003 - HISTÓRIA SEM FIM

— Pára, pai, pára o carro, que o vovô tá tendo um treco !

Quase que automaticamente, Gustavo, o pai, pisa de leve no freio e vai dirigindo o veículo para o acostamento, cuidadoso, a fim de não perder o controle do carro e ao mesmo tempo preocupado com o que se passa no banco de trás.

— Que foi? Que aconteceu?

— O vovô tá engasgado, num tá respirando direito, num pode nem falar ...

O carro pára no meio de uma poeira vermelha, o acostamento não tem a mesma capa de asfalto que a estrada, “ é uma miséria essa estrada”, pensa Gustavo, cansado das muitas horas na direção.

— Depressa, ! Dê esse copo d’água pra ele! – Míriam, a mãe de Carlos Alberto , abrira a garrafa de água mineral, e já tinha nas mãos um copo plástico, quase cheio.

Portas abertas, todos dirigem sua atenção para o velho senhor, torcendo-se de dor e tentando inutilmente falar. De sua garganta só chegam sons cavos, estertor, olhos esbugalhados, o rosto púrpuro, as mão tremendo e mexendo convulsivamente.

Gustavo e Míriam tentam ajudar Carlos Alberto a dar de beber ao velho, mas, na afobação, a água lhe escorre pelos cantos da boca. Não consegue engolir, a respiração cada vez mais difícil.

— É inútil, ele não consegue engolir! -Pai, pai, fale alguma coisa... tá sentindo o quê?

— Calma, Míriam !— é Gustavo quem pede — Desabotoa a camisa, deixa eu fazer uma fricção nos pulsos. — Ao mesmo tempo que fala, assume o comando, acostumado que está a tomar iniciativa, a liderar. — Ele está com frio...pega minha jaqueta, joga nos ombros dele...

Passa as mãos energicamente nos pulsos, na nuca, na testa, onde poreja abundante suor. Mas, aos poucos, o corpo de velho vai perdendo a resistência, e desmaia, tombando sobre o banco do carro.

— Temos de achar socorro imediatamente. Míriam, fica aí no banco de trás. Carlos Alberto, passa pra frente, vou dirigir até acharmos um posto de gasolina, uma fazenda, sei lá, qualquer coisa.

Míriam senta-se ao lado do pai, apoiando a cabeça de longos cabelos brancos em suas pernas, afagando a testa, friccionando os pulsos. O desespero toma conta de sua mente, tenta compreender o que está se passando. O pai sempre foi um homem forte, nunca se queixava de nada, agora, de repente, esse ataque...Sim, era evidente que estava sofrendo um ataque, do coração ou do que quer que fosse. Aquele desmaio só podia ser indicativo de um enfarte... Rezava pra que logo aparecesse uma ajuda’.

Retornando ao asfalto, Gustavo disparou o veículo. Os quilômetros voando no velocímetro, atento para qualquer sinal de vida .

Atravessavam a região do norte do Paraguai, vindos de uma visita que fizeram à Fazenda Jarana, à venda. Tinha sido oferecida a Gustavo, que pretendia comprar terras na região do Chaco. Passaram quatro dias visitando a Jarana, indo e vindo pelas estradas internas. No dia anterior, cavalgaram até uma porção mais inóspita, sem estradas, de terras baixas, inundáveis, onde o pasto crescia até a altura de um homem a cavalo. O gado nem precisava abaixar a cabeça para comer a fartura que se estendia por infindáveis quilômetros .

A terra era boa, o clima quentíssimo, boas aguadas, pastos exuberantes o ano todo, região apropriada para engorda de boi. Tanto Gustavo quanto o velho Lucas e o filho Carlos Alberto, gostaram logo da Jarana. Saíram da fazenda com o negócio praticamente fechado. Agora, era retornar a Araçatuba e combinar os detalhes da transação .

O possante carro, confortável “Galaxie” do ano, deslizava célere pela rodovia . Nenhum sinal de gente, de fazenda, sítio ou casebre, nada. Era assim mesmo. Gustavo tinha observado quando iam para a Jarana, os campos da região eram completamente despovoados. Um deserto de gente, um mundo a ser povoado com gente e gado, este de preferência.

— Acho que o próximo posto ainda está longe — comentou Carlos Alberto, enquanto olhava por sobre os ombros, o velho avô, deitado no colo de Míriam.

— E ele está cada vez mais frio...— aflita, Míriam não parava com as mãos, friccionando o pai. De repente:

— Pare, pare o carro, ele tá morrendo...!

De novo, Gustavo vai para o acostamento, pára o veiculo, e antes mesmo de sair do carro, percebe que o pior aconteceu.

Ao colocar suas mãos sobre a testa e o peito do velho Lucas, verifica, por sua longa experiência ao lidar com gente e com gado, que o velho “já era” — tinha morrido, ali, semi-deitado sobre Míriam. Ela também percebera a tragédia e desatara num choro histérico.

— Papai, Paai...!— acorda, fala comigo...!

— É inútil, Míriam. Ele tá morto de verdade...

Carlos Alberto também sai do carro , chocado, meio bestificado, sem saber o que fazer...

O sol quente queima, o ar abafado dificulta a respiração, tudo contribui para intensificar a desgraça e inibir a ação. Até Gustavo, homem de poucas palavras e de muita ação, foi colhido pelo inesperado. Tolhido pelo clima hostil. Ali parado, vendo sua esposa desesperada, o filho angustiado, não lhe ocorre nenhuma palavra de alento ou de ânimo. É tudo tão irreal, surreal mesmo. Esta morte longe de casa, longe da família, de tudo e de todos, sem nenhum recurso, nenhuma assistência...

Após alguns minutos, todos estão abatidos. Ninguém quer ter a certeza, a confirmação da dura verdade. É Gustavo, de novo, quem determina :

— Olha, é duro, mas vai ter de ser assim. Vamos ter de colocar o corpo do seu pai no porta-malas. Não dá pra viajar com ele aqui no banco...

Chocados, sem iniciativa, os três providenciam lugar para o corpo no porta-malas. Algumas malas têm de ser transferidas para o banco traseiro. Conseguem acomodar o corpo do velho senhor.

— Vamos continuar até encontrarmos o próximo posto de gasolina. Não deve estar longe.

— Vamos comunicar o fato à polícia?

— Nem pensar! Imagine só a burocracia, as explicações, a confusão, neste fim de mundo... Vamos telefonar pra sua família, comunicar o fato. Dizer que estamos viajando de volta... Se eles quiserem se apressar, podem esperar na fronteira...

O “próximo posto” não estava tão próximo. Viajaram mais de 50 quilômetros pela estrada . Uma, duas vezes cruzaram com velhos ônibus. Uma vez foram ultrapassados por uma veloz camioneta preta, os vidros escuros todos fechados. Duas curtas buzinadas e acelerou mais ainda, desaparecendo em minutos da visão do carro.

Enfim, chegaram a um posto , com um pequeno restaurante anexo. Abastecido o carro, Guilherme manobrou e colocou-o debaixo de frondosa árvore. Dirigiram-se os três para o restaurante. Enquanto Míriam e Carlos Alberto faziam um lanche, Guilherme tentou usar o telefone do restaurante, inutilmente. Ao saber que pretendia fazer uma ligação internacional para o Brasil, o proprietário negou o uso do aparelho.

Desanimados, cansados, terminaram o lanche. Saíram do estabelecimento, em direção à grande árvore sob a qual Guilherme estacionara o carro.

— Pai, cadê o carro?

— Estacionei ali, debaixo da árvore...Mas...como...? Devia estar bem ali?

— Roubaram o carro ! exclamou Míriam.

— Puta merda ! Só faltava essa ! Não estou acreditando!

Dirigiram-se ao frentista do posto.

— Companheiro, cê viu alguém saindo num Galaxie que estava estacionado ali debaixo da árvore? – perguntou Gustavo

O frentista fez uma cara de desentendido. Só então Carlos Alberto percebeu que ele realmente nada entendera.

— Hay visto quien salió com el coche que estaba debajo de aquella arbol mas alá?

— Non, patron, non he visto nadie...

Míriam e Carlos Alberto ficaram completamente desatinados, caminhando de um lado pro outro, entre as bombas de combustível e a árvore, procurando nas imediações do posto.

— Os bandidos... peraí ! Lembram-se daquela camioneta que passou por nós? De certo eles já estavam na nossa cola há muito tempo, esperando que a gente parasse em qualquer lugar.

— Sim, mas de que adianta agora suspeitar de quem quer que seja? Não podemos sequer procurar a polícia. Como iremos avisar que nosso carro foi roubado ...com o corpo do vovô no porta-malas ...?

— Tem razão, Carlos Alberto. Vamos ter de nos virar sozinhos.

— Mas aqui, neste fim de mundo...que poderemos fazer? –

— Nada ! Infelizmente, nada podemos fazer . Vamos pro Brasil. De lá, acionaremos a polícia, ou um investigador particular. Conheço um que é especialista em encontrar carros roubados no Brasil , trazidos pra cá. Ele conhece mais o Paraguai que muito morador daqui.

A volta, se já estava sendo penosa, tornou-se um pesadelo. Procuraram um velho motorista, cujo carro, caindo aos pedaços, os levou até a capital do pequeno país. Viajaram rapidamente para Araçatuba, onde residiam Guilherme e toda a família de Míriam.

Reunir toda a irmandade, filhos e filhas do falecido e desaparecido Lucas Magalhães não foi difícil, avisados da urgência da reunião. Difícil foi comunicar o acontecido. Era como contar uma história só vista em filmes ou em romances policiais. Aliás, Guilherme, sempre tão seguro e firme, estava abaladíssimo. Este estado de espírito em nada contribuiu para convencer a família da veracidade dos fatos.

Convencer, sim, porque os irmãos de Míriam não acreditaram em nada . Esta incredulidade foi contagiando os demais, de tal forma que, no final da reunião, nem os irmãos, nem as irmãs, nem os cunhados de Míriam punham fé na narrativa.

Foi contratado um investigador de S. Paulo, especialista em casos de roubos de carros e procura de pessoas desaparecidas. Ele esteve trabalhando no caso durante dois meses, percorrendo mais de uma dezena de vezes o trajeto feito por Guilherme, Míriam e Carlos Alberto – sem encontrar a menor pista do carro, muito menos do corpo do velho.

E a história termina assim, num impasse. Aliás, não termina. Além da dúvida generalizada dos irmãos, há a questão do patrimônio do velho Lucas Magalhães, viúvo, proprietário de fazendas e imóveis urbanos no interior do Estado , sócio em algumas firmas comerciais importantes; sua ausência tem se mostrado muito prejudicial aos negócios.

Três meses depois de retornarem da viagem , Guilherme, Míriam e Carlos Alberto continuam sendo intimados a comparecer na Promotoria Pública de Araçatuba.

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ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte - Outubro de 1999 - # 3

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/02/2014
Reeditado em 07/05/2014
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