BOMBA HUMANA
A madrugada se anunciava com o cantar dos galos e um albor por entre as montanhas, vindo do oeste. Pássaros pipilavam no arvoredo e nos beirais das construções da fazenda. O silêncio da noite era quebrado pelo despertar da natureza, através de mil e um sinais, como há muito soía acontecer na região da pacata propriedade, orgulho de seu proprietário Enrique Matrolos. Aconchegada nas faldas das altas montanhas do centro do país andino, a Hacienda Hermosa era modelo de boa administração e produtividade em toda a área.
-- Que foi? -- revirou-se na cama Mercedes, estranhando o súbito silêncio e o apagar da única lâmpada que permanecia acesa toda a noite no corredor da casa-sede.
-- Acabou a força. Defeito no gerador. Preciso trocar os carvões -- Enrique sentando-se na cama responde à mulher, estende a mão para pegar suas calças no encosto da cadeira ao lado da cama.
Uma pancada súbita, barulho de madeira quebrada e uma luz ofuscante cega por momentos Enrique. Assustado, levanta-se e é atingido por uma batida na cabeça. Tonto, cai sobre a cama ao lado da mulher, abafando seu grito.
-- Quieto aí ! -- soa a ordem , voz clara, timbre forte, comando para ser obedecido. Pelo lusco-fusco da madrugada, Enrique percebe um vulto alto, encorpado, movimentando-se ágil pelo quarto.
-- Mas o que é isto? -- Grita angustiada e surpresa Mereceds. -- Que é que você quer?
-- Cala a boca! -- Ordena o encapuzado.
Enrique volta a si, passa a mão pela cabeça, sente o sangue ainda quente escorrendo pelo cocuruto. O cachorro, onde está o Vigilante? Ele jamais abandona a casa, pensa Enrique, tentando coordenar as idéias, compreender o que se passa.
O dia clareia rapidamente. Petrificada pelo terror, Mercedes pode ver através da janela recém-entreaberta as imediações da casa, vultos que passam em corridas silenciosas, fantasmas de um pesadelo que teima em permanecer consigo. Nem parece que está acordada, sim, deve ser um pesadelo. Passa a mão pelos cabelos curtos, tenta concatenar o pensamento, inutilmente, não vê nexo naquela situação inusitada.
-- Vamos todos pra sala e nem um pio!
-- Mas o que é que você quer da gente ? -- A pergunta de Mercedes é respondida com um sonoro tapa na orelha esquerda que a deixa zonza.
Cambaleando, Enrique e Mercedes, seguidos pelo assaltante, chegam à sala. Enrique ainda está tonto, mal consegue caminhar. Mercedes vê mais dois mascarados, ambos usando lanternas e armas. Nervosos. Agitados. Vestidos totalmente de preto, até seus tênis são escuros. Apenas os olhos se destacam na sombras da sala-de- estar. Silenciosos.
Com empurrões, o mascarado que vem após o casal faz com que ambos se sentem nas grandes cadeiras da sala mobiliada em estilo colonial.
Imediatamente outro comparsa começa a amarrar Enrique à cadeira. O fazendeiro ainda está tonto pela pancada, não faz nenhum gesto de resistência, nenhuma palavra. Mas sente que sua vida está por um fio, um tremor lhe corre o corpo. Começa a suar frio.
O terceiro bandido puxa Mercedes para si. Ela pensa horrorizada: Ai, meu Deus, ele vai querer coisas comigo, não vou fraquejar, mordo-lhe a língua, dou-lhe uma joelhada nos sacos. Não vou ser fácil pra ele, não, esse desgraçado vai ver.
Engana-se Mercedes. O mascarado empurra-a para o sofá, do outro lado da sala e a amarra pelos ombros e pela barriga, atando as mãos por trás, nas costas. Aperta as cordas sobre seus seios, machucando-a. Ela grita de dor. Após amarrada, é amordaçada.
-- Rápido, Coiote ! Arma longo a bomba ! -- ordena um dos mascarados. Agora todos parecem iguais à luz da manhãzinha.
Mercedes olha aflita para o bandido. Sim, agora ela sabe, não são bandidos que vieram simplesmente assaltar a fazenda. O bandido que a amarrou abre uma sacola de onde tira objetos brancos, pedaços de tubos de plástico, ferramentas e outros apetrechos que vai colocando ao seu lado.
-- Mas que diacho de coisa é essa? Bomba, ele falou? Meu Deus, vão explodir a casa! Oh! Não, não é possível. -- Mercedes só pode pensar, está totalmente paralisada pelas cordas e pelo terror, a mordaça quase a sufoca -- Ah! São guerrilheiros! Minha Nossa Senhora de Guadalupe, me ajuda! Que será que eles querem conosco ?
Silencioso, o mascarado começa a armar o estranho artefato ao redor do pescoço de Mercedes. O comparsa vem em seu auxílio. Usam grampos, cola, papelão e arames. Um bizarro colar de tubos plásticos é montado ao redor de seu pescoço. Ela ainda não entendeu a coisa, só sabe que está à mercê de gente muito ruim. Esses guerrilheiros são diabólicos, ninguém sabe o que planejam, o que significa isto tudo?
Enrique se anima, abre os olhos, balbucia coisas.
-- Mercedes...o cachorro...Cadê o Vigilante? Ele nem latiu.
-- Quieto aí, cara! Seu cão já era, não sofreu nada. Nosso veneno é de índio: forte, rápido.
Enrique está abobalhado, porém Mercedes está muito alerta, para sua maior desgraça. Agora o bandido enfia pequenos cartuchos dentro dos tubos armados ao redor de seu pescoço.
Os tubos medem uns vinte centímetros de comprimento, são muito comuns na fazenda, usados para canalizar água, irrigação, instalações diversas, ela conhece bem o material. São incômodos mas não machucam o pescoço de Mercedes.
O bandido, enfim, se dá ao trabalho de lhe falar:
-- Fique bem quietinha, senhora, agora vou colocar o detonador. Bem quieta aí !
Mais alguns minutos e o hábil bandido completa o seu serviço.
-- Pronto ! Agora, preste atenção. Vou lhe explicar e não vou repetir tudo o que a senhora deve fazer. Ou melhor, o que não deve fazer ! Isto ao redor de seu pescoço é uma bomba. Estes tubos estão entupidos de dinamite. Pode ser detonada à distância. Vê isto aqui? -- Mostra-lhe um aparelhinho, uma pequena caixa preta com botões brancos e vermelhos. -- Com este aparelho posso acionar de longe o detonador da bomba que está no seu pescoço. Por isso, a senhora deve ficar bem quieta, nada de tentar arrancar este lindo colar. Explodirá automaticamente se tentar furar, cortar, serrar ou descolar. Aí, PUM ! Era uma vez uma formosa fazendeira. -- Ri com o galanteio de mau gosto.
Do alpendre entra outro bandido. Pelos modos decididos, parece ser o chefe da quadrilha.
-- Então, Coiote ?
-- Tudo pronto, Cascavel. -- Mercedes agora tem a certeza, são mesmo guerrilheiros. Usam os apelidos a fim de não deixarem pista alguma com nomes.
Cascavel é bem alto, magro, move-se tal qual um puma silencioso, chega ao lado de Mercedes. Fala através da máscara negra:
-- Seu marido está isolado, por isso preste atenção. Vou lhe tirar o pano da boca, mas nada de gritos, tá bem? -- Tira-lhe a mordaça. -- Queremos dez mil dólares até cinco da tarde de hoje. Agora são seis da manhã, vocês têm onze horas para atender nosso pedido. Entendeu?
Mercedes, olhos esbugalhados, a boca adormecida pela pressão da mordaça, faz que sim com a cabeça.
Aterrorizada com a revelação de que tinha sido transformada numa bomba-humana, e pela enormidade da quantia exigida como resgate, tenta argumentar com o bandido.
-- Mas não temos essa quantia. Jamais tivemos. Não temos nem a metade, e assim mesmo, está no banco, na cidade. -- Pensa nos quase quarenta quilômetros que separam a fazenda da cidade mais próxima.
-- Não interessa! Vocês vão ter tempo suficiente para arranjar o dinheiro, quero tudo em nota de dez dólares. Colocados nesta maleta que estou deixando aqui, tá vendo? A maleta deve ser colocada na Gruta do Índio Velho, você sabe onde é.
Mercedes presta atenção, sabe que os bandidos são cruéis, podem detonar a bomba sob qualquer pretexto, qualquer desobediência.
-- Quando pegarmos a maleta com os dez mil dólares, deixaremos no mesmo lugar, na Gruta do Índio Velho, uma fita de vídeo-cassete, com as instruções para desmontar a bomba. -- Continua Cascavel, de modo didático. Até parece um professor dando uma aula de física ou química.
-- Agora, adiós !
Saíram os quatro em formação e velocidade que denunciavam bem o treinamento que tinham com ações daquele tipo. Desceram os degraus do alpendre e entraram num jipe descoberto e da mesma forma como chegaram, partiram.
Um silêncio sinistro desceu sobre a casa sede da Hacienda Hermosa. O dia já estava claro, Mercedes ansiosamente olhava pela porta dos fundos, por onde habitualmente chegava Isabel, sua ajudante nas lides de casa. Chegaria a qualquer instante, e a livraria daquelas cordas que continuavam a machucá-la. Mais do que a bomba em seu pescoço.
A saída do veículo não foi notada por nenhum dos empregados da fazenda. Seguiu imediatamente por uma senda estreita que logo adentrou no bosque, montanha acima, onde desapareceu.
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Às três horas da tarde, o terror ainda rondava a Hacienda Hermosa. A polícia fora avisada, o gerente do Banco Del Desarrollo tentava por todos os meios conseguir a importância requisitada pelos bandidos.
Foi difícil para Hermando Gonçalez convencer a matriz de que o dinheiro deveria ser aprontado em tão pouco tempo.
-- Faltam garantias, faltam avais, é um empréstimo totalmente fora de cogitação. -- Foi a primeira resposta do Diretor Regional, pelo telefone, ao pedido de Hermando.
-- Si, porém o proprietário está impedido de negociar o empréstimo, está quase em coma, e a mulher tem uma bomba ao redor do pescoço. Mas a Hacienda Hermosa garante o empréstimo.Eles têm lá algum gado, colhem boas safras de batata todos os anos, são nossos clientes de há muito tempo! Se não os socorrermos nessa emergência, o Banco pode fechar a agência aqui, será um desprestígio total para nós. -- Freneticamente o gerente tenta angariar a importância em tempo hábil para satisfazer as exigências dos bandidos.
Às quatro horas da tarde a notícia já era de domínio público. James Maldonado, repórter da TV NCC da capital chegou à fazenda, seu helicóptero levantando uma poeira tremenda ao aterrissar, espantando animais e gentes das vizinhanças.
A fazenda estava em polvorosa. Ninguém sabia ao certo o que estava se passando dentro da casa-sede , cuja entrada estava proibida pela polícia.
Atrás da casa, distante uns duzentos metros, completamente isolados, num local aberto, estavam Mercedes, sentada num banquinho e um policial, agindo freneticamente no seu colar explosivo.
Fazia já cinco horas que o policial Miguel Moravia tentava desarmar a bomba. Suava em bicas. Procurava ao mesmo tempo acalmar Mercedes, que estava à beira do colapso.
-- Calma, Dona Mercedes. Temos tempo suficiente para desarmar essa engenhoca, nada lhe vai acontecer. Tenha fé.
Mercedes rezava, apelava para os Santos, para a padroeira da Hacienda, Nossa Senhora de Guadalupe.
Miguel era competente na sua atividade, especialista em desarmar explosivos, minas, bombas. Recebera instrução e treinamento de oficiais americanos, e tinha certeza de que conseguiria. Com o alicate ia desmanchando aqui, desligando ali: já desliguei quatro cargas, falta agora apenas este fiozinho vermelho, depois aquele verde, vou cortar este último e...
PUMMMM !
A explosão foi ouvida por todos os que estavam na Hacienda e até bem distante. Seca. Brutal. Mortal.
Mercedes morreu decapitada, Miguel Morávia nem viu quando seu braço esquerdo e a mão direita voaram pelos ares. Inconsciente, foi lançado a cinco metros de distância do local onde tombou o corpo de Mercedes.
Corajosos, ainda que assustados, quatro policiais que aguardavam à distância a finalização do trabalho de Miguel acorreram ao local. Socorreram o colega, carregaram-no para o helicóptero que havia trazido o repórter da NCC. Chegou morto ao hospital.
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ARGOS = Antonio Roque Gobbo -Belo Horizonte – 09.06.2000
Conto # 29 da coleção Milistórias
Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias