A LOUCURA DO CRISTAL

— Dona Mariinha, por favor, prepare uma poção pro seu Mané que o home endoidou de vez.

— Mas o que foi que aconteceu, cumpadre Lavínio?

— Num vê a senhora que Seu Mané tá lá no barraco gemendo e gritando, dizendo que encontrou o cristal, que num agüenta vê tanto brilho, tanta luz, tá completamente descontrolado.

Dona Mariinha já tem uma garrafada preparada para o pedido de seu Juca. Não é de hoje que ela conhece os sintomas da "loucura do cristal". A raizeira já viu muitos garimpeiros atacado da cegueira das pedras. Antigamente era mais comum, pois todos os homens se dedicavam a cavoucar a morraria e os vales, em busca de cristais, e principalmente na procura doida do "cristalão", o maior dos cristais. Um cristal tão grande que seriam necessários muitos homens para arrancá-lo do chão e arrastá-lo até a vila de S. Miguel. Mas era tudo uma loucura, ela sabia.

— Leva esta garrafa pro seu Mané. Faz ele beber uma boa golada três vezes por dia. Quem é que tá tomando conta dele?

— Ninguém, não senhora. Hoje cedinho eu estava levando uns turistas de S. Paulo pra cabeceira do Rio Preto, fora do parque, quando a gente ouviu uns gritos vindo do casebre do seu Mané. Fomos todos pra lá, e encontramos o coitado deitado no chão, tremendo que nem vara verde, num delírio. Gritando que tinha achado o cristalão, que agora era o homem mais rico do mundo, essas coisas de quem fica encafifado na procura do que não existe.

— Intão é bom que alguém vá ficar com ele, senão ele pode fazer alguma besteira. Tem tanto barranco, buraco, tanto despenhadeiro pra aquelas bandas.

Lavínio estava cansado, caminhara o dia inteiro com os turistas, subindo a serra por uma trilha muito difícil. Não gostava de guiar os turistas além do Parque, as trilhas são difíceis, há locais em que o acesso é feito com ajuda de cordas. Arriscado, difícil e cansativo. Entretanto, tinha de levar o remédio para seu Mané.

— Zequinha, vem comigo na palhoça do seu Mané. — Falou com o filho, esperto e crescido para seus 11 anos. — Leva pão e alguma coisa pra comê de noite. Se for preciso, cê fica lá até ele melhorá.

Subiram a serra os dois. A região, além dos limites do Parque da Chapada dos Veadeiros, era ainda explorada por alguns poucos garimpeiros à procura de cristal. O terreno todo esburacado, cheio de entulhos, montes de terra e de cascalhos, alguns de escavações recentes. Passaram por perto do "buraco" do seu Mané.

Lavínio conhecia bem a área. Ele mesmo, há alguns anos atrás, ainda cavoucara por aquelas plagas. Jamais encontrou uma pedra que lhe desse ao menos o retorno de anos e anos desperdiçados na procura de cristais. Felizmente para ele e para a maioria dos garimpeiros a região foi transformada em Parque Ecológico. O garimpo foi proibido na área do Parque. Vieram os homens do IBAMA, outros chegaram por conta de organizações estrangeiras. Quando foi proibido o garimpo, houve um alvoroço, os garimpeiros ficaram sem saber o que fazer. Ali naquele fim de mundo o garimpo era o único trabalho . Alguns amigos de Lavínio não esperaram nem a demarcação do parque, abandonaram as áreas, foram embora. Notícias correram de que novas jazidas tinham sido localizadas mais para o norte do estado.

O sol já era um novelo vermelho-sangue na fímbria do horizonte, por sobre a morraria sem fim, quando Lavínio e Zequinha chegaram no barraco de seu Mané. O local indicava bem a degradação dos homens que insistiam na lavra dos cristais. Já fôra uma casinha de alvenaria, há muito, muito tempo atrás. As paredes caídas foram substituídas por amontoados de pedras colocadas irregularmente umas sobre as outras. O telhado há muito caíra, agora era uns pedaços de plástico preto, amarrados com embiras e cipós , em paus de tamanhos irregulares. Os três cômodos estavam simplesmente reduzidos a uma área comum, que servia de quarto e cozinha. Nada de janelas e portas: entrava-se e saía-se, levantando-se uma parte do plástico preto . Aliás, marrom de tanto pó e sujeira acumulados.

Lavínio adentrou pelo barraco, os olhos procurando na penumbra do interior pelo amigo de muitos anos. Demorou alguns instantes até que se adaptasse à escuridão. Não viu ninguém.

— Mané! Mané! — Chamou pelo amigo.

Silêncio no interior do casebre. Ouviu passos do filho, andando ao redor do rude barraco.

— Pai ! Corre aqui! seu Mané tá deitado aqui atrás. — Zequinha gritou aflito.

Carregaram o velho para dentro da choça. Estava ainda delirando.

—Mãe de Deus, que maravilha! O Cristalão ! Achei o cristalão. Tá lá em cima, nas nuvens.

Olhava para o alto, para um ponto indefinido, catacego procurando enxergar o invisível.

— Calma, Mané. Fio, ajuda aqui, vamos levá ele pra dentro.

Carregaram o velho. Magro e mirrado, foi fácil. Deitaram-no sobre um amontoado de folhas secas, pisadas, que lhe servia de cama. Lavínio abriu a garrafa, deu uma dose da beberagem para seu Mané. A boca seca, os lábios gretados e a língua dura avidamente receberam a bebida. Seu Mané engoliu com avidez e queria mais. Lavínio deixou o velho descansar sobre as palhas e folhas. O doente se acalmou . Do embornal tirou um pedaço de pão-doce, ofereceu-o para seu Mané

. . . . . . . . . .

— Zequinha, cê fica aqui, passa noite com ele. Quando ele acordar, dá mais um gole da garrafada, mas só um gole. Amanhã cedinho venho com mais gente, pra levá seu Mané pra vila.

É noite fechada quando Lavínio se põe a caminho, de volta à Vila de S. Miguel. A trilha estreita e áspera segue por sob o arvoredo enfezado do cerrado. Tudo lhe é familiar, conhece cada lavra, cada curva, cada subida e descida. Durante muitos anos ele tentara a vida naqueles ermos. Após a marcação das terras do Parque, a morraria acima ficou fora, além dos limites da reserva. Por isso é que Seu Mané continua escarafunchando o buraco, não parou um dia sequer. Há mais de 50 anos na tentativa insana de chegar à mina do "cristalão", sonho abandonado por muitos ex-garimpeiros.

Os garimpeiros e os garotos que cateavam passaram por dias difíceis, sem trabalho até que a administração do Parque viu que a miséria crescia a cada dia após a proibição. A proposta de fazerem dos garimpeiros guias de turistas foi bem aceita por todos - pois não tinham alternativa. O que foi uma bênção para êles. Tiveram, é claro, de freqüentar cursos, aulas de como tratar os turistas, alfabetização para todos. Enfim, uma verdadeira revolução nos costumes de toda a população da vila. Até as mulheres puderam freqüentar os cursos, e as mais decidas tornaram-se também guias para turistas.

Apesar do negrume da noite, Lavínio sabia que estava passando próximo do "buraco do seu Mané". A escavação que o teimoso garimpeiro vinha fazendo na encosta do morro transformara a loca em uma profunda caverna. Desde sua chegada à região o jovem Manoel das Alagoas entestara na idéia de que ali estaria o cristalão. E foi cavoucando, cavoucando. Uma vez que outra, encontrou algum cristal, o que aumentou seu entusiasmo. Lavínio sabia que o buraco agora adentrava-se por mais de duzentos metros pela montanha . Todos os dias seu Manoel, com suas parcas ferramentas, entrava até o fundo da caverna e cavava. A boca da caverna estava quase escondida, detrás de montes e montes de terra trazida das entranhas da montanha.

Até que seu Mané tinha resistido bem à "loucura do cristal", pensou Lavínio. Ele mesmo, Lavínio, tinha sofrido um surto do delírio, passara por um ataque que lhe teria sido fatal, não fora o desvelo da mulher. Cidinha permanecera ao lado de seu catre por mais de uma semana, dia e noite, sem dormir. Lavínio sabia o que era sentir a luz intensa do gigantesco cristal, luz de êxtase, cegueira, delírio. Febre e suor por todos os poros. Fazia tempo, coisa de mais de vinte anos. Dona Mariinha das Ervas foi quem o curou, com uma garrafada possante e maravilhosa.

Mulher abençoada, a dona Mariinha. Sabia de tudo das ervas do cerrado. Tinha na sua casa armários e baús, caixas e cestas cheios de ervas secas, sementes, galhos, raízes e cascas de árvores. Sua mão era santa nas horas misteriosas das coletas e mais santa ainda no fazer as poções de cura. Muitas garrafas se alinhavam num armário fechado, ao qual só ela tinha acesso, trancado com enorme chave dependurada em seu pescoço, escondida entre seus seios.

Descendo rápido, Lavínio ia rememorando. Alguns moradores da vila achavam que Dona Mariinha "tinha partes" com o Diacho, pois ela não saía nas noites de sexta-feira para encontrar com seu patrão nos ermos do cerrado? Qual o quê.... o que eles tinham é despeito dos conhecimentos dela. Afinal, tudo o que ela sabia e fazia era para ajudar as pessoas. Vinha gente de longe em demanda de suas garrafadas. Tranqüila e asseada, recebia os viajantes — e também o pessoal da vila — sempre com um sorriso. E, além de fornecer as garrafadas, dava conselhos e orientação para os visitantes. Santa mulher.

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No dia seguinte, antes que os guias partissem em serviço, Lavínio procurou ajuda na vila .

— Preciso de dois companheiros pra trazer o seu Mané pra vila. O home não agüenta andá, tá lá em cima no seu casebre, atacado da "loucura".

Achou Jeremias e Siba. Dona Mariinha quis acompanhá-los.

— Aproveito para pegar algumas ervas que só tem lá em cima.

Subiram os quatro em direção do barraco de seu Mané.

Sol forte na manhã sêca. A natureza estática espera o passar do tempo. Verde por toda a parte. O barulho das cachoeiras, ao atravessar o Vale da Lua, ecoa, trovão longínquo. Lavínio tem pressa, pensa no filho, sozinho, lá em cima, com o velho louco. Zequinha é esperto, mas nunca se sabe.

Chegam à clareira onde se ergue a tosca construção. O pedaço de plástico que serve de porta balança com preguiça, a beirada batendo no esteio, plaft, plaft.

—Aqui tem coisa! — Lavinio aperta o passo, fala para os companheiros, que ficam atrás.

Entra no casebre. Ninguém à vista. Vai até o fundo, perto do fogão, procura ansioso, pressente uma desgraça. Grita:

— Zequinha ! Ô Zéquinha !

Ninguém responde. Sai, encontra-se com os amigos.

— Num tem ninguém lá dentro! Nem seu Mané nem Zequinha !

— Vamo procurá eles. Devem estar por aí — fala D. Mariinha, cabeça fria.

Acham um trilho estreito que entra pelo cerrado, rumo ao cume do morro. Seguem os quatro em fila, caminho da roça. Não andam muito e vêem Zequinha no alto, sentado numa pedra bem no topo do monte.

— Zequinha! Zequinha!

O garoto não ouve, não vê, não faz qualquer movimento. O pai chega e abraça o filho. Atônito, vê lágrimas escorrendo pelo rosto do menino. Aos seus pés, estende-se profundo precipício, a face do morro descendo abruptamente por dezenas de metros, uma pirambeira de pedra lisa.

= Meu filho, que foi que aconteceu?

Zequinha permanece mudo. Aponta para baixo a mão, indicando uma mancha no verde da folhagem. Lavínio firma os olhos.

Lá embaixo pode ver estatelado e esfacelado o corpo de seu Mané, o vermelho de sangue entre trapos de roupas rasgadas.

= Discurpa, pai — finalmente Zequinha fala — mas num deu pra segurá ele... saiu correndo, que nem doido, tentei segurar, agarrei nas roupas. Elas rasgaram, ele despencou daqui de cima, agorinha mesmo....

ARGOS-ANTONIO ROQUE GOBBO -BELO HORIZONTE -

12 DE AGOSTO DE 2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/03/2014
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