O DENTISTA

Já faziam duas semanas que a restauração de um dente meu havia quebrado, e como eu estava sem dinheiro para ir a um consultório odontológico, e também sem tempo para ficar horas na fila de um posto de saúde, resolvi ir até uma universidade, onde estagiários (estudantes de odontologia) realizavam procedimentos a preços simbólicos.

Muita gente já havia me falado mal daquele lugar, dizendo que os estagiários não tinham preparo algum e muitas vezes até cometiam erros absurdos. Eu, como nunca tive medo de dentistas, e também não sou de dar ouvidos a boatos, fui mesmo assim.

Chegando lá, vi que o lugar não era mesmo dos mais agradáveis. Apenas algumas salas, umas cadeiras para esperar e uma moça antipática atendendo em uma mesa no meio do salão.

Entrou um senhor na minha frente, e logo após seria a minha vez.

Já haviam se passado quase uma hora, e aquele senhor ainda estava em atendimento. Achei muito estranho, pois sabia que ali eram realizados apenas procedimentos simples, e via a toda hora a estagiária solicitar a presença do professor para auxiliá-la;

- Ela parece não ter a mínima ideia do que está fazendo - disse eu ao rapaz loiro de mais ou menos vinte anos de idade que acabara de sentar ao meu lado, também aguardando para ser atendido.

Como a demora estava grande , resolvi sair do lado de fora fumar um cigarro (meu maldito vício).

O rapaz loiro veio em minha direção e disse:

- Concordo com você. Vamos sair daqui de fininho?

Respondi que não poderia, pois preferia arriscar do que continuar com dor de dente.

Ele tirou do bolso um papelzinho, o endereço de um dentista clandestino, mas muito bom, que um amigo dele que recentemente havia perdido todos os dentes em um acidente de moto indicou, pois fez uma bela dentadura a um preço inacreditável.

Aceitei, pois que perigo poderia haver em uma simples restauração dentária?

O rapaz apenas me pediu sigilo.

Seguimos e atravessamos por dentro do shopping, que seria o caminho mais curto. Várias pessoas sorridentes nos olhavam, mas nada de anormal.

Chegamos ao endereço, que ficava em uma ladeira atrás do shopping. O que achei confuso é que várias vezes passei por ali, mas nunca havia reparado naquele lugar. Era um bela praça arborizada, havia uma loja de doces de um lado, um “trailer lanchonete” do outro e um chafariz no meio.

Novamente o rapaz loiro tirou o papelzinho do bolso, dizendo:

- Que estranho, o número do consultório é o mesmo da loja de doces.

Olhei para ela, era uma linda casinha de madeira estilo colonial, com um letreiro esculpido em madeira que dizia “ LOJA DE DOCES DA VOVÓ GERMANA FRITZEN”, e logo abaixo “entre e experimente a vontade”. Logo então falei ao rapaz que eu iria até lá pedir alguma informação sobre o tal dentista.

O rapaz loiro não gostou muito da ideia, já que seu amigo havia pedido sigilo. Mesmo assim eu fui.

Chegando lá encontrei uma velhinha muito simpática, porém um pouco sinistra, com seu xale cinza sobre seus ombros e sua corcunda.

- Boa tarde, a senhora conhece o doutor Charles?

- Sim, ele logo irá lhe atender - respondeu ela - Enquanto isso- falou me oferecendo uma caixa de doces - Prove alguns enquanto espera. Fiz que não com a cabeça, mas ela insistiu:

- Prove, é cortesia, afinal o doutor Charles irá consertar seus dentes mesmo.

Entregou-me uma caixinha de madeira com doces em formato de bolinhos de mel, e sorriu-me, mostrando uma bela dentadura que provavelmente o doutor Charles lhe havia feito.

Saí da loja e fui falar com o rapaz loiro, que ainda me aguardava em frente ao chafariz.

Abri a caixa de doces, e lhe ofereci um. Experimentei e realmente eram muito bons, parecia coisa de outro mundo.

Enquanto devorávamos aqueles doces, eu já estava pensando em pedir uma caixa para levar pra casa. Estávamos olhando para a lanchonete a nossa direita, quando vimos uma cena repugnante: o atendente, um velho gordão com aparência suja acariciava a jovem garçonete enquanto a mesma chorava. Reparei nos cabelos da moça, longos cabelos lisos e negros, muito bonitos e, por sinal, muito parecidos com os meus.

Me senti meio tonta, foi quando percebi algo solto na minha boca, coloquei a mão e era meu dente, havia caído; - Malditos doces - pensei, quando olhei para o rapaz, ele estava parado com os olhos azuis arregalados olhando fixamente para a lanchonete.

- O-olha l-lá - disse ele, gaguejando e suando frio.

Olhei para lá, a cena era outra. Agora uma velha gorda e suja acariciava e beijava um garoto loiro. Foi quando ele pegou no meu braço e disse:

- Aquele... aquele... so-sou e-eu...

Meu Deus, e era mesmo, era ele, e na hora deduzí que a garota de antes era EU!

- Aqueles doces provavelmente estavam envenenados... deve ser algum tipo de alucinação - disse o rapaz.

E quando pensamos em correr, ao final da ladeira vinham guardas, iguais aqueles da realeza britânica, com seus casacos vermelhos cheios de botões, calças pretas e seus chapéus compridos de veludo preto. Vinham marchando, sérios, em nossa direção, mas com expressões sádicas no rosto.

Corremos ladeira abaixo, um agarrado no braço do outro, pois estávamos tontos, provavelmente por causa de alguma droga que havia naqueles doces. E eles continuavam vindo, apenas movendo as pernas em sua marcha contínua, mas pareciam estar cada vez mais perto.

Chegamos ao terminal de ônibus, pedimos ajuda nos três primeiros que estavam estacionados, mas parece que ninguém via os guardas além de nós. As respostas foram idênticas:

- O ônibus parte daqui a meia hora.

Devem ter pensado que estávamos drogados, e acho que realmente estávamos.

Passou mais um ônibus, fui correndo, bati na porta, mas o motorista não abriu. Corremos mais, enquanto ao mesmo tempo cambaleávamos.

Avistei várias ambulâncias do SAMU, então pensei em pedir ajuda, mas se contasse ao paramédico o que estava acontecendo, ele também acharia que sou louca.

Foi aí que tive uma ideia. Menti para ele que estava grávida de poucos meses e com hemorragia. Precisava que ele me levasse depressa ao hospital. Ele disse que sim, já abrindo a porta da ambulância para o rapaz (que a essa altura já estava apenas com pedaços dos dentes na boca) entrar. Quando ele foi abrir a porta de trás, para eu ir deitada, eu olhei para o lado, os guardas estavam vindo, e com eles muitas pessoas sorridentes, parecendo zumbis. Conseguiram pegar meu amigo.

Saí correndo dali, subi uma grande escadaria, mas não adiantou... Eu estava cercada por todos eles. Resolvi parar, eles também pararam, apenas uma mulher veio em minha direção, sorrindo muito. Percebi que ela usava uma dentadura idêntica a da velhinha da loja de doces. E tinha muitas marcas vermelhas nas bochechas e no queixo, pareciam picadas de inseto. Ela me falou, ainda sorrindo:

- Não tenha medo...no começo eu tive medo, mas não vai doer nada. Agora estou muito bem...doutor Charles é o melhor!

Foi quando senti o chão sumir sob meus pés e desmaiei.

Acordei amarrada em uma cadeira dessas de consultórios odontológicos. Avistei, ainda com a visão um pouco turva, um homem um pouco calvo, com a barba na altura do peito, e uma roupa que parecia de dois séculos atrás, e até lembrava um pouco os casacos cheios de botões daqueles guardas britânicos.

Ele começou falar:

- “Prazer, sou o doutor Charles, aposto que não sabe quem eu sou, não é mesmo? Não lhe culpo, a maioria não sabe mesmo. Vou te contar uma história: Até 200 Anos atrás, as pessoas perdiam os dentes e não havia o que se pudesse fazer. Ficavam desdentadas, não podiam sorrir, não podiam comer” - falava ele, enquanto me aplicava várias injeções de anestésicos por dentro e por fora da boca, inclusive nas bochechas e queixo.

- “Não se preocupe, querida, não vai doer nada. Com todas estas anestesias, e com seus dentes já se dissolvendo graças a ajuda dos doces da vovó Germana, que nos ingredientes possui uma combinação de alucinógenos com ácidos, você nem vai sentir eu arrancar cada um deles"- enquanto isso ele sorria histericamente com a mesma dentadura de todas as outras pessoas.

- “Bom, voltando a minha história... Passei noites em claro pensando em uma solução para as pessoas desdentadas, até que em 1822 descobri um molde feito em cerâmica, e que unindo todos estes moldes, formaria a arcada dentária perfeita. As pessoas ficaram felizes, me aplaudiram de pé, fui recebido por presidentes e até recebi vários prêmios. Até poucos anos atrás eu era lembrado, mesmo após incontáveis dezenas de anos depois de minha morte, e prestigiado em reuniões de profissionais da odontologia. Foi quando foram inventando as próteses provisórias e permanentes, feitas em porcelana, parafusadas e obviamente, caríssimas. As pessoas voltaram a ficar sem dentes, esperando juntar seus míseros trocados para colocar essas próteses. Foram esquecendo a dentadura, ninguém mais a quer, virou até motivo de piada para quem ainda a usa.

Ninguém mais vai a um consultório arrancar todos os seus dentes podres e tortos para colocar uma belíssima dentadura. Apenas os velhinhos, como a doce e meiga vovó Germana, ainda prestigiam a minha invenção.

Então, antes que eu seja totalmente esquecido e deixado para trás por toda eternidade, resolvi voltar para resolver as coisas.”

Nessa altura, eu já estava sem nenhum dente na boca, só me escorriam lágrimas e o sangue, que eu só não me engasgava pois ele havia colocado um daqueles aparelhos de sugar a saliva, enferrujado, no canto da minha boca.

Ele continuava a falar:

- “Eu trouxe guardas da realeza britânica para me proteger, pois agora eu serei o rei. Todo mundo irá sorrir, ninguém mais irá sentir dor de dente, ter bruxismo ou gastar meses de salário para colocar um dente parafusado na boca.... HA...HA..."

Ele ria, enquanto limpava meu sangue e fixava a dentadura em minha boca.

- “Todos me agradecerão por poderem sorrir e comer sem nunca mais sentir dor... mas tudo tem seu preço. Junto aos seus novos dentes, instalei um mecanismo também inventado por mim, onde controlo todos os sorrisos, e todos serão meus súditos para me ajudar a transformar este novo mundo.”

Nisso, ele me desamarrou e mexeu em um controle remoto. Me levantei e sorri, sem poder controlar meu corpo, estendi minha mão, ele apertou forte e disse:

- “Já ia me esquecendo... Muito prazer, sou Charles Graham, inventor da dentadura”.

OBS: Desculpem se o texto pareceu meio louco, é que eu adaptei de um pesadelo que eu tive um dia antes de ir ao dentista.