O acidente...
Dirijo meu carro sem a menor pressa, a rua está deserta, a madrugada fria quase não convida à se estar na rua... Decido trocar o disco no toca-cd e mal começa a tocar a música, um sucesso romântico de anos atrás, começo a recordar um episódio do meu passado...
O carro é outro, um Opala 250-S preto, a música que toca no rádio é a mesma e quem está ao volante sou eu mesmo, ou quase... Eu era tão confiante, tão orgulhoso...
A rua cheia de gente jovem fazia o trânsito quase imóvel. Todos que passam de carro querem nas calçadas o olhar de alguém, querem ver, querem ser vistos...
Estaciono numa rua próxima à principal onde já não cabe sequer uma bicicleta... Venho caminhando tranqüilo pela calçada, numa das mãos carrego um copo com whiskie, na outra um Marlboro aceso... Logo alcanço a rua agitada e me encontro com um grupo de amigos...
- E aí, La Luna?
- E daí, pessoal? O que “pega” hoje? Respondo perguntando...
- Hoje tem Festa do Semáforo na danceteria, você vai?
- Dá pra ir se não tiver nada melhor pra fazer...
- Nós vamos pra lá, mas mais tarde, agora vamos ficar por aqui, tem uma garrafa de Whiskie e gelo aí, se quiser bebe com a gente... A rua tá cheia... Cheia de gata...
Após alguns whiskies, a noite segue, agora estamos dentro da danceteria... Quem porta pulseira vermelha não está à fim de nada ou já é comprometido, quem porta pulseira amarela está aberto à conversa e daí quem sabe... Já quem porta pulseira verde, como eu e a grande maioria, está à fim de curtir a noite sem perder oportunidades...
Quando no meio da festa levanto os olhos após acender um cigarro encontro ela... Eu já estava pensando que ela não tinha vindo... Como era linda... Corpo insinuante, pele bronzeada e o olhar... Transmitia tanto charme, seduzia pela meiguice...
Porém era só isso e o nome dela que eu sabia... Já tinha deixado várias vezes na garagem da casa dela uma rosa roubada com um bilhete com alguma frase romântica, mas... Não sei se era por timidez ou desinteresse que ela jamais havia me dado sequer um olhar de agradecimento...
Bom, ela estava ali e isso já valia a pena...
Um minuto depois no balcão do bar eu aguardava me preparem um Bloody Mary, um drink à base de suco de tomate... Foi nesse instante que percebi sua presença ao meu lado...
- Oi... Você é o Sandro, não é?
- Sim... Sou eu... Respondi um pouco atônito...
- Obrigada pelas rosas... Eram lindas...
- ... De nada... Que bom que você gostou, eu já estava achando que você tinha uma outra opinião sobre elas...
- Não, eram lindas... Seus bilhetes também, só são meio exagerados... Não sou tudo aquilo que você escreve...
- Bem, vê-la daquela forma é a minha realidade e o que eu gostaria é de poder senti-la... Sabe, conhecê-la melhor...
- Sandro... Vejo que você precisa me ouvir, pegue sua bebida e vamos lá fora, aqui o som é muito alto...
- Pronto... Aqui está mais calmo... Fale...
- Sandro, você é um bom moço, trabalhador... Uma noite dessas, depois que peguei sua rosa na garagem, eu fui dormir e tive um sonho. Nele você conversava com um senhor de cabelos brancos e eu assistia a tudo... Ele lhe dizia que sua vida aqui estava próxima de terminar e que a culpa era toda sua... Você não respondia, apenas olhava com desprezo... Sandro... Você precisa mudar algo dentro de você... Eu não sei o quê, mal te conheço e se um dia ficarmos juntos tem que ser pra viver e pra viver felizes... Tchau... Pense nisso...
- Você já vai?
- Sim... É preciso... Tchau...
Saí bravo da festa, sem avisar ninguém... Entrei no meu carro e saí “cantando” pneu... Quem ela pensava que era? O que ela sabia de mim? Por quê? Eu sou o que sou e quem me quiser tem que me aceitar da maneira que eu sou... Menina idiota!
Segui com o carro por uma estrada vicinal, afastada, precisava espairecer...
Com a raiva que sentia comecei a acelerar mais... Curva à direita... Curva à esquerda... De repente um cavalo na pista. Puxei o volante tentando evitar a colisão, mas não deu...
Bati no animal e o carro capotou rolando por uma ribanceira até parar meio de lado...
Tentei enxergar algo naquela escuridão, meio tonto com a batida na cabeça... Um laivo de sangue tampava a visão de um dos meus olhos, o supercílio estava com um corte, meu braço esquerdo estava inchado, devia ter quebrado, e o pior, minhas pernas estavam presas nas ferragens... Não enxergava quase nada pelo pára-brisa estilhaçado...
Tentei ouvir algo, mas o silêncio era completo... Nada... Ninguém... De madrugada a estrada estava deserta... e agora?
Um cheiro forte de gasolina se fazia no ar... Eu sentia pavor em pensar que o carro pudesse se incendiar comigo dentro...
Nesse instante me lembrei do que a moça havia me dito na danceteria... Idiota, devia ser praga dela...
Uma hora já se passara e eu ali naquele barranco, preso e sangrando... O dia ia demorar pra nascer... Comecei à perder os sentidos, uma angústia se apoderava de mim, aquela moça tinha razão, eu sempre me achei invencível, dono do mundo, e agora estava claro que não era assim... Não agüentei, desmaiei...
Uma garoa fina me despertou, olhei o relógio no pulso do braço inchado, faziam mais de duas horas que eu estava ali. Me esforcei para escutar algo, mas nada, só o silêncio impiedoso e a dor...
Me sentia fraco, havia perdido muito sangue, o álcool que eu havia ingerido devia ser a causa, mas o pior eram as pernas... Eu não as estava sentindo...
Desmaiei de novo... Antes recordei de meu pai e de minha mãe... Quantas vezes não tentaram me dar conselhos para que eu respeitasse mais a vida, que eu fosse mais tranqüilo... Sempre que eles tocavam no assunto eu saía pela porta da frente e ganhava a rua. Ali eu me achava livre, sem dono... Aquela moça na danceteria tinha razão... Seu sonho fora real, o homem que ela via me aconselhando devia ser meu anjo da guarda... Eu afrontava Deus, gostava de velocidade, bebia... A junção de ambos me fazia sentir onipotente diante dos outros... Era muito frágil onde eu havia instalado a minha fé... Em mim mesmo, e eu não podia sequer me ajudar a sair dali... Senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto... Desmaiei uma vez mais...
Acho que tive um sonho... À minha frente o futuro, numa varanda uma mesa comprida com umas sessenta cadeiras que eram ocupadas por pessoas simples, homens, mulheres, crianças, todas tomavam um prato de sopa... Todas me olhavam sorrindo e o sentimento de gratidão era mútuo entre eu e aquelas pessoas... De repente tudo mudou, eu agora estava num vale quase sem luz, de céu cinzento, no ar cheiro de fumaça, no chão lama... E eu ali, deitado, caído, sujo, com sede, cheio de remorsos... Uma voz vinda de não sei onde me acusava de suicídio, suicídio involuntário... Eu não entendia nada...
Nesse instante um senhor de cabelos brancos (talvez como o do sonho da moça da danceteria) surgiu e me tirou dali e me pôs em pé sobre um pequeno monte e me disse com voz grave:
- Eis dois caminhos, a decisão é sua...
A emoção de repente tomar conta de mim. O calor humano, algo que eu desconhecia e que a visão daquelas pessoas tomando sopa me passava não me deixava dúvidas... Aquele era o caminho à escolher...
Eu precisava cuidar de mim e a melhor maneira de fazer isso era cuidando dos outros. Foi nesse instante do sonho que senti um beijo no meu rosto e despertei...
Acordei atônito, assustado... Eu não estava mais preso nas ferragens, tampouco tinha algum ferimento. Olhei para o lado e ela, a moça da danceteria estava sentada no banco do passageiro... O carro estava estacionado sem um arranhão numa praça deserta da cidade, a madrugada estava indo embora... Ela beijou de leve minha boca e falou:
- Nossa, como você dormiu! Devia estar muito cansado. Vamos, agora me leve que meu pai pensa que estou na danceteria e vai me buscar lá daqui quinze minutos...
Ainda surpreso liguei o motor do carro e saí dali... Quando parei na frente da danceteria ela me pediu:
- Sandro, pense em tudo que eu te disse. Você sabe que se quiser ficar comigo terá que ter paciência. Vou viajar depois de amanhã e só vou te reencontrar quando resolver minha vida e você tiver resolvido a sua... Tchau... Até um dia...
Ela me deu um beijo de despedida e sumiu no meio da multidão que saía da danceteria...
Ah, meu passado... Quanto tempo, quantos anos já se passaram...
Bem, de volta ao presente guio meu carro pela rua movimentada... É fim de ano, as lojas estão cheias... De repente olho dentro de uma joalheria que fica numa esquina... E quem é que está lá? Linda como sempre foi ... Ela...