suspiram, aliviados.
— Vamos lá pra dentro, deita um pouco. — Rafael passa pra fora do balcão, chega perto de Zé. — Vou mandar Luzia fazer um café forte.
— Pode deixar, seu Rafael. — Zé se reanima rapidamente. — Num carece incomodar.
Permanece sentado. Daí a pouco chega dona Luzia com uma bandeja. A xícara de café forte é oferecida ao pobre coitado, que toma em pequenos goles.
Recuperando-se, Zé se põe de pé, pendura seus embornais no pescoço.
— Inda bem que já terminei a compra. Já devia ter ido embora muito antes.
— Fica mais, Zé, descansa um pouco.
— Tou bom, posso ir. Sem susto, gente! — Decidido, sai do empório, e pega o caminho de casa. Nem repara nas nuvens escuras, gordas de chuva, na iminência de desabarem sobre a terra encharcada.
O domingo amanheceu novamente escuro de chuva. O forte temporal da noite prosseguia agora em chuva grossa. Rafael demorou-se a acordar, permaneceu preguiçando no leito, passando as mãos sobre os cabelos compridos de Luzia. Carinhosamente. Ela ainda dormia, ele sempre acordava primeiro. Escutava a chuva sobre o telhado.
Da rua chegaram vozes, pessoas conversavam alto, e em seguida batidas à porta. Rafael levanta-se num átimo, chega à porta.
— Quem é? — precavido, pergunta antes de abrir.
— Pode abrir, seu Rafael. Precisamo de ajuda !
Rafael abre a porta. Assusta-se com o que vê.
— Mas, o que aconteceu com o Zé do Retiro?
O corpo está deposto na soleira da sua porta. Enlameado, apenas o rosto mal limpo revela a identidade do morto.
— Encontramos ele lá na curva da paineira. ‘Tava deitado na beira da estrada. Com certeza caiu na vala e a enxurrada afogou ele.
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ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS)
Belo Horizonte, 7 de novembro de 2000
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