016-CAFÉ DA MANHÃ

Quase todo dia era a mesma coisa. Tiana nem prestava mais atenção às brigas entre seus patrões, dona Marinalva e seu Fernando. Sabia que, no final da confusão, ia sobrar pra ela. Cacos de louça e de vidro pelo chão, varridos expeditamente tão logo os dois brigões saíam da sala. Roupas rasgadas e sujas, lavadas e consertadas assim que fosse possível. Mais e mais serviço aumentado a cada dia. Tiana não agüentava mais.

Naquela manhã a situação ficou completamente fora de controle, a briga começou logo de manhã. Dona Marinalva acordara bem cedo como todas as manhãs, tomara o café e estava no quarto, preparando-se para seu dia de trabalho. Seu Fernando entrou pela porta da frente, vindo de mais uma noitada de jogo ou de farra. Trocando as pernas, amparando-se nos móveis, foi logo metendo a bronca.

-- Tiana, me traga um café bem forte, tou precisado. Cadê a Marinalva?

Senta-se à mesa. O café já está na sua frente, mas ele não vê, ignora.

-- Marinalva ! Marinalva ! Vem cá, mulher, tenho uma coisa pra te falar!

-- Diz daí mesmo, estou acabando de me arrumar, não quero chegar atrasada na escola.

-- Que escola, que nada ! Hoje ganhei uma bolada, você num precisa trabalhar. Vem cá tomar café comigo.

-- Já tomei meu café. Toma o seu e vai dormir, vê se não me amola !

Tiana sabia, estava acostumada com esse tipo de diálogo. Era o mais perto que os dois chegavam de um entendimento matinal.

Marinalva continua no quarto. Maquiando-se, passando batom, dando um ultimo toque nos cabelos.

Ao abrir a pesada gaveta da cômoda, afobada, sente uma fisgada no dedo.

-- Puxa, lasquei minha unha !

Com pressa pega uma pequena lixa de unhas de seu antigo estojo de manicure e começa a acertar a unha estragada. Dirige-se à sala, onde Fernando tenta tomar o café.

-- A farra esteve boa, hein? Foi na casa de quem? Da Maria Tiroleza ou da Zilda Machado?

-- Que farra, que nada!

A voz continua pastosa, Fernando tentando impostá-la, fala gravemente mas muito alto.

-– Hoje quebrei a banca, trouxe todas as pelegas dos jogadores do Clube.

-- Pelo visto também bebeu todas as garrafas.

Fernando mete a mão no bolso e joga um punhado de notas sobre a mesa.

-- Taí, não estou mentindo não.

A cordialidade e a educação de há muito eram ignoradas nas conversas entre os dois. O clima de hostilidade era constante.

— Com certeza, trapaceou outra vez. Como, aliás, sempre faz. -- Cala a boca! Senta aí, toma café comigo!

— Já tomei. Estou só lixando a unha e vou trabalhar.

Alta, morena, bem morena e elegante, Marinalva não se amedrontava com a empáfia e a falsa valentia do marido. Sempre fora uma guerreira, lutadora, destemida. Começara por baixo, lutara muito, vencera na vida graças ao seu próprio esforço.

Olhando para o marido, sentiu muito que sua vida estivesse amarrada àquele traste de homem, tão diferente agora do elegante e bem-falante moço que fora seu primeiro namorado e com o qual se casara.

Mas ela mesma insistira no casamento, apesar dos conselhos da mãe e do irmão mais velho.

— Olha só, o rapaz não tem profissão, nem Deus sabe do que ele vive, e sempre tem dinheiro pra lhe dar esses presentes caros. Desconfia disso, Marinalva.

Ela, porém, insistiu no casamento. Aliás, nem mesmo Fernando estava muito entusiasmado com a idéia.

— Querida, vamos esperar mais um pouco, antes vamos aproveitar a vida .

— Sim, vamos aproveitar a vida, mas juntos. Olha, com o meu ordenado na escola podemos alugar uma boa casa perto do centro, comprar nossa mobília, tenho dinheiro economizado.

Desde menina Marinalva soubera o quanto era dura a vida. Sabia da importância de trabalhar e economizar.

Nascida e criada na fazenda do Coronel Teodorico, mudou-se com a mãe para a cidade após a morte do pai. De empregada doméstica passou a trabalhar no salão de dona Vanessa. Nas horas vagas, estudava e aprendia sempre novas coisas. Conseguiu matricular-se na Escola Normal e a duras penas obteve seu diploma de professora primária. Fez três concursos para ingressar na escola estadual, só conseguiu na terceira vez.

Morando sempre com a mãe, conseguiu arduamente amealhar suas economias. Eficiente no trabalho, era muito considerada e respeitada por todas as colegas, impunha-se na maneira elegante e sóbria de se vestir, de se maquiar.Aprendera bem essas finuras com as clientes do salão de beleza onde trabalhara por alguns anos. Gostava de lembrar esse período tão curto, tão feliz.

De repente, Fernando se levanta.

— Nunca mais diga que estou trapaceando, tá bem? –- A cadeira tomba, Fernando avança para Marinalva. A voz continua enrolada, lenta.

— Deixa de ser bobo, Fernandinho ! Só cego não vê suas tramóias. Além do que, isto que você ganhou aí não representa nada em vista do dinheirão que você já perdeu nas mesas de jogo!

Era a pura verdade. Nos primeiros meses de casados, Fernando ainda conseguira enganar Marinalva.

— Vou viajar a negócios, me arruma aí uns 500 cruzeiros , volto depois de amanhã.

— Que negócios são esses, Fernandinho ?

— Quando voltar eu conto.Não posso lhe falar, se a notícia espalha perde-se a oportunidade e o negócio vai por água abaixo.

Mas a verdade apareceu. Primeiro, leves suspeitas: os “negócios” nunca davam certo, Fernandinho perdia todo o dinheiro fornecido por Marinalva em “empreendimentos” jamais revelados. Depois, Fernandinho passou a chegar invariavelmente tarde em casa, o descuido com as roupas, a descoberta de sinais de batom, perfumes femininos impregnando paletós e camisas.

Foi dolorosa para Marinalva a constatação de que Fernandinho era pura e simplesmente um jogador e farrista, seus “negócios” eram no clube ou nas casas das meretrizes.

Não lhe deu mais dinheiro. Mas Fernandinho continuou, impávido, em suas atividades.

O amor desandou e acabou. Continuaram juntos por hábito, nem mesmo amizade ou respeito restou do casamento. Discussões todos os dias, brigas constantes, altercações contínuas. Fernandinho chegava de madrugada, muitas vezes de manhãzinha, cheirando a gin ou perfume barato.

Marinalva ali, firme como uma rocha. Competente no trabalho, querida e estimada pelos alunos, discreta no relacionamento com as colegas e diretora.

Entretanto, já estava se cansando daquela situação, principalmente quando se encontrava com Fernandinho de manhã. Ele chegava insuportável, arrotando proezas. E insistindo para que ela deixasse de lecionar. Coisas de bêbado, pensou Marinalva.

— Nunca mais, ouviu ! Nunca mais mesmo, me chame de trapaceiro.

Passando pela porta, Tiana viu quando seu Fernando avançou para Marinalva. Vai acabar em pancadaria, pensou, e não vai ser Dona Marinalva que vai apanhar, não.

Ágil, Marinalva desvia do arremetimento de Fernando, que se choca contra a cristaleira, quebrando o vidro de uma das portas. De sua mão esquerda um flete de sangue começa a escorrer, pingando no chão. Tiana se afasta, não quer saber de violência, detesta ver sangue, eles que são brancos que se entendam.

Fernando, acionado pela adrenalina que lhe corre pelo corpo, investe novamente, procurando e encontrando o pescoço de Marinalva. Ambas as mãos se juntam em torno da carne morena e começam a apertar. Surpresa e apavorada, ela instintivamente tenta afastar as mãos do marido. A mão direita, ainda segurando a lixa de unhas, passa como um raio na frente de Fernandinho, riscando profundamente a parte lateral de sua garganta. O que parecia ser um risco abre-se num corte pelo qual o sangue esguicha sobre Marinalva e Fernandinho , atingindo e tingindo também a parede.

Louco de dor, Fernandinho solta Marinalva e tomba de costas sobre a mesa, levando as mãos ao pescoço, na vã tentativa de estancar o sangue que se esvai, agora em um grosso filete pulsante, encharcando a toalha e escorrendo sobre o tampo do móvel.

Paralisada de terror e surpresa, a mulher vê quando seu homem descamba para o chão, onde cai em decúbito dorsal e lentamente e tomba sobre o tapete. Num átimo, percebe toda a tragédia: matou, sem querer, o próprio marido com a lixa de unha que ainda teima em ficar na sua mão.

Da cozinha, chega Tiana, agora consciente de que alguma coisa muito séria estava acontecendo.

— Meu Deus, Dona Marinalva! O Seu Fernando tá desmaiado !

— Depressa, Tiana, traz uma toalha do banheiro, tenho que fazer esse sangue parar de escorrer da garganta dele.

Tiana corre, traz a tolha grande. Marinalva tenta levantar o corpo do marido.

— Ai, Tiana ! Ai, minha Nossa Senhora ! Ele tá morto! Tá morto, Tiana! TÁ MORTO !

As últimas palavras saem da boca de Marinalva num grito de terror.

Tiana, igualmente aterrorizada, toma a iniciativa:

— Acalme, dona Marinalva, vou chamar o seu Gaspar.

Vai num pé e volta noutro, acompanhada pelo vizinho, que se depara com a cena mais escabrosa que já vira em sua vida: Marinalva de joelhos, segurando o corpo inerte do marido, sangue por toda a parte, no rosto e nas mãos de Marinalva, pela parede, sobre a mesa, uma poça no assoalho.

— Ai, seu Gaspar ! Meu marido...Fernandinho...TÁ MORTO !

— Meu Deus, que tragédia ! -– Seu Pascoal ajoelha-se, tenta tomar o pulso de Fernando. Nada sente. Pela palidez do rosto, e pelo corte no pescoço, teme que as palavras de Marinalva sejam verdadeiras.

— Vou telefonar pro Dr. Moisés e pedir uma ambulância.

Pelo telefone, informa ao médico toda a situação. Em seguida, telefona para a polícia.

A ambulância e o carro da polícia, com o delegado Calheiros, chegam juntos. Encontram Marinalva na mesma posição, debulhando-se em lágrimas sobre o corpo do marido.

Com delicadeza profissional, Dr. Moisés retira Marinalva do local, leva-a para seu quarto, faz com que se deite e manda Tiana limpá-la. Em estado de choque, Marinalva se deixa levar docilmente.

— O corte na jugular é fatal. Não houve tempo para dona Marinalva socorrer. -– explica Dr. Moisés, após rápido exame no corpo de Fernando.

Calheiros não permite a remoção do corpo.

— Temos de fazer um trabalho completo aqui. Acidente ou não, todos os detalhes serão anotados. Cuidado aí com os cacos de vidro -– fala para Pompílio, um policial que chega para ajudar nos trabalhos.

— Nunca tinha visto Seu Fernando tão exaltado. Parecia que tava “possuído”! –

O comentário singelo de Tiana destaca a violência de seu patrão, enquanto procurava, inconscientemente, livrar a patroa de qualquer culpa.

O Delegado Calheiros aponta para a lixa de unha no chão.

— Que faz esta lixa de unhas aqui no chão?

Tiana explica:

— Dona Marinalva estava lixando uma unha que tinha se lascado. Tava se preparando pra ir pra escola, dar sua aula.

— Recolhe num saco plástico, Pompílio.

No dia seguinte, o eficiente Delegado de Polícia inicia a tomada de depoimentos das pessoas envolvidas ou testemunhas do ocorrido. No caso, começou com o depoimento de Marinalva. Longo depoimento, que abrangeu relatos de sua vida passada, de seus entreveros com o marido, e com a sua versão da briga que tivera com Fernandinho e que resultara na sua morte.

— E o que fazia a senhora com uma lixa de unhas na sala de jantar.

— Tinha lascado minha unha uns minutos antes, e estava me preparando para ir dar aula na escola. Estava lixando a parte estragada. Quando Fernandinho apertou minha garganta... eu.... eu não consigo me lembrar.

— Fique calma, dona Marinalva. -– A simpatia do delegado se manifestava no tom suave e carinhoso. -– Por que vocês estavam discutindo?

— Ele chegou de manhã em casa, vindo de não sei onde. Estava exaltado, jogou um monte de notas sobre a mesa, dizendo pra mim não ir trabalhar, que não era mais preciso...Era dinheiro maldito, dinheiro de jogo. Falei pra ele, “você ganhou porque fez trapaça”, então ele pulou pra cima de mim, gritando “nunca mais diga isso!”. Foi aí que me desviei, ele caiu em cima da cristaleira, quebrou o vidro, virou um demônio.

— Vocês já tinham brigado antes?

— Ultimamente, ele chegava alterado em casa. Brigamos, sim, umas duas ou três vezes, mas ele não conseguia me bater, eu sempre desviava de seus socos e tapas.

O depoimento de Marinalva durou cerca de 4 horas. Ao terminar, o Dr. Calheiros pediu-a que permanecesse em casa, que não saísse da cidade, pois poderia querer mais esclarecimentos.

Alguns minutos após, chegou o policial Pompílio, trazendo um volume que entregou ao delegado.

-- Taí o resultado da perícia na lixinha de unhas, Dr. Calheiros.

Por mais que procurasse esconder sua ansiedade, o delegado abriu o envelope. Passou por alto na leitura dos dados técnicos e foi rápido para as conclusões:

...”ao longo da lixa foram encontrados restos de matéria córnea lixada, misturados com tinta ou esmalte de unhas. Na extremidade pontiaguda da lixa foram detectados pequenos fragmentos de pele humana com pelos, ou fios de barba recém-aparada, de pessoa de cor branca...”

ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = BELO HORIZONTE = 29 deMARÇO DE 2.000

Conto # 16 da Série Milistórias

Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção Milistóirias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/02/2014
Reeditado em 08/09/2014
Código do texto: T4710243
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