Inimigos

Tirou o último fósforo da caixa, riscou-o na parede, admirou por alguns segundos a chama consumindo o palito e o transformando em carvão. Em seguida acendeu o cigarro, tragou a fumaça lentamente e sentiu o prazer da nicotina entrando em seus pulmões como se fosse um afogado conseguindo oxigênio. Depois riu, sua gargalhada ecoou um som gutural que se espalhou por todo o ambiente. Expeliu a fumaça do cigarro e convidou as lembranças de seu crime a se atualizarem em sua memória.

Havia um ano que decidira matar o seu único inimigo. Passou noites e noites em claro pensando na melhor forma de executar o assassinato. Não queria sangue e tampouco uma morte violenta. Um grande rival precisaria de uma morte lenta e agonizante, era uma forma de honrar o seu opositor. Homem brilhante e que fizera, por anos, sua vida ter algum sentido.

Sim, era justo matá-lo. Estava já definhando, seus comentários ácidos já não tinham o mesmo impacto de antes. Seus livros eram agora repetição de suas obras passadas, arremedo de teorias e ideias. Nos corredores da Universidade, onde lecionava, era motivo de piada de jovens semianalfabetos. Os debates travados entre eles e que no passado consumiam noites inteiras, agora se resumia a um único assunto: esperança em um Deus, o qual jamais fora cogitado em sua juventude. Não, matá-lo era mais do que justo, era um dever.

Numa manhã preguiçosa de agosto, Edgar já havia finalizado seu plano. Agora só precisava pensar na melhor forma de colocá-lo em prática. Depois de tomar um café amargo, entrou no seu opala preto e dirigiu até uma cidadela abandonada no interior de Pernambuco. Há cerca de doze quilômetros dali, havia um velho cemitério, tão antigo e tão remoto que já não constava mais em nenhum registro oficial. Ninguém ia ali chorar seus mortos. Era o lugar perfeito! Longe da zombaria de alunos ignorantes, distante de qualquer ouvido que pudesse escutar seus devaneio e afastado de qualquer objeto que lhe servisse de instrumento para pôr em prática o seu ímpeto de escrever.

No centro do cemitério estava o lugar procurado por Edgar, um pequeno mausoléu com grades enferrujadas, mas ainda bastante sólido. Dentro dele, havia uma imagem da Virgem Maria com o nariz e as mãos quebrados. Sobre a imagem um lagarto verde. Edgar tirou os dois dali, não queria plateia para o seu inimigo. Visitou o lugar ainda outras três vezes. Reforçou as grades que ficavam na entrada, trocou algumas telhas, rebocou um canto desgastado na parede. Precisava ter certeza de que seu inimigo não conseguiria escapar.

No final de setembro, estava tudo pronto. Seu inimigo costumava se levantar cedo e caminhar numa praça não longe de sua casa. Edgar foi até ele e o convidou a entrar no carro. Ele não hesitou. Não estranhou o longo caminho de Recife até a cidade abandonada. Como se antevisse e esperasse o seu final, o inimigo não disse nada. Edgar parou com o opala em frente ao mausoléu.

O inimigo sabendo o que devia fazer desceu do carro. Edgar empurrou as grades do portão e ordenou: “entre”. Por alguns segundos, o inimigo cogitou inicar uma discussão, travar uma luta e tentar convencer a Edgar de seu engano. Desistiu quando viu a imagem decidida de Edgar no reflexo do carro. Respirou fundo e entrou na sua sepultura.

Edgar conferiu se as grades estavam mesmo fixas, depois passou a chave no trinco, despediu-se do seu inimigo e lançou fora as chaves com toda a força que possuia.

O inimigo, tirou, então, o último fósforo da caixa, riscou-o na parede, admirou por alguns segundos a chama consumindo o palito e o transformando em carvão... Depois riu, sua gargalhada ecoou um som gutural que se espalhou por todo o ambiente.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 22/02/2014
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