O Sequestro

Pessoas na manhã ciscando notícias nas manchetes dos jornais em volta da banca. A meu ver, se tornaram pombas patéticas, sacudindo o pescoço com seu tosco olhar sempre vidrado à frente, a mendigar milho e farelo de pão. Meu cérebro desligou o botão turbo da minha imaginação e sob meu olhar vi, agora ao invés de pombos, pessoas matinais avaliando as costumeiras desgraças das capas de jornais que em um dia para outro mudas, às vezes, o número de mortes ou quase mortes. É a mesma idiotice em trajes suavemente modificados.

Eram sete e meia de uma manhã ensolarada de início de outono. Eu entrei no pequeno shopping, onde trabalhava em uma agência de publicidade localizada no terceiro andar. Sentia na cabeça uma pressão incômoda enquanto subia as escadas após cumprimentar o simpático segurança. Uma insatisfação usual tomava conta de mim nesta manhã, assim como nas outras. Eu estava sempre insatisfeito com cada minuto de minha vida. Quando meu desagrado chegou, mais uma vez, a um nível, desta vez, quase alarmante (da última vez eu me aventurei no túnel depressivo de pílulas e álcool que nos leva para longe da vida, mas minha mãe e minha, na época, recém-namorada, me deram a mão e me trouxeram de volta à vida), por isso, desta vez foi “quase” alarmante. Pois ao invés de tentar pôr um ponto final em minha vida, eu procurei soluções dentro dela, para mantê-la funcionando e melhorando a cada dia. Avaliei minha rotina atual em busca de coisas que eu pudesse mudar. Todas as manhãs, abro mão de meu sono e do conforto de minha cama com grande desgosto para levantar-me e ir trabalhar, olhando aflito ao meu redor, achando todos os meus semelhantes mecânicos, distantes e patéticos em suas tarefas previsíveis e corriqueiras e um tanto ofensivas. Após essa tortura de caminhar entre estes, me vejo sentado no chão do terceiro andar, encostado na vidraça da grande janela, esperando a agência abrir. Enquanto isso eu leio. Mergulho em mundo de palavras que me acolhem e entretém-me calorosamente e, então, dá oito horas e as pessoas começam a chegar. Pessoas sérias e comprometidas com um mundo inventado que consegue ser mais fictício e assustador que qualquer coletânea de contos fantásticos de H.P. Lovecraft. Porque nós podemos sucumbir aos perigos tenebrosos do universo de Lovecraft na segurança de um quarto escuro lugubremente iluminado por uma vela, mas não podemos nos livrar da asfixia mecânica da ficção real imposta e sustentada por nós mesmos em uma avenida movimentada e iluminada pelo gracioso sol matutino. E então, às oito da manhã me arrancam do meu mundo literário e me escravizam neste mundo artificial até o meio-dia, que é quando eu, mais uma vez, preciso encarar o mundo exterior, de pessoas e pessoas em carros indo e vindo, para lá e para cá, dispostas a julgar minha postura, meu cabelo, meu rosto e minha roupa, até chegar em casa para cumprir com minha necessidade de me alimentar novamente e voltar, mais uma vez, aturando meus semelhantes tão diferentes de mim até a agência. E então completo a minha carga horária de trabalho, vivendo minha vida em prol de clientes e patrões até que o relógio finalmente marca dezoito horas e dezoito minutos e me concede a carta de alforria do dia.

Chego em casa pelas sete ou sete e meia, cumpro mais uma vez minha necessidade de alimentar-me, cumpro em seguida minha necessidade de tomar banho e então já são nove, nove e meia da noite e eu tenho meia hora, ou no máximo uma hora de vida própria até dar dez horas e eu cair em sono intranquilo, de sonhos perturbadores onde eu vejo comerciais, campanhas publicitárias e interfaces de programas de design rodando em minha cabeça feito demônios digitais que me acordam a noite inteira. A noite que deveria ser meu descanso. Quando acordo, não dormi o suficiente e acordo mal para mais um dia em um mundo do qual eu não me sinto parte.

Após mais um dia de trabalho cheguei em casa e avaliei com calma minha situação. De pronto, me veio à mente minha infância e pós-infância-pré-adultesa. Eu era muito feliz naquelas épocas. Com que prazer eu jogava videogame, mesmo que escondido do meu pai. O que era ainda melhor, quanto mais adrenalina, mais diversão. Assim como hoje é minha responsabilidade ir ao trabalho, naquela época era minha obrigação ir à escola. Então como eu era feliz naquela época e não conseguia ser neste momento? Eis a questão que à mim cabia decifrar. Ah, sim. Eu driblei as burocracias da escola e com meus amigos. Fazia dela, meu parque de aventuras. Cada nova apostila de matemática com seus gráficos e suas hipérboles me sugeriam as aventuras de um boneco palito surfista. As paisagens das apostilas de ciências eram o deleite de minha preciosa lapiseira preta 0.5 com meu nome em tipografia manuscrita em itálico dourada gravada na lateral. Como era maravilhoso acordar cedo sabendo que à minha frente se estendia um dia de deleitosas realizações. Ir para a escola significava Le Parkour nas horas vagas, histórias complexas e divertidas nas aulas de redação e ação em quadrinhos nas aulas restante desprovidas de destaque.

De um modo geral, concluí que a solução era eu arrumar algo para fazer que me trouxesse um mínimo de satisfação a cada dia, para que meu sono à noite fosse tranqüilo e meus dias mais serenos. Percebi que o passado brilha sua luz mais intensa quando contrasta com um presente morto e apagado. “Fecha-te os olhos e escancara o coração”, disse-me eu a mim mesmo numa morna manhã de segunda-feira. Me enchi de esperança e bom humor e esqueci-me dos males do mundo e das pessoas. Decidi ser feliz, mesmo que me fosse necessário pagar algum preço. No meu caso, me custou uma pequena fortuna de paciência. Uma semana depois paguei com a sanidade.

A segunda-feira seguinte me começou bem. Ainda restava um pouco de carga na pilha que eu surrupiara do controle remoto do aparelho de DVD da sala. O que me permitiu apreciar um pouco de Queen e AC\DC no mp3 do meu irmão caçula. O que foi ótimo, porque os fones no meu ouvido me isolavam gloriosamente do mundo exterior. Das bobas e mecânicas e rotineiras tarefas realizadas pelas pessoas ao redor. Na quarta-feira, ao voltar para casa para o almoço, a pilha alcançou o seu fim no meio do meu caminho. Me vi andando para casa, agora, às pressas e aflito com todo o mundo artificial dos homens acontecendo ao meu redor. Minha irritação atingiu o ápice quando vi um carro encostar rente ao meio fio da calçada e dele descer uma moça, e o carro, logo em seguida começou a andar. Toda essa situação não durou mais que trinta segundos. Muito menos, aliás. Mas foi o suficiente para desencadear uma furiosa orquestra nefasta de buzinas dos carros que se viram em posição de aguardar o término do ligeiro e inofensivo ato de desembarque da senhorita. Que ser odioso é o ser humano. E até ouso dizer, mais odioso ainda os seres humanos enlatados em carros com toda sua pressa, empáfia e ignorância. E entre ordens e desordens, prazos e valores, colegas, clientes e superiores, keyframes e cores. Fazer agora um vídeo para enviar anteontem. Só me restava no fim do dia, uma consagrada partida de Guitar Hero com meu irmão caçula. Atravessei insatisfeito meu veloz e sempre velozmente fugidio final de semana. No qual, ao ler, eu acreditava estar perigosamente abrindo mão de escrever (maldita contradição). Afinal, no fim do ano eu tinha um livro para publicar e não havia ainda escrito sequer sessenta por cento dele. Então eu largava na cama o livro e levava meu caderno e a caneta para a mesa do computador que não ligava, para dissecar algumas palavras, algumas ideias. Mas ao olhar as linhas azuis vazias do caderno, sentia que estava cometendo um erro em não dedicar aquele momento à leitura, pois não me julgava ainda com bom preparo para escrever com qualidade. Ou talvez eu devesse abandonar qualquer tarefa, uma vez que, cumprir tarefas era exatamente o que ferrava com minha paciência e meu emocional a semana inteira. Mas se jogo videogame ou assisto TV, isso me parece vazio e logo me vejo procurando tarefas a cumprir e no final do dia eu não fiz nada para mim e por mim. Tudo o que me resta, o único oásis neste deserto desprovido de vida deleitosa que compõe a minha realidade, é a minha menina. A presença dela, mesmo que meio distante nas ideias (mas não tanto), só ela garante a luz verde que cintila no fim do amaldiçoado túnel que é a minha semana.

Mas então, num domingo eu tropecei e quando ergui os olhos à frente procurando a luz, ela já havia ido embora me deixando perdido no escuro.

Na segunda-feira seguinte a agência na qual eu trabalho organizou uma confraternização que adornaria uma deliciosa reunião ao ar livre. Trabalhamos até o meio dia e seguimos para um condomínio nas montanhas, cercado de florestas e trilhas que levavam a ermos lugares charmosos e perigosos.

Há tanto para se fazer na vida quando se está acordado e há tanto para sonhar quando se está dormindo. Caminhar da melhor forma possível qualquer uma dessas estradas é o que faz da vida a melhor coisa que nós temos.

Enquanto dançavam em meu cérebro certas filosofias baratas (as melhores coisas da vida são de graça) a reunião seguia.

Quando chegamos lá fazia um sol pálido que permitia brilhar cada folha de árvore e pétalas de plantas. Aconteceu um churrasco e depois de comer fomos para o salão de jogos, onde eu lembrei o sabor de ser bom em alguma coisa ao fazer inúmeros gols no jogo de totó. Outros funcionários da empresa foram para o campo de futebol, ou para a quadra de basquete, sob um céu que ameaçava chover, mas derramava apenas um chuvisco preguiçoso que também fazia brilhar as folhas das árvores e as pétalas das plantas. Ao redor, o cenário ganhava o cheiro de terra molhada que eu tanto amava. E o não menos charmoso cheirinho de cimento úmido também exalava conforto ao meu espírito. Todo aquele cenário prateado, o chuvisco langoroso e o céu que já não nos ameaçava com seu azul infinito de mistério, mas sem abrir mão de seus lindos segredos e promessas de aventuras para nossos cérebros, acolhendo-nos em seu abraço nuvelesco e aconchegante (o inverno é o tempo mais aconchegante) me despertava certa deliciosa nostalgia. Sempre me lembrava infância. O lugar mais seguro, confortável e feliz. Um horizonte do qual eu me distanciei no balanço manso e traiçoeiro desse oceano e para onde eu não consigo mais voltar. Me tornei órfão de mim mesmo.

Após a reunião voltamos à recreação. Eu voltaria de carona com o cara novo, responsável pelo marketing lá da empresa. Mas ele estava imerso em propostas de campanhas que, entusiasmaticamente, citava ao nosso patrão. Então, enquanto isso, decidi explorar sozinho o condomínio. Subi a escada de pedra que contornava a quadra de basquete e terminava no salão de jogos. À minha direita havia a porta de entrada para o salão de jogos, de onde saíam gritos de vitória e outros brados que colorem os jogos de salão. Á minha direita (percebi acidentalmente enquanto caminhava automaticamente para dentro da porta do salão de jogos) estendia-se uma trilha ladeada, dos dois lados, por grama e árvores. Me encantou aquele caminho.

Sem muitas delongas enderecei-me no caminho desconhecido, sem vontade (tenho um pouco de juízo) de adentrar demais naquela trilhazinha a ponto de me perder. Não deveria, também, me demorar na aventura, pois tinha de voltar de carona com o cara do marketing.

Passeei pela trilha e quando me dei conta, já havia escurecido. Imaginei, com quase certeza, que minha carona já havia ido embora. Agora ferrara para mim!

Parei no mesmo instante e virei-me para trás, no intuito de voltar. Não haviam bifurcações na trilha. Era um caminho único e fácil de se seguir e bastava a mim trilhá-lo de volta para alcançar o pessoal e arrumar uma outra carona, caso meu amigo já tivesse ido embora.

No meio do caminho me deparei com uma pequena gangue composta por cinco integrantes. Todos me esperavam no caminho de volta. “Diacho”, pensei.

– É peibói. Agora fudeu pá tu. – disse um rapaz de pele bem morena que se adiantou dando alguns passos em minha direção. Ocultava nas costas as mãos, distanciando-se do grupo de delinquentes. “Era só o que me faltava”, disse meu cérebro com seus dito cujos impulsos elétricos corriqueiros (acredita-se).

– Aê Gueliha. Embrulha. Embrulha pra viaje.

Foi aí que um dos babacas que não tinha mais o que fazer agarrou-me e pôs um saco de pano preto na minha cabeça.

Acordei, não sei quanto tempo depois, com dores no corpo inteiro e deitado com todo o desconforto em uma superfície de madeira. Abri os olhos e continuei na mais absoluta escuridão. Um cheiro gostoso de mato vinha de lá de fora.

Aos poucos fui retomando a noção de realidade e com ela, avaliando com forçosa perspicácia minhas condições. Concluí que havia sido vítima de um sequestro e que o lugar feito de madeira que me comportava, tratava-se do que nessa situação chamamos cativeiro. “Então eu estava cativo. Cativo em um cativeiro. Exigências feitas e lhe enviam o olho direito”, cantarolei, naturalmente, sem muito entusiasmo. Senti na cabeça a pressão que me é usual sentir quando usava aquele meu boné apertado. Mas nesse caso tratava-se de uma venda amarrada com violenta firmeza. Vozes agitadas aproximavam-se da porta e quando o temível som das cordas vocais do estrupício, sequestrador maldito, atingiu um decibel crítico, a porta se escancarou e a selva pareceu entrar no pequeno recinto em que me guardavam.

Socos, pontapés, cotoveladas e brados palavronescos entraram por aquela porta, atingindo-me de todas as direções e, por fim, uma rasteira me fez esborrachar-me de costas no chão. Bati a cabeça com força e apaguei. Mas antes de mergulhar um pouco mais na escuridão, agora na dimensão dos sentidos, pude ouvir um ultimo palavrão fugidio dissolver-se na distancia. No meu sono nauseante ouvi murmúrios nos quais questionavam se eu permaneceria vivo. Queriam-me vivo e repreendiam o "parcêro" que me dera a rasteira sem noção. Malditos sejam esses pilantras!

Passou-se uma semana. Até que não cuidaram tão mal de mim. Me deram água e pão duas vezes ao dia todos os dias e, o melhor de tudo: me deixavam sozinho naquele quartinho lúgubre. Era muito raro alguém aparecer ali e falar algo. Tive bastante tempo para pensar na vida e nas coisas. Não sabia o porquê do sequestro e nem como se estavam seguindo as conseqüências de meu sumiço. Minha mãe devia estar arrasada e minha namorada, coitada, havia escolhido a pior hora para brigar comigo. Bem feito para ela. Era melhor pensar assim, porque se me demorasse um pouco mais em pensamentos a cerca dela eu a veria chorando desconsoladamente em sua charmosa cama rosa. Quando finalmente cansei daquela situação, já quase na terceira semana daquilo, comecei a arquitetar a minha fuga.

Pensei nas minhas possibilidades e fiquei com preguiça de tentar o óbvio, visto que eles obviamente estariam preparados para o óbvio. Pois, com certeza, toda aquela miserável situação se tratava de dinheiro. Portanto eu sabia que estava lidando com seres-humanos viciados em sua existência inventada e suas obrazinhas, das quais nos tornamos todos escravos. Não sei se para valorizar nossas criações ou para nos valorizarmos através de nossas obras, mas seja lá o que for, me parece atitude nascida de uma enorme necessidade de atenção. Então, decidi atuar no palco dessa desconcertante circunstancia ao meu próprio modo.

Ainda não haviam tirado de mim a venda que cobria meus olhos. Ainda bem que o lugar, a julgar pelo cheiro de mofo e a quantidade de árvores que pareciam sacudir com alguns galhos (inclusive, ralhando na casa e o vento que só entrava por minúsculas frestas na parede e, curiosamente, algum vento que subia com certa ferocidade por entre as tiras de madeira que compunham o chão) somados ao fato de eu, há três semanas atrás, em ponto algum do quarto ter, em algum momento, sentido o calor do sol, e o fato de a cena ser bastante desprovido de claridade (assim meus olhos não sofreriam agressão demasiada violenta tão logo me fosse retirada a venda, fora a dor de cabeça que ela já vinha causando), não era tão ruim, podia ser muito pior.

Lá fora ventava bastante e as árvores pareciam brincar conosco ao tamborilar seus dedos de madeira retorcida no teto e nas laterais da casa. Decidi imaginar alguém ali comigo, um outro eu, só que mais risonho e mais seguro do que faz e com ele conversei um baixo volume sobre como ele me poderia ajudar a escapar. Como eu esperava, ansiosamente, um dos sequestradores passou mais uma vez diante da porta. Ouvindo algo, parou e pôs, atento, o ouvido na porta. Continuei a conversa com meu eu livre e inventei um plano de fuga que seria precioso se realmente houvesse algum amigo livre ali fora para me ajudar. Ouvi que do outro lado da porta o rapaz engatilhou uma arma e, a passos apressados de pés calçados com havaianas, foi comunicar ao resto do bando sobre meu plano eficaz de fuga. Nas horas seguintes alguns dos paspalhos rodearam a casa em busca do meu ajudante e um ou outro explorou a floresta ao redor. Comunicavam alguém pelo rádio a respeito da situação com a devida preocupação. Era engraçado ver aquilo. É claro que eu temia que, na raiva, um deles entrasse ali e me torturasse em busca de informação a respeito do paradeiro do meu ajudante. E se eu dissesse que não havia ninguém, o que era óbvio que eu diria se realmente houvesse alguém, eles jamais acreditariam. Aí o meu feitiço virar-se-ia contra mim. Bom, não tardou a acontecer.

Eu estava de pé sentindo no rosto a brisa gélida que soprava fresta adentro quando a porta foi aberta com violência e um camarada muito magro, porém bastante forte, cheirando a suor seco, me agarrou e lançou-me contra a parede. Em seguida me passou uma rasteira e me derrubou no chão. “Ah, é você, não é safado?!”, pensei, ao reconhecer a bendita rasteira. Ele pôs então um ferro fino e gelado em minha boca. Senti o gosto de pólvora e ouvi o engatilhar do revólver. Meu corpo ficou quente e um pouco dormente, mas não me desesperei.

– Cadê o filho da puta que tá ajudando você, meu irmão?

Perguntou com firmeza. Sem perder a classe. Ganhou ponto comigo.

– Eaumrei. – respondi.

O inteligente retirou a arma da minha boca e, para punir-se de sua estupidez, bateu na minha testa com o revólver. O sangue quentinho escorria da minha testa.

– Cadê o féladaputa que tá te ajudando? – dessa vez ele perdeu a compostura.

– Eu não sei pra onde ele foi.

Óbvio que ele esperava que eu dissesse isso. Era o que eu temia. E agora?

– Não vai falar, não?

E então atirou no chão, a centímetros da minha cabeça. O estampido fez um apito ficar ressonando nos meus ouvidos o resto do dia.

– Caraca! Se você fosse ele, você me daria um mapa pra eu mandar um bando de cara armado atrás de você? E pra que ele me contaria onde ele vai estar se eu nem tenho como sair daqui? Tudo o que eu sei é o seguinte...

Apontei para qualquer parede.

– Ele estava ali. E dali ele virou-se e foi embora.

Dito isso me preparei para uma nova pancada, a qual não deu o ar da graça.

– Quem é ele? Como ele é?

Fiquei acanhado de dizer que estava vendado. Lidar com gente ignorando é mesmo uma desgraça. Procurei mencionar a venda em meus olhos da forma menos ofensiva possível, afinal o cara estava armado, com um revólver e com sua imbecilidade.

– Eu não tenho visão de raios-X, sua topeira! – não resisti.

Sua mão ossuda e firme agarrou meu pescoço e mais uma pancada com a arma foi desferida na mesma ferida que derramava sangue. Em seguida ele pegou no bolso uma faca e a levou até a parte detrás de minha cabeça. senti um corte na parte traseira da cabeça, uma mecha de cabelo sendo arrancada e o pano amarrado sendo rasgado com violência. O maldito paspalho fanfarrão jogou minha cabeça para o lado com raiva e chutou minha costela. Saiu e agrediu até mesmo a porta, e em seguida a trancou, me deixando no chão, contorcendo-me de dor e beirando o desespero. Quando abri os olhos nem me surpreendi com o ambiente, pois meus olhos viam o que minha mente já sabia. Sentei-me e senti náuseas. Peguei a venda cortada ao meu lado e surpreendentemente, mesmo no ápice de toda aquela dor inimaginável, eu consegui desamarrar o nó e, com os dedos fracos e trêmulos, amarrei a tira da pano em minha cabeça de forma que cobrisse minha ferida na testa e estancava o sangue. Meu rosto estava adornado de suor, sujeira e sangue. Aquele quartinho de madeira caindo aos pedaços no meio de uma floresta. Meus cabelos longos, molhados, levemente ondulados com numerosas e finas mechas caindo no rosto. Rambo purinho! Só que raquítico.

Descansei o resto do dia. À noite, sem nem abrir a porta, me xingaram bastante e me ameaçaram. Mas não diziam nada sobre as razões daquele sequestro.

Na madrugada, a luz da lua entrava em halos pelas frestas na parede de madeira velha. Acompanhando distraidamente um desses feixes de luz encontrei o rombo que o tiro do trinta e oito havia aberto no chão. Uma brisa preguiçosa subia dali e deslizava no piso. Olhei dentro do buraco e, com a abençoada ajuda da luz do luar, vi que havia um bom espaço ali dentro. Havia outro piso a cerca de meio metro de distancia do piso onde eu estava.

Todo momento em que eu me via livre da observação daqueles camaradas violentos eu desprendia algumas madeiras do chão e rezava para que nenhum deles entrasse no recinto.

Numa manhã amaldiçoada por um céu azul onde brilhava imponentemente um sol magnífico, eu ouvi uma conversa preocupante. Pelo que entendi, os caras iam ferrar comigo de algum jeito. Me matar, arrancar um dedo ou uma orelha para mandar para minha família, sei lá. Quando ouvi os passos de um deles se aproximando da porta, me agachei e, olhando através de uma fresta, comecei a conversar casualmente com meu amigo imaginário. O burro do sequestrador, ao invés de ficar quieto e mandar os outros caras ir ali fora e apanhar o meu amigo de surpresa, deixou seu medíocre senso de teatralidade (no mundo dos mano: sua marra) falar mais alto e arrombou a porta com a arma em punho, dizendo que eu era isso e aquilo e mais aquilo outro e, para meu alívio, mencionou aos berros a minha visada companhia. Ao ouvir isso, dos quatro otários restante, três saíram da casa para matar o cara que me estava ajudando na fuga.

O que parecia ser o líder do bando entrou no quarto, mas à poucos passos de me alcançar, pisou em uma das taboas soltas e afundou chão adentro. Soçobrou até pouco acima das coxas. A arma saiu de sua mão e com grande agilidade ele a retomou em seus dedos longos, sujos e magricelos. Entretanto, com a mesma agilidade, dei-lhe um forte chute no rosto. Ele apontava a arma a esmo e disparava enquanto eu corria em círculos ao redor dele e, vez enquanto, chutava-lhe a cabeça. Ouvi um deles se aproximar da porta. A munição do babaca que estava tentando sair do buraco no chão acabou. Não me sobravam muitas opções e, na certeza de que agora iria morrer, decidi que iria fazer disso uma coisa divertida e emocionante. Tomado pela adrenalina, e com um sorriso no rosto corri para a porta e trombei com o camarada que ia entrar no quarto. Surpreso com minha audácia completamente inesperada, o moleque cambaleou por uma fração de segundo a mais do que eu, e foi o suficiente para que eu disparasse na direção dele largando o braço na cara dele e correndo o mais rápido possível para a porta aberta no fim do pequeno corredor. Quando passei pela porta, me agarrei no umbral e me larguei para a direita enquanto as balas disparadas saíram porta afora e uma ou duas atravessaram a parede. Imaginei que ali fora me depararia com os inúteis restantes, mas felizmente me enganei. Pulei a cerca da varanda e contornei a casa. Sem saber o que fazer, apesar de uma voz em minha mente, uma voz chamava bom senso, me dizer para fugir pela floresta.

Ofegante e encostado ali na parede, sabendo que havia quatro caras atrás de mim, querendo me matar, apoiei a mão distraidamente na janela do que devia ser a cozinha. A janela estava destrancada. Então empurrei-a para cima e entrei de novo na maldita casa. Porque não simplesmente corri floresta afora? Santa idiotice.

Aproveitei que estava na cozinha e peguei uma faca. Vi pela janela um ou outro caboclo correndo em volta da casa. Contudo, ao menos um deles estava dentro da casa. Este, pude ouvir, caminhava pelo corredor já sem muita esperança de me encontrar e dizia aos outros que eu havia feito o que qualquer um ser levemente dotado de inteligência faria: escapar pela floresta.

No entanto, quando ele virou as costas e caminhou para a porta da sala do casebre eu saí pela porta da cozinha empunhando a faca. Mirei em sua nuca e lancei a faca. A faca girou várias vezes em todos os seus eixos (x, y e z para os familiarizados com as interfaces de softwares tridimensionais) várias vezes e caiu nas costas do inimigo com o cabo, virando de lado com o impacto, da forma mais inofensiva possível. Ele se virou para mim e avançou em minha direção, avisando a todos que eu estava dentro da casa. Na cozinha, mais precisamente. Entrei de volta na cozinha, evitando dois tiros disparados pelo desgraçado e tratei de pegar outra faca. Eu não podia deixar que eles se juntassem, deveria manter eles espalhados. Portanto, eu devia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Mas isso era impossível. Droga!

No momento em que o fulano apareceu na porta da cozinha, eu joguei nas pernas dele uma cadeira que encontrei perto de mim. Ele tropeçou na cadeira, bateu no umbral da porta e deixou a arma cair no chão. Adiantei-me e deslizei no chão de forma que parei próximo da arma, ao mesmo tempo em que meu pé empurrava a cadeira nas pernas do garoto, que começava a recuperar o equilíbrio. Ele caiu por cima da cadeira e parou em cima de mim. Empurrei-o para o lado com violência e disparei, mirando nas pernas dele. Pus-me de pé e corri para a janela da cozinha. Antes de pular a janela, marquei mais ou menos onde ficava o bujão de gás. Os caboclos surgiram na porta atirando contra mim, mas consegui pular para fora a tempo de escapar das balas. Um deles correu para a janela, mas eu mal caíra no chão já levantara e afastava-me da casa, atirando na região da parede onde, do outro lado, as balas encontrariam o botijão de gás. No quarto tiro, quando o rapaz na janela da cozinha apontou o revólver em minha direção com ênfase, a cozinha explodiu, desintegrando o camarada. Sem olhar para trás, entrei na floresta e corri, corri e corri.

Lagartas verdes recheadas com geleia verde, musgo bem como vermes brancos não me abriam o apetite. Quando a noite chegou, no entanto, comecei a ficar preocupado. Mas algo estranho ocorreu quando o dia começou a anoitecer.

Antes do sequestro eu já não costumava me alimentar adequadamente. Um copinho de cachaça, seguido de algumas cinco tacinhas de vinho e lá se ia meu apetite. Uma vez que minha fome de bem estar e equilíbrio emocional era infinitamente maior que meu apetite alimentar. O álcool saciava o primeiro, portanto, o segundo era facilmente chutado para escanteio. Durante o sequestro era pão e água duas vezes ao dia e muita coça. Nesse dia da fuga eu nada havia comido e quando senti aquele cheirinho de pão quente e fritura, me pareceu um milagre. Segui cegamente o cheiro por entre a mata fechada e úmida e desemboquei em uma clareira. No centro da clareira estava posto uma suntuosa mesa de café da manhã. Caminhei, não tão rápido quanto meu desespero mandava, enquanto olhava ao redor tentando localizar os piqueniqueiros inusitados. Mas localizá-los ou não, não me impediria de pegar algo delicioso naquela mesa.

De qualquer forma, ninguém apareceu e eu peguei então um curioso sanduíche na cabeceira da mesa. Emanava um cheiro delicioso e estava quentinho. O pão era do tipo francês e o recheio era um pedaço de carne que tinha a cor e o restante do aspecto de uma fatia de pernil com gordura. Amo pernil com gordura, mas prefiro a gordura. Procurei limão e, encontrando-o, entreabri o sanduíche para espremer ali seu suco. Com meu maravilhoso sanduíche nas mãos, parado diante daquele banquete matutino, olhei ao redor desconfiado de que se tratasse de uma armadilha. Um sorriso invadiu meu rosto e de minha boca arrancou um comentário:

– Mas então... que deliciosa armadilha.

E devorei com gosto o sanduíche.

Que delicia de sanduíche era aquela! A carne que ali posava de recheio era crocante por fora e um tanto gosmenta por dentro. Nunca havia experimentado nada igual. Tranqüilo, dei mais uma mordida no sanduíche, e mais outra ulteriormente, enquanto passeava os olhos pela vasta mesa colorida que parecia muito pouco compatível com aquele lugar. Dentro de mim uma morna e suave sensação de estranha desconfiança formigava. Mas eu não prestei atenção a ela. Saboreando meu sanduíche, girei levemente em meus calcanhares. Havia uma placa pregada de qualquer jeito num velho galho úmido e contorcido que ficava em cima do pequeno espaço entre duas árvores pelo qual entrei na tão conveniente clareira. A placa dizia: “QUEM COCHICHA O RABO ESPICHA.”

– Que tal o pão com lagartixa?

Com um sobressalto indisfarçável e um muito mal camuflado desconforto com toda a situação, respondi que estava bom o sanduíche. Mas ao cair a ficha de que se tratava de uma lagartixa, pus ,casualmente, o sanduíche de volta à mesa, tentando ignorar o maremoto em meu estômago.

O moço que me dirigia a palavra era alto e aparentava obter por volta de seus quarenta e tantos anos de existência. Usava um terno branco, assim como a camisa e a calça. O colete que usava entre o terno e a camisa era preto, assim como os sapatos enquanto vermelha era sua gravata.

– Assim como você – começou ele a dizer enquanto caminhava ao redor da mesa e prestando atenção nela, aparentemente – eu não tenho argumentos sólidos contra esse mundo.

Vendo que eu nada acrescentei, lançou-me um olhar que soou encorajador.

– O que você acha disso?

Convidou-me.

– Eu acho que talvez, a consciência da sociedade não seja, ainda, suficientemente sólida para compreender seus argumentos.

Ele sorriu com tanta alegria que senti-me tentado a ficar mais à vontade.

– Eu não vou mais tomar o seu tempo, meu amigo. Você tem grandes coisas a fazer. Não se detenha por tempo demais em um só lugar e nem passe por outros depressa demais. É preciso manter-se em equilíbrio. Sei que disso você já sabe, mas eu quero que você tenha certeza.

Após uma breve pausa, completou com urgência:

– A gente precisa conversar de verdade uma outra hora. Eu estarei com você de agora em diante.

E terminou com um sorriso que entendi me dar adeus. Cumprimentei-o com um breve inclinar de cabeça e virei-me para partir de onde viera e deparei-me com uma menininha loira de grandes olhos verdes que me entregou um monte de comida enrolada numa toalha de piquenique.

– Eu vou levar você até lá. – disse, com um sorriso eletrizante. Mas que sorriso contagiante e radiante o daquela menina. Fascinante!

Seus cabelos dourados pareciam emitir luz própria, talvez isso tivesse alguma relação com seu intelecto brilhante. Seus grandes olhos, de um verde espectral, projetavam à frente sempre um olhar vívido e de tal intensidade intimidadora. Era, enfim, uma menina linda e de uma sagacidade argumentativa fantástica.

– Ah, antes que eu me esqueça! Papai disse que eu devia te falar sobre uma ideia sua. Disse que é para você poder acreditar. Acreditar que a vida é uma grande equação.

Me pareceu uma informação meio desesperada, meio que deslocada do seu pretexto que morava mais à frente no tempo.

– Ele disse pra mim te explicar que isso vai te ajudar a pensar com mais clareza e a aceitar certas coisas e tal. Mas isso é com você! Papai mandou dizer que a vida é como uma extensa equação.

Ela prosseguiu na explicação como quem a entende melhor que qualquer um e a seu próprio modo, o que dificulta na hora de passar a informação aos outros. Ela suspirou em busca das frases mais adequadas. Aquele gesto trouxe de volta à mim, a noção de que ela era apenas uma criança, pois quando ela abria a boca e as palavras saíam, e no tom em que saíam, ela parecia simplesmente genial. Nem criança, nem adulta.

Abríamos, ainda, caminho pela mata fechada, esgueirando-nos por pequenos espaços entre as árvores magricelas e retorcidas. Em determinado momento uma chuva serena uniu-se a nós, acompanhada de uma doce neblina.

– Uma vez eu disse ao papai: “pai, hoje é feriado. E tem gente trabalhando. A mamãe, aliás, está trabalhando hoje. E eu queria a mamãe aqui.” Eu estava bastante chateada porque a mamãe trabalhava demais e quase nunca ficava com agente. Então a nossa salvação eram os feriados, portanto, eu não aceitava a ideia de mamãe perder esses oásis no deserto da jornada de vida dela... e nossa também. Papai ama muito a mamãe, e por isso fica bravo com ela às vezes. Porque ele diz que tudo que importa na vida dele somos nós e ele e mamãe trabalham em função de comprar bem estar para todos nós. Então, em resumo, a verdade é que trabalhar é uma coisinha que ele faz por nós, assim como levar café na cama no fim de semana, ler histórias pra gente dormir e muitas outras coisas que ele, com o simples objetivo de promover a felicidade entre a gente lá em casa. E trabalhar para ganhar dinheiro para comprar coisas, entre essas coisas estão: bonecas, roupas, paz, uísque, felicidade e liberdade, já que até a dignidade foi posta à venda. É o mesmo que sair de manhã cedo para comprar coisas que tornem possível a realização do nosso delicioso café da manhã. O que eu quero dizer é que o fato de ele prestar favores em troca de dinheiro, tem na vida, o mesmo peso que todo o resto das coisas que ele faz por nós lá em casa. Então ele acredita que se ele trabalhar demais e deixar a gente em segundo plano, o trabalho perde a objetividade. Que é como se ele fosse buscar o café da manhã para nós, mas não o trouxesse para casa. Daí, de que adiantaria ele ir buscar nosso café se ele não vai realizar nosso café da manhã? Entende?

Eu respondi que sim.

– Então. Aí ele acha que a mamãe devia trabalhar menos com os bobocas que trabalham com ela e viver mais a gente. Mas enfim, eu disse a ele que isso não está satisfatório para ninguém. Sabe, essa historia de trabalhar nos feriados. Por essas e por outras, feriados deveriam então, a partir de agora, tornarem-se inexoráveis. Ninguém trabalha e pronto! Daí ele me perguntou: “mas Alice, e os doentes que precisarem de médicos nos feriados. E se mamãe passar mal e precisar ir ao médico num dia que for feriado? Se fosse grave poderia acontecer uma coisa muito ruim com a mamãe e a gente ia ficar sem ela para o resto da vida, só porque o médico não foi trabalhar devido ao feriado.” Foi então que eu entendi a semelhança estrutural que a vida social tem com uma grande, porém fácil, equação de segundo grau. O feriado, conforme tem sido, assim meio que opcional, causa algumas chateações, mas está ligado ao resto do sistema. Se mudar isso, a gente ferra com os fatos que dependem dessa situação funcionando do jeito que está. É como se o feriado correspondesse ao numero doze que está na linha um de uma equação escrita em várias linhas de um caderno e entre vários outros números e incógnitas. O resultado final dessa equação, digamos que seja, por exemplo, x=2. Se eu mudar o numero doze para vinte e um, por exemplo, e deixar todo o resto da equação sem qualquer alteração, então o “x” no final da equação não pode mais dar 2, certo? A equação perde o equilíbrio.

– Certo.

– Pois é. – ela falava “pois é” igual à mim.

– Então. Se eu mudar esse valor, eu teria de mudar todos os outros valores ao longo da equação e, inclusive, talvez, até alguns sinais, para adaptar tudo ao número vinte e um que eu achei que ficaria, por algum motivo, melhor que o doze. Se eu mudar nesta equação um mísero sinalzinho que seja, eu tenho de mexer em toda a equação para que ela faça sentido novamente e funcione harmoniosamente. Portanto...

– Se você torna o feriado inexorável, um dia sagrado, de descanso, e inviolável, você causa um distúrbio no andamento das coisas, como por exemplo, por em risco a vida das pessoas. Então, para mudar essa história do feriado sem causar danos ao sistema, você precisa alterar essa necessidade que as pessoas tem de depender de médicos e outros serviços. Você precisa mudar essa história de umas pessoas dependerem do trabalho das outras, mas para isso ser diferente, uma infinidade de outras coisas subsequentes precisam, também, serem modificadas. Não é isso?

A carinha de espanto dela era linda.

– Ah. – e então ela sorriu. – É isso mesmo.

– Bom, na verdade nós temos de nos apressarmos.

Os passos da pequenina se aceleraram para logo em seguida pararem num súbito. Como que atingisse a beira de um precipício. Ela girou nas meigas sapatilhas brancas e me encarou severamente.

– Antes que eu me esqueça, - disse num tom enérgico – trate de fazer as pazes com a ma... – e sem perder o domínio da cena retomou o fio da meada com uma certa cômica maturidade frágil. – você sabe quem e sabe muito bem!

– Ã?

– Com a pessoa com que você está brigado!

– Mas eu não estou brigado com ninguém. Ela é que está de frescura e...

– Não interessa!

Interrompeu-me, bastante irritada, de verdade.

– Faça isso antes que seja tarde. Você não faz ideia do quanto isso prejudicou Daniel quando...

Então ela se deu conta de que eu realmente não fazia a menor ideia sobre o que ela estava falando. Observei-a com um quase teatral olhar interrogativo. O pior era que eu realmente gostaria de saber a respeito do que ela estava palavreando-me. Ela parecia um pouco estranha. Ela e o pai dela. Mas não me pareceu nada desmiolada.

– Quem é Daniel?

Perguntei.

– é meu irmão.

Em sua resposta havia firmeza e um certo orgulho.

Vendo que nada do que ela dissesse, exceto se me dissesse tudo, esclareceria a confusão que ela inseriu na conversa. A menina adiantou-se à mim com a mão estendida. Cumprimentei-a em despedida e ela me perguntou se eu havia já lido A Mulher do Viajante no Tempo de uma autora com um nome estrangeiro meio estranho. Respondi que sim. Em verdade devia fazer pouco mais de um mês que eu havia terminado de ler.

– Então...

Pesou um pouco as palavras que me diria e as pesou um pouco mais, para por fim afirmar que...

– Meu pai não pode viajar no tempo igual o Henry, mas... o tempo ecoa, sabe? Eu e meu pai já desconfiávamos desde o início.

Neste instante ela parecia falar com ela mesma e não mais comigo. E prosseguiu:

– E hoje a gente teve certeza disso.

Seu olhar então voltou de viajem e solidificou-se novamente sobre mim. Ela tinha esse jeito meio ioiô de abandonar o momento e voltar a qualquer momento nos deixando tontos ao tentar acompanhá-la num mero diálogo ocasional.

– Tenho certeza de que papai vai colocar este dia em algum lugar no livro novo dele. – ela começou a ficar radiante. – Bom, você está um pouco lá e um pouco cá. Nós estamos oscilando nessa convergência e isso é raríssimo!

Realmente, conforme ela ia me descrevendo mais essa teoria dela e de seu tão querido pai, fui tomado por uma intensa sensação de déjà vu. Ela estava realmente com pressa, portanto foi breve e eficaz nos argumentos que me iluminaram a percepção das minhas próprias certezas.

Eu e ela nos escondemos atrás de uma árvore grossa de onde podíamos ver a casa que fora meu cativeiro há alguns dias atrás. Ali ela me deixou e foi ao encontro de seu irmão caçula, Daniel. Observei os movimentos dos meus odiosos anfitriões que, por incrível que pareça, ainda rodeavam a casa. A cozinha estava destruída e sorri ao lembrar a fantástica cena que ilustrou a minha fuga explosiva.

Trovões ribombaram no céu, e uma chuva que adorna os trágicos finais apocalípticos de batalhas épicas chegou para participar do grand finale. Trouxe consigo, dos céus, um certo torpor que embalsamou-nos numa turva euforia arrepiante. Transformou tudo em um sonho pesado, mais pesado que eu, pelo menos. Então eu era leve e leve como o era em meus sonhos de travesseiro. Deixei a chuva encharcar todo o meu corpo e me senti como que trajado por uma armadura impenetrável. Deslizei de meu esconderijo e caminhei em campo aberto em direção a casa. Os quatro rapazes ergueram seus revólveres em minha direção e puxaram seus gatilhos. Contudo, nenhum tiro foi disparado.

Os projéteis se recusaram, então, a viajar em violência na minha direção. Os compadres olhavam, embasbacados, as suas armas, enquanto o chão tremia, mas eu não sentia.

De repente, estávamos em uma fantástica ilha suspensa no nada (no tudo, de certa forma). Virei-me e vi a floresta. Dentro dela, em algum ponto no meio dela, eu vi a pequena Alice e o pequenino Daniel. Vislumbrei uma deliciosa eternidade num glorioso par de olhos verdes. Em uma fração de segundo, que ocorreu enquanto eu, imperceptivelmente percebia em meu subconsciente a presença do homem de terno branco, eu tomei conhecimento de que era aquele, de certa forma, o final de tudo.

Levei a mão direita ao bolso da calça, na intenção de sacar uma muito improvável garrafa de cerveja bem gelada, e saquei-a. Nas armas dos meus inimigos já não havia mais balas, enquanto na minha garrafa ainda havia muita cerveja. Olhei para trás mais uma vez, no intuito de avistar, novamente, aquelas pessoas queridas e familiares, mas não os vi. Apenas assisti as árvores despencando no nada, o solo derramando-se no infinito que se estendia logo abaixo de onde eu e aqueles estrupícios nos encontrávamos.

Me lembro de, de repente, começar a destruir os dito-cujos, um por um, utilizando-me da garrafa que eu tirara do meu bolso. No final, enquanto o universo se distanciava de mim, eu retirei da garrafa quebrada e ensanguentada, um guardanapo. Havia nele um desenho, que não fora feito nem com uma caneta e nem com um lápis. Aliás não produzido pelas mãos de ninguém. Era um recado que viajara diversas eternidades inter paralelas, a partir da alma de alguém, e que dizia algo totalmente ocasional para mim e minha consciência naquela ocasião.

No fim, lá estava eu, de pé sobre uma minúscula ilha de rocha, com mais ou menos meio metro de diâmetro, cercado de tudo e nada por todos os lados. A negritude inexorável do universo ao meu redor e em meu peito, um par de esmeraldas verdes.

Eu acho que ainda segurava uma garrafa, e dentro dela tinha uma mensagem. Abri e li, tratava-se de um tíquete para um mundo completamente diferente e incrivelmente melhor que esse que morria sob meus pés. Senti os dedos macios da minha namorada entrelaçar-se nos meus, a garrafa caiu da minha mão e não emitiu som algum. Segurei o ingresso na mão e sorri para minha namorada. Parecíamos um casal prestes a entrar no teatro. Demos então nosso primeiro passo no infinito.