Os Bruxos do Grande Hotel Lancaster

Durante o expediente na repartição pública, Simão Teles fazia questão de ser apenas um fantasma, aquele que batia o ponto exatamente no horário, respondia aos cumprimentos dos colegas de trabalho com resmungos, sentava-se à mesa na seção contábil e anulava-se no mundo dos números. Nunca foi convidado para reunir-se com a turma no barzinho às sextas-feiras à noite, não participava de brincadeiras tipo amigo-secreto, jamais foi a um batizado de filhos de funcionários, sua boca sempre permaneceu descaída quando o chefe contava piadas insossas – ninguém tentava conquistar sua amizade, o que lhe parecia uma bênção.

Mas há dois dias o comportamento de Simão Teles mudou. Passou a xingar os colegas da repartição por qualquer coisinha, a chutar a lixeira perto da mesa, teve duas ou três crises constrangedoras de choro convulso, ali, bem diante de todos. Consequência: prestes a terminar o expediente, foi chamado à sala da chefia, recebeu uma suspensão de três dias e conselho para procurar um psicólogo.

O motivo para essa anormalidade no seu cotidiano de arquivo-morto foi que assaltaram sua moradia e furtaram, entre outras coisas, uma luneta que ele, Simão Teles, levou exatos oito meses para pagar em suadas prestações. A luneta era seu bem mais precioso, o instrumento que dava alguma cor em seu viver: Simão saía da repartição, pegava o ônibus, chegava ao bairro, comprava uma quentinha no restaurante da esquina e subia para a residência no sétimo andar. Tomava banho, vestia o roupão, comia, tomava um copo d’água e ia para a janela bisbilhotar os moradores do Grande Hotel Lancaster – um prédio de doze andares muito antigo situado do outro lado da rua. O edifício estava condenado, mas, sabe-se lá por qual razão, todas as tentativas de implosão tinham acabado em tragédia, em menor ou maior proporção. Da última vez (e isso fazia uns três meses), os operários estavam instalando os explosivos na base da construção quando um deles foi para os ares, a carga de dinamites misteriosamente detonou na mão do especialista e, o mais curioso, apenas o profissional fragmentou-se como uma pedra de gelo atingida por um martelo. Do prédio mesmo, não caiu nem mesmo uma lasca de reboco. Como o imóvel não queria ser demolido, uns doidos começaram a usá-lo como moradia, às escondidas. Talvez não fossem realmente doidos, apenas excêntricos – assim pensava Simão –, já que ninguém ousava aparecer na rua durante o dia. A bem da verdade, só algumas janelas brilhavam durante a noite, uns poucos moradores descerravam as cortinas e, parece, não se importavam que Simão Teles espionasse suas intimidades de alcova.

No começo Simão Teles costumava olhar um jovem casal morador no quinto andar e ficava intrigado com a maneira peculiar de eles fazerem sexo. Antes e depois da relação carnal os dois ajoelhavam-se ao lado da cama e pareciam rezar – mas com o passar das noites Simão Teles percebeu que o casal trocou a luz do teto, fluorescente, por lâmpadas que proporcionavam uma claridade soturna, de um roxo-violáceo, e viu também que num móvel escuro de contornos semelhante a um oratório queimavam velas vermelhas e pretas. De pronto perdeu o interesse pela intimidade daquela gente. Havia no sexto andar uma garota lésbica que lhe chamou a atenção pela facilidade com que arranjava parceiras. Ficou fascinado pelo instinto caçador da moradora – até que a flagrou numa suruba com três marmanjos. Aquilo foi a gota d’água, Simão Teles perdeu todo o respeito que nutria por ela. No mais, o que se via em um ou outro apartamento eram coitos simples, papai-e-mamãe, sem nenhum atrativo digno de observação. Exceto no sétimo andar. O casal de meia idade fazia estripulias na cama que era de infantilizar as posições sexuais do livro Kama Sutra. Assim, Simão Teles concentrou suas atenções apenas naquelas duas pessoas.

Agora estava de gancho. Simão Teles deixou o gabinete do chefe de secção com uma raiva tão danada que sentia na boca o gosto amargo do fel destilando em seu organismo - além de ficar sem a luneta, teria que se afastar do trabalho, sem sal, é verdade, mas que de qualquer forma ajudava a enganar a miserabilidade da rotina diária. Voltou para sua mesa e estava tão revoltado que ninguém ousou ao menos levantar os olhos para o seu lado. Deixou a repartição como sempre fazia, às cinco da tarde, e aproveitou o restinho do dia para passear pelo calçadão, vistoriando com o olhar atento as óticas e lojas congêneres. Viu algumas lunetas, a maioria era produto de baixíssima qualidade, as de alto padrão estavam acima de suas possibilidades monetárias. Por fim acabou comprando um binóculo ordinário e prometeu a si mesmo que tal coisa seria um paliativo. No findar do mês haveria de entrar no crediário para a aquisição de nova luneta – tão portentosa como a que fora furtada. Comeu um cachorro-quente numa lanchonete e foi ao cinema, assistiu a um filme de ficção científica sobre a dominação da humanidade por robôs, saiu de lá por volta das onze da noite e rumou para casa – aquela era a hora de testar a funcionalidade do seu novo brinquedinho, se bem que não estava botando fé naquele binóculo tão mixuruca.

Ao chegar ao prédio o porteiro da noite deixou por breve momento a leitura do livrinho de faroeste e entregou a Simão Teles um curioso envelope roxo com seu nome escrito em letras góticas.

– Quem deixou isso? – perguntou Simão ao porteiro.

– Sei lá, eu fui ao banheiro, quando voltei o envelope tava em cima do balcão.

Simão Teles subiu para o apartamento com a cabeça atordoada. Ninguém nunca, jamais, lhe escrevera uma linha sequer – e a sua primeira correspondência era aquilo, um envelope macabro. Sentou-se à mesa da cozinha, abriu o envelope e tirou uma folha de papel amarelo. Havia só uma frase escrita com tinta dourada: “Oi, querido, nós te convidamos para vir nos conhecer pessoalmente.” Não havia assinatura, mas Simão Teles sabia que os remetentes moravam no Grande Hotel Lancaster. Desembrulhou o binóculo e foi para a janela, assim que posicionou o instrumento todas as janelas se iluminaram como se o edifício fosse uma árvore de Natal. Fascinado, Simão Teles constatou que as cortinas estavam abertas. O binóculo era fantástico, muito melhor que a luneta, podia ver cada detalhe do pessoal esquisito. E o que constatou, com espanto, é que todos estavam usando trajes a rigor. As mulheres cobriam-se de vestidos de zemberlines, tafetás de seda, shantungs, georgettes e jacquards – uns vestidos com decotes mostrando grandes porções de bustos graciosos cobertos com jóias de muitos matizes cintilando numa disputa feroz com a claridade ofuscante dos apartamentos. Os homens trajavam smokings, as exceções eram um militar com a farda carregada de medalhas e um outro indivíduo com um uniforme engraçado, principalmente por causa do chapéu de três pontas que lembrava Napoleão Bonaparte. Apesar de sua sala estar mergulhada na escuridão, Simão Teles concluiu que os indivíduos do edifício de alguma maneira não só tinham conhecimento que estavam sendo observados naquele minuto, como tinham atitudes do mais puro exibicionismo. No quinto andar uma loura alta, muito alta, ergueu uma taça de champanhe em sua direção, um sorriso magnífico no rosto de linhas harmoniosas, perfeitas. Fascinado, Simão Teles ficou muito tempo analisando-a, mentalmente fantasiando que acariciava aqueles cabelos dourados que lhe caíam pelas costas em graciosas ondas – em suaves cascatas, diria alguém com espírito poético. Ela mandou um beijinho com a ponta dos dedos unidos, depois pegou o celular e, ainda olhando-o, teclou. O seu telefone fixo na sala estridulou. Simão Teles ficou confuso, cheio de perguntas para si mesmo: como ela sabia o seu número? Porque só podia ser ela fazendo a ligação, ninguém jamais tentou falar com Simão Teles naquele telefone e, é claro, o aparelho já estava instalado quando ele alugara o imóvel. Correu atarantado para a mesinha, ao atender suas mãos cobriam-se de gotículas de suores gelados. Antes de abrir a boca, ouviu:

– Olá, meu querido, você não vem?

A voz que chegava ao seu ouvido era absolutamente encantadora, quente, envolvente, sexy e acariciante. Simão Teles engoliu salivas várias vezes antes de perguntar:

– Vocês estão dando uma festa?

– Estamos sim, uma festa de despedida. Antes de raiar o dia estaremos todos de mudança, não é mais possível adiar a implosão desse maravilhoso hotel.

– Vão embora?!

– Nosso Mestre encontrou um castelo magnífico no Sul da França. Está em ruínas, é claro.

– Não façam isso, eu não quero – disse Simão Teles, infantilmente.

– Temos que mudar, querido. Há mais de duzentos anos fazemos isso, não é um inconveniente, muito pelo contrário. É tão bom mudar de ares! E na França agora é outono, você não acha o outono a estação mais linda do ano?

– Prefiro o inverno...

– Oh, que fofinho! Você vem?

– Não tenho traje a rigor...

– Vista o seu terno de formatura.

– Como sabe que ainda tenho meu terno de formatura?

– Meu querido acredite, eu sei de tudo. De tudo!

– Será que o terno ainda me serve?

– Claro que serve! Olha, vou esperar você na recepção do hotel. Por favor, não demore, querido... – A mulher desligou, Simão Teles correu para a janela, posicionou o binóculo – o apartamento estava vazio, todos os apartamentos estavam vazios. Então ouviu o som de valsa, era isso, a festa estava começando. Rapidamente dirigiu-se para o guarda-roupa, retirou o terno escuro de gabardine de quando se formara em Ciências Contábeis, vestiu-o, calçou meias amarelas – não as tinha da cor preta –, o par de sapatos social um tanto empoeirado, uma gravata fina cinzenta, olhou-se no espelho. Estou bem? perguntou-se. Sim, estou ótimo, respondeu baixinho sorrindo para o seu reflexo.

*

O porteiro da noite sentia profunda aversão por Simão Teles, só lhe dirigia a palavra quando era absolutamente necessário. Mas naquele momento, vendo-o de terno e gravata, não resistiu à curiosidade.

– Vai para algum velório? – perguntou.

Simão sorriu – era a primeira vez na vida que o porteiro via o rosto daquele rapaz abestalhado abrir-se num rasgo de alegria.

– Vou a uma festa.

O porteiro largou o livrinho de faroeste aberto em cima do balcão e emparelhou-se a Simão, ambos dirigiram-se para a porta de saída.

– Posso saber onde é o baile? – perguntou assim que chegaram à calçada. Simão Teles apontou a fachada do Grande Hotel Lancaster.

– Ali.

– Só se for pra dançar com fantasmas, o hotel tá completamente abandonado, se duvidar até as baratas e ratos fugiram dali.

– Não está vendo todas as luzes acesas? – estranhou Simão Teles.

–Cara, o que você tem, tá maluco, é? O lugar tá mais escuro que a alma do capeta.

Simão Teles indignou-se, até um cego perceberia aquela explosão de luzes. Achou que o porteiro estava querendo gozar com sua cara. Mas a música, não estaria ouvindo? O som estava bem alto, um som de música orquestral ao vivo, com toda certeza uma orquestra inteirinha estava tocando no salão de bailes do Grande Hotel Lancaster.

– Não está ouvindo a música? Se quer saber, é a Valsa de Fausto, composta por Charles Gounoud.

– Agora estão fazendo valsas pro Faustão?

– Que Faustão?

– Ora, o Faustão, aquele apresentador de programa de tevê.

Simão Teles indignou-se:

– Você não passa do sujeito mais ignorante do mundo. Um completo idiota.

O porteiro da noite, morrendo de rir, ficou plantado na calçada observando Simão Teles atravessar a rua. Então parou de rir ao ver que o esquisitão adentrava o hotel em ruínas. E teve que admitir, Simão Teles era amalucado, é verdade, mas que coragem! Santo Deus, que coragem!

*

O Grande Hotel Lancaster foi demolido no dia seguinte. Simão Teles desapareceu misteriosamente – e não deixou saudades. A única pessoa que lamentou seu sumiço foi o dono do prédio de apartamentos, afinal Simão Teles era um excelente inquilino, sempre pagava o aluguel com trinta dias de antecedência.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 02/02/2014
Código do texto: T4674946
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