JOÃO BANDANHA
Era um João-ninguém, meio lerdo e de risada abobalhada na boca banguela. Tinha um tipo meio índio, meio oriental, olhos rasgados, salientes maçãs do rosto, testa curta e cabelos negros, lisos, compridos, despenteados.
Usava sempre roupas brancas: uma blusa de mangas compridas, e calças mal alinhavadas, feitas por sua mãe, de sacos de farinha de trigo alvejado, um velho chapéu de palha enterrado na cabeça até as orelhas de abano.
Vivia com a velha mãe Dona Zizinha em Macambará, pachorrenta cidade do norte do Estado. Por causa da poeira roxa, as roupas de João Bandanha mantinham um encardido avermelhado. Esse encardido estava encrostado na sua pele, e principalmente nas mãos. Parecia que ele nunca tomava banho . Também avermelhados eram seus tênis, empoeirados ou enlameados, que usava sem meias.
Com uma cesta de taquara debaixo do braço, fazendo pequenos biscates, entregando uma coisinha aqui, outra ali, dando recados, assim era a vida de João Bandanha. Rapazes e desocupados dirigiam-lhe chacotas, gracejos.
— E aí, João Bandanha? Gosta de comer ranha ?
— João Bandanha o homem-aranha !
— Vai pra puta que pariu ! — gritando, João respondia aos gracejos.
Morava com a mãe num casebre que ficava a uns poucos quilômetros da cidade. O casebre e o pequeno trato de terra ao lado da estrada velha do rio Pinheirinho eram a única lembrança e herança do pai. O pomar abandonado e uns poucos pés de café era o que restava do tempo quando o pai era vivo.
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Certo dia deu um estalo na cabeça de João Bandanha:
— Mãe, vou pra São Paulo.
— Fazê o quê, lá naquela danada de grande? Cê vai é se perdê por lá, João. Deixa de besteira.
— Vou trabalhá com Melquíades do seu Marciliano.
— Mas, João, eu vô ficá aqui sozinha?
— Num se amofina, mando dinheiro pra senhora do meu primeiro ordenado.
Era um verdadeiro sonho ir para S. Paulo, a Meca dos trabalhadores e dos deserdados. Só da família do seu Marciliano foram cinco pessoas. Todos estavam bem arrumados, com emprego, ganhavam bem.
No dia combinado com Melquíades, João Bandanha vestiu roupa limpa. Tinha lavado de véspera seu velho par de tênis. Encontraram-se na estação da estrada de ferro. Melquíades tinha lhe emprestado algum dinheiro para a passagem e as primeiras semanas na grande capital.
— Deixei um pouco do dinheiro com a mãe. — Explicou a Melquíades antes de partirem.
E lá foi se João Bandanha para S. Paulo. Sem qualquer habilidade ou profissão , nem ele mesmo sabia qual seria o seu trabalho. Melquíades não se preocupara em lhe dizer. Simplesmente ia para S. Paulo.
Um sonho. Um sonho grande demais para a compreensão de João Bandanha. Era na década de '40, a grande cidade era um sorvedouro de mão-de-obra de qualquer tipo, crescendo vertiginosamente. Recebia milhares de trabalhadores que chegavam diariamente vindos do interior. Um verdadeiro Eldorado para homens e mulheres, a última esperança para muitos de um emprego e dinheiro.
Uma vez em S. Paulo, João Bandanha trabalhou alguns meses com Melquíades, como vigilante noturno de uma enorme fábrica de móveis. Trabalho sem mistério, mas que o levou a conhecer os segredos da grande cidade. Não demorou muito, talvez uns quatro meses, trocou de serviço.
— Quero trabalhá de dia, de noite num dá — avisou ao patrão, quando pretendeu deixar o trabalho da indústria.
— Onde você vai trabalhar ? — indagou Melquíades, sentindo-se responsável por João.
— Vou trabalhar com seu Genaro. É dono de uma charutaria na Avenida São João. Lá no centro. Me ofereceu serviço.
No novo emprego, João era um leva-e-traz de Genaro Campagna. Não tinha serviço específico, era pau pra toda obra. Fazia o que o italiano lhe ordenava. Sem saber, João Bandanha foi aliciado para fazer o "trabalho sujo" do negociante, cuja tabacaria era a fachada de diversos negócios escusos. O italiano era, na verdade, um mafioso com interesses em casas de jogos, de prostituição, receptador de objetos roubados.
A transformação de João Bandanha foi assustadora. Revelou-se um esperto mensageiro do patrão italiano. Não demorou muito, estava lidando com entrega de mercadorias, pacotes com objetos valiosos. Freqüentava, por força dos mandados do patrão, casas de jogos, de putas e outros estabelecimentos iguais ao de Genaro, disfarces de maracutaias, depósitos de mercadorias obtidas ilicitamente e até mesmo esconderijos de marginais pertencentes ao bando do mafioso.
O antigo matuto transformou-se. Foi "subindo na vida", como se falava muito naqueles tempos. Até conseguiu dinheiro para consertar a boca. Colocou dentes, com obturação a ouro num dente lateral, que brilhava intensamente quando João Bandanha arreganhava a boca em risadas caipiras.
Desde os primeiros meses de sua nova vida em S. Paulo enviou uma ajuda à mãe. No princípio eram poucos cruzeiros, depois a ajuda foi aumentando, conforme aumentavam seus rendimentos.
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Passados uns dez anos voltou a Macambará, a visitar a doce Dona Zizinha solitária em sua casa . Estava alquebrada, os cabelos totalmente brancos e caminhava com dificuldade. Emocionada, abraçou o filho, transformado num homem elegante, vestido em boa roupa, bem penteado, os sapatos engraxados, brilhando, muito perfumado...Ah! Como cheirava bem o seu querido João!
Desde então passou a vir todos os fins de ano para visitar a mãe. A cada visita chegava mais aprumado, usando roupas boas, calçados finos, um distinto chapéu panamá, tudo nos trinques. Melhorou os modos, falava pouco, e tinha até uma certa aura de mistério. Além de aprumado, João Bandanha ficou vaidoso, e nas suas visitas à cidade fazia questão de ir à praça, se mostrar, como que dizendo a todos: "aqui está o cara que você gozavam. Antes que me esqueça, vão todos à merda".
Dava sinais de estar bem de vida, gastava bastante dinheiro nos bares e na zona, com as prostitutas. Andou perdendo também algum dinheiro para o Daví Levita, numa roda de jogo da casa de Maria Tiroleza, dona de pensão.
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Foi nos meados de agosto que João Bandanha chegou de madrugada, pelo trem das quatro. Foi direto pra casa da mãe. Poucas pessoas viram a sua chegada. Passou despercebido pela cidade que ainda dormia.
Foi para a casinha de dona Zizinha e lá ficou enfurnado. Dias. Semanas. Suas saídas só aconteciam à noite, quando ia para a zona ou para o jogo.
Taciturno, misterioso. Uma nova mudança operou-se nas suas maneiras. Revelou-se tambem cauteloso: ao entrar nos recintos de jogo ou nas salas das pensões da zona, só o fazia depois de dar uma olhada cuidadosa, como se certificando de que nada ou ninguém que ali estivesse pudesse incomodá-lo.
Não voltou para a grande cidade, nem comentou nada com ninguém. Nem mesmo à sua mãe explicou a mudança de sua vida.
Alguns meses passaram nessa rotina de mistério e cuidado.
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— Não, meu caro detetive, não tenho nenhuma ocorrência do João de Souza Emerenciano . O seu homem só sai à noite, joga um pouco, vai à zona, tudo muito nos conformes. Aliás -- o delegado usava sempre o aliás para continuar seu discurso -- ele sempre ganha. Houve alguém que mencionou trapaças no jogo. Aliás, qual jogador profissional que não trapaceia, né mesmo?
O delegado de Macambará explicava ao detetive Raimundo Ornelas a completa falta de registro policial de João de Souza Emerenciano, aliás, João Bandanha.
Ornelas chegara de S. Paulo pelo trem da tarde e fora direto à delegacia. Investigava grave crime ocorrido na Capital há quatro meses. As pistas sobre o principal suspeito o levaram a Macambará. Mas o delegado só soube passar a Ornelas poucas informações que tinha sobre o homem procurado.
— Aliás, nunca vi esse cara de dia, parece um curiango, só sai de noite.
— Onde mora?
— Aliás, nem sei. — Gritando para o interior da delegacia, chama: Tião Bento, faz favor !
—- Pronto, doutor Delegado —- O soldado Tião Bento aparece, abotoando seu dólmã.
— Você acompanhe o detetive Ornelas. Mostre pra ele o clube e a zona onde o João Bandanha costuma aparecer. Aliás, leva o detetive até a casa do João.
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Nem o delegado nem o detetive de São Paulo tiveram notícia do desembarque, do trem-misto que passava às nove horas da noite, de dois homens altos e fortes, com chapéus de abas ocultando a meio suas feições, protegidos por guarda-pós e usando sapatos pretos brilhantes.
Quando Ornelas e Tião Bento saíam para a ronda em procura de João da Silva Emerenciano, passou por eles o carro de praça do Miceno Ramos, levando os dois homens de preto recém-chegados à cidade.
— Deixei os dois nos fundos da Igreja do Rosário. — Conta Miceno Ramos em depoimento prestado ao delegado. — Ali bem no final da rua onde começa a estrada velha para o rio Pinheirinho.
A fim de se familiarizar com o soldado e obter -- quem sabe? -- novas informações, pistas e dicas sobre o homem que procura, o detetive Ornelas resume para o soldado Tião Bento o crime que está investigando, enquanto percorrem as ruas parcamente iluminadas da zona de meretrício da cidade.
— Coisa de louco! Os bandidos, tendo já colocado nas suas pastas todas as jóias que encontraram no palacete do milionário, foram surpreendidos pela filha do casal. A mocinha tentou gritar, foi impedida por um dos ladrões, que terminara por matá-la. Fugiram com as jóias, e só na manhã seguinte o crime foi descoberto.
Passam pela pensão da Maria Tiroleza. Nada encontram , ainda é cedo para a chegada dos clientes. Prosseguem rumo a outras pensões. O detetive Ornelas continua a narrativa do hediondo latrocínio.
— A polícia de S. Paulo prendeu um dos bandidos. O outro, justamente o que matou a jovem, fugiu. E fugiu levando todo o produto do roubo, deixando o companheiro a ver navios. O parceiro preso deu com a língua nos dentes. Levantamos todos as pistas. O ladrão assassino, após transformar as jóias em dinheiro, viajou para o interior. E aqui estamos nós dois, na ponta desta pista, a última que me resta investigar.
A ronda dos dois policiais estendeu-se madrugada a dentro. Inutilmente, pois naquela noite João Bandanha não apareceu para jogar nem para folgar com as mulheres das pensões.
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No dia seguinte, quando o detetive Ornelas e Tião Bento se aproximaram do casebre à beira do Rio Pinheirinho, notaram logo que algo inusitado acontecera. Pela porta escancarada puderam ver uma confusão danada.
Entraram.
A casa tinha sido toda revistada, dona Zizinha estava amarrada na cama, quase morta de medo e de susto. Não dava notícia de nada. Tinha sido atacada, amordaçada, amarrada sem nada ter visto .
— Pombas, a casa tá toda de pernas pro ar, doutor !
— É, parece que alguém chegou na nossa frente.
Dona Zizinha não conseguia nem falar. Após tomar um copo d'água, indicou com a mão a porta dos fundos do casebre, com insistência e com olhares de pavor.
— Ei, aqui tem coisa ! — Ornelas dirigiu-se para a saída dos fundos -- Sinal de gente... e até marcas de sangue !
Ambos saíram do casebre e acompanharam o rastro, agora mais visível sobre a terra e o capim amassado.
Perseguindo os sinais, atravessaram um pequeno bosque que se interpunha entre a cabana e a margem do rio.
— Dotô, o home tava sangrando muito, óia só aqui as marca. — Tião Bento alertou o Detetive Ornelas, indicando a forte mancha escura que seguia rumo ao rio.
Ao saírem do bosque, João ia na frente.
— Xííí, dotô ! Óia lá naquela árvore !
E Ornelas viu: na crua luz do sol matutino, num destaque macabro, dependurado pelo pescoço, as mãos atadas, o corpo pendido, completamente estático, destacando-se contra o azul brilhante do céu sem nuvens, a figura negra de um enforcado.
— Dotô... É o João.. É o João Bandanha !
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Argos = Antonio Roque Gobbo - Belo Horizonte = 1 - junho – 2000
Conto # 26 da Série Milistórias -Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.