001 - A CASA QUE VIROU MAUSOLÉU

A casa ainda está lá, quase centenária, exibindo alguns sinais de sua simplicidade original, quando foi construída pelo imigrante Rámon Oliva, espanhol recém-chegado da Galícia. Trabalhador de muitas habilidades , fazia de tudo um pouco, mas sua especialidade era a marcenaria, construção de móveis de todos os tipos. Carpinteiro e pedreiro por necessidade, ergueu a casa praticamente sozinho, tendo o cuidado de destacar a porta e as janelas com molduras de alvenaria, o que lhe deu , quando nova, uma graça peculiar. Igualmente cuidadosa foi a construção da escada de uns 10 ou 12 degraus, protegida por corrimão também de alvenaria, que ia da calçada à porta de entrada, tudo ao rés da rua, a escada ocupando um espaço da calçada.

Além de construir a casa segundo sua própria idealização, Rámon cimentou um corredor lateral, entre sua casa e a construção vizinha. O corredor, era na verdade, um beco e terminava numa área formando um pátio nos fundos, acessando a uma construção baixa, a oficina do marceneiro. A pequena marcenaria era simples meia-água coberta de folhas de zinco, fechada na parte posterior e aberta para o beco. Era por ali que entravam as madeiras, os móveis para serem reformados, e por ali saiam as mobílias novas e as recuperadas, verdadeiras obras de arte produzidas pelas mãos habilidosas do espanhol.

Na frente da casa, coincidindo com as janelas que se abriam para a rua, duas árvores frondosas faziam boa sombra e refrescavam a frente da fachada, protegendo-a contra o sol inclemente. Plantadas com carinho pelo imigrante, jamais foram podadas, cresceram livres e em nada se assemelham às demais árvores, plantadas simetricamente pela prefeitura, podadas e cortadas pela Companhia de Eletricidade, em todas as ruas da pequena cidade.

Mas a história que lhes quero contar começa com a chegada das irmãs Rosa Maria e Ana Maria, isto uns trinta anos depois que a casa fora construída. As duas irmãs, solteironas, chegaram para instalar uma pequena escola pré–primaria e a casa do espanhol, ainda que um pouco desgastada e suja, foi adquirida pelas irmãs. O barracão do fundo foi adaptado para as aulas da escolinha , logo batizada de “Jardim da Infância”.

As duas, de rosto claro, tinham a diferenciar, primordialmente, a cor dos cabelos: a cabeleira negra de Rosa Maria contrastava com os cabelos ruivos de Ana Maria. Mas a diferença era quase que só essa, pois ambas eram esbeltas, a mesma voz modulada e suave e idêntico carinho ao tratar com as crianças. Conquistaram logo a estima dos alunos e o respeito dos pais e num piscar de olhos o Jardim da Infância estava lotado de alunos.

Coincidentemente com a chegada das duas professoras houve uma animação inusitada na “zona” , onde a nova presença de Shirley Maria chamava atenção dos freqüentadores da “pensão da Alemã”, uma das diversas casas de putas da Rua Tiradentes. A casa da alemã era a última da rua, que acabava numa voçoroca que se transformava num lamaçal intransponível na época das chuvas.

Logo, logo, Shirley Maria era a predileta do Coronel Herculano, de patente comprada e dono de centenas de alqueires de terras, nem todos adquiridos honestamente. A novata tornou-se a paixão do poderoso coronel , “homem de bem”, de influência, muita influência, na sociedade, na política, no comércio da localidade. Patrono das festas na Igreja, extremoso pai de grande família: dez filhos dentro do casamento e talvez outros tantos feitos em amásias, amantes, prostitutas e jovens inexperientes.

O que para Shirley era profissionalismo, para Coronel Herculano passou a ser uma paixão desenfreada, em troca da qual ele presumia uma exclusividade na ocupação do leito da linda e experiente dama da vida. Tinha-a como amante e fingia ignorar que Shirley exercia seu ofício , não era sua exclusiva. Assim pensava o prepotente Coronel, que freqüentava o bordel nas noites de terças, quintas e sábados, pontualmente (o homem era também exigente quanto ao horário) das 9 até meia noite. O resto do tempo era com a Shirley.

Tudo funcionou muito bem até na noite de uma quente terça- feira, quando o Coronel adentrou-se pelo bordel, no seu horário de costume. E flagrou Shirley na cama, com o Zé Darimatéia, um reles empregado da loja de ferragens do Donato Perlongrano.

O resultado da situação não foi outro: tomado de uma fúria imensa, o Coronel sentiu o ultraje, a “traição”, percebeu os cochichos e as risadinhas dos demais clientes do bordel. Quis resolver tudo num só ato: ao mesmo tempo que espancava Shirley, quebrava os móveis, o espelho, rasgou os vestidos e os lençóis, atirou um urinol contra a janela, estilhaçando os vidros, quebrando a madeira, estabeleceu um verdadeiro pandemônio. As ameaças que vociferou contra a prostituta e seu cliente daquela hora foram inomináveis.

Zé Darimatéia conseguiu escapar com poucas lesões, fugiu do bordel e da cidade, nunca mais foi visto. Shirley desmaiou de tanto apanhar. Foi levada por caridosas mãos para a Santa Casa, o hospital da localidade, onde foi medicada e passou a noite acompanhada por uma de suas colegas de pensão. Na manhã seguinte saiu do hospital, mas não voltou para o bordel. Não mais foi vista na cidade.

A gozação foi grande na cidade. Todo mundo gostou da situação e dos chifres do Coronel, que aliás, nem poderiam ser considerados chifres, já que Shirley era uma mulher “da vida”. Se alguém usava chifres, certamente era a virtuosa esposa do Coronel. Mas o coronel se sentia adornado, sim, com um belo par de chifres, e dos mais dolorosos de carregar.

Contudo, o mais surpreendente estava ainda por ser revelado. Shirley saíra de circulação, não voltou para a Pensão da Alemã e ninguém sabia de seu paradeiro. Era sabido que não deixara a cidade, mas onde estaria amoitada a linda prostituta?

Aliás, duas pessoas somente, em toda a cidade, sabiam do paradeiro de Shirley: as irmãs Rosa e Ana Maria, que abrigaram Shirley na sua casa na manhã seguinte, logo que ela saiu do hospital. O segredo do esconderijo de Shirley durou pouco, uns quinze dias, se tanto. O tempo do coronel esfriar a cabeça e tudo voltar á rotina.

Ao ser revelado o esconderijo da infeliz mulher, abrigada pelas duas professoras, surgiram boatos de que Shirley e as mestras seriam irmãs. Muita gente lembrou-se, então, de que todas as três chegaram à cidade na mesma época, o que veio corroborar, dar certeza aos fofoqueiros, de que elas eram, de fato, irmãs. Inda mais que agora a prostituta vivia ao abrigo das professoras. E, para os mais observadores, a diferença entre as três estava apenas e tão somente na cor dos cabelos: a loira Shirley tinha o mesmo porte, a mesma elegância e a voz suave das irmãs Ana e Rosa. Pura coincidência?

Quando soube do paradeiro de Shirley, o coronel não se conteve. Espírito vingativo, usando de toda a sua influencia e poder ( e como mandava o Coronel naquela pequena cidade!), começou uma campanha de difamação e perseguição às duas mulheres que mantinham o Jardim da Infância.

Não decorreram dois meses após a tragédia no bordel, e as irmãs já tinham perdido todos os alunos de seu Jardim da Infância, ficando totalmente sem qualquer fonte de renda, de subsistência. O barracão dos fundos foi fechado, o beco deixou de ser transitado e as três não saiam de casa senão por extrema necessidade de comprar os poucos alimentos que lhes permitiam as modestas economias.

Não satisfeito com os resultados dos boatos, Coronel Herculano (pois a idéia só podia ter origem na sua mente perversa e ruim ) tramou o fim , de uma vez por todas, das três mulheres. Completamente recolhidas dentro da casa, que agora, de tão triste adquiria uns ares de sinistra, as mulheres foram caindo no esquecimento das pessoas.

Foi quando, numa manhã muito fria, em que a neblina cobria tudo até por perto das nove horas, Shirley foi encontrada morta no fundo do beco.

Ninguém jamais ficou sabendo as circunstâncias da morte de Shirley, pois o delegado de Polícia, Guilhermino Ramos, notoriamente venal e corrupto, mais do que depressa tomou todas as providências para a remoção do corpo, seu enterro, as pistas (se havia) desfeitas, tudo tendo sido devidamente classificado como “morte misteriosa , insolúvel”.

As irmãs Ana Maria e Rosa Maria, já abaladas com a boateira, o fechamento da escola e com as calúnias que lhes caíram sobre as cabeças como uma tempestade inclemente, ficaram mais temerosas ante mais essa agressão e não tiveram forças nem meios para apurar o que realmente acontecera a Shirley.

Após o trágico acontecimento, as irmãs mergulharam num verdadeiro limbo. Encerradas dentro daquela lúgubre casa, já nem abriam as janelas da frente, nem mesmo varriam a calçada ou cuidavam do beco há muito abandonado. Para infernizar ainda mais suas vidas, ameaças começaram a chegar . A princípio veladamente , como boatos, mas depois, até “recados” escritos em papel de embrulho ou em folhas de cadernos escolares: as próximas “vítimas” seriam elas.

Apavoradas, trataram de se mudar, abandonando a casa, pois não havia interessado na compra e a urgência em sair da cidade era premente. O pavor fez com que as irmãs saíssem de madrugada. Ficaram na estação da estrada de ferro, escondidas, até a passagem do trem , bem cedinho, às 6 e meia da manhã. Cada qual levando sua malinha, que pertences e roupas eram poucos, reduzidas em poucos meses à miséria e à privação até mesmo do essencial à sobrevivência.

Nunca mais ninguém viu ou teve notícias das duas irmãs. Nunca mais ninguém ousou entrar no beco ou verificar as redondezas da casa, que, cada vez mais, com o passar do anos, foi decaindo, decaindo. Logo vieram histórias de assombrações, de aparecimento da alma penada de Shirley e a casa foi assumindo o aspecto tétrico de local mal- assombrado.

Hoje, a casa centenária está negra da pátina do tempo. Pelos telhados cresce essa plantinha sem-vergonha conhecida como “pecado de homem”. O beco está entulhado: capim alto, lixo da vizinhança, nem mesmo os vagabundos e mendigos ousam adentrar-se.

É como se fosse um mausoléu: sim, na verdade, é um mausoléu, um pouco diferente daquele em que, do outro lado da cidade, no Cemitério Municipal, está sepultado o Coronel Herculano, que, homem aplopético e dado a ataques de ira e fanfarronadas, teve morte súbita, numa tarde de verão, quando ficou sabendo que sua filha (a Gustavinha, tão amorosa) tinha fugido com o Josmar Quintino, um estróina safado, conhecido aliciador de mulheres para a prostituição.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 25.08.1999 – Conto # 1 da Série Milistórias

Publicado em “A Loucura do Cristal”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/02/2014
Reeditado em 07/05/2014
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