O passeio de bicicleta. parte 3

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As cortinas não impediam a entrada dos raios de sol naquele quarto de hospital. A peça não era muito grande e o calor já tornava o ambiente desconfortável. As paredes e lençóis brancos eram uma contradição de um ambiente que em nenhum momento lembrava a paz. Não escutava um ruído sequer, tudo parecia tão tranquilo mas não os pensamentos de Carolina. As revelações de Gabor ainda ecoavam em sua cabeça, mais que a morte de seus amigos. Descobrir que há uma história sombria no passado da pessoa que você mais ama no mundo, pode deixar uma ferida que nunca irá cicatrizar.

Carolina estava em observação já fazia dois dias no Szent János Kórház em Budapest e aguardava receber alta ainda naquele mesma tarde. Todavia não tinha trocado muitas palavras com sua mãe. Não sabia como lhe dizer; “Sei tudo de seu passado, deixou sua filha menor para trás, você é desumana”; “Por que não contou nada? O que mais tem a nos esconder?”; “Papai sabe a esposa que tem dentro de casa?”; “Quem é você?”. Esse era seu lado revoltoso que surgia em situações de profundo constrangimento alheio. Ao mesmo tempo que tinha vontade de pôr tudo pra fora, não tinha forças para fazê-lo como se sua garganta fechasse no momento em que as palavras lutavam pra sair.

Havia jornalistas por toda a entrada do hospital, o caso de Carolina, das meninas e do infeliz ajudante fora um dos crimes mais falados nos últimos meses. Questões como o racismo e a intolerância voltaram a ser capas dos principais jornais europeus. Até onde poderia ir a insanidade humana? O que passava na cabeça de um homem que foi capaz de matar três pessoas inocentes? E porque deixava Carolina, justo Carolina viva? Ninguém sabia responder, exceto uma pessoa, talvez duas. Entrava no quarto, Renan, irmão mais velho de Carolina que assim como, Pedro irmão mais novo e seus pais, haviam vindo do Brasil para acompanhar os fatos de perto.

Renan era alto, 1,90 de altura, pele clara, cabelo escuro e olhos azuis. Tinha uma pequena cicatriz no nariz, devido a um queda de bicicleta quando tinha 5 anos de idade. Era um jovem arquiteto, 3 anos mais velho que Carolina e essa era a segunda vez que saía do Brasil. Apesar do tamanho, era uma pessoa que não metia medo em ninguém, era tão tranquilo e de aparência serena que contagiava qualquer um quase instantaneamente. Era muito apegado a irmã e estava sempre preocupado se estava bem, mesmo muitas vezes lhe tirando do sério com suas implicâncias típicas de irmãos. Ali estava ele, em pé ao lado direito da cama:

- E aí? Preparada pra ir embora? Acho que hoje à tarde tu deve sair. Pelo menos vai voltar mais em forma, não? – Implicou Renan.

- Cale a boca! – Respondeu Carolina com a mesma sutileza de sempre com o irmão. – Já confirmaram minha alta? Voltamos hoje pro Brasil?

- O papai falou com o médico e parece que sim, tu não tem nenhuma lesão grave, eles estavam preocupados com o seu rosto, mas papai disse que sempre foi assim mesmo.

- Tá! Chega! Veio aqui pra me infernizar? O que tu quer? – Disse Carolina de cara amarrada.

- Vim ver como tu estava, se precisava algo e pra te perguntar uma coisa. – O rosto de Renan ficou sério. Raras vezes Renan não expressava um leve sorriso facial, quando não o fazia, algo realmente importante vinha.

- Por que aquele maluco não te matou? Estão falando em racismo, mas não faz muito sentido, ele matou uma pessoa do seu próprio país e uma sueca. Além do mais ele se auto denunciou, ligou dizendo onde tu estava antes de se matar, tu sabia disso?

Agora Carolina havia entendido como sua mãe estava lá minutos depois de ter saído daquela casa, uma dúvida a menos das muitas que ainda persistiam:

- Não, não sabia que ele havia se auto denunciado, também não sei porque fui a única deixada viva – mentiu Carolina.

- Ele não falou contigo, nada? Não tenho certeza até onde era uma simples perturbação neural ou uma obsessão contigo.

Carolina gelou. Seus olhos ficaram levemente arregalados com “uma obsessão contigo”. Não queria que ninguém soubesse, principalmente alguém de sua família os reais motivos de ter sido sequestrada. Por sua sorte Renan não lhe olhava nos olhos naquele momento, pois perceberia aflição que lhe surgiu só pelo fato de alguém pensar em algum tipo de obsessão com ela. Fez que ignorou sua dedução e logo perguntou:

- E mamãe? Só a vi ontem, por onde anda?

- Ela estava aqui há pouco. Ela tá bastante ansiosa, louca que tu saia daqui logo para voltarmos pra casa, parentada toda tá te esperando, teus amigos e claro a RBS. Vou te deixar descansando, depois venho te buscar junto com os outros. – Saiu lhe dando antes um beijo no rosto.

Se Carolina nesse momento voltasse no tempo e contasse pra si mesmo o que aconteceria ela nunca acreditaria. A vida lhe mostrava o quão dura e surpreendente ela pode ser, não basta apenas acreditar que as coisas estão indo no caminho certo, porque talvez o caminho aparentemente errado pode ser o certo. E assim tentava pensar. Que se tudo isso foi revelado era porque assim era pra ser, por mais chocante que isso tudo era. Carolina nunca foi muito religiosa, mas sempre acreditou no destino e na força do pensamento, mas infelizmente não temos a capacidade de ler tudo que há nele.

Agora já se podia ouvir um movimento mais aflorado. Uma legião de jornalistas e curiosos se prontificaram para esperar a saída de Carolina do hospital. Era gente do mundo inteiro. Dois cordões de isolamento estavam postos de cada lado da entrada para evitar o tumulto. A entrada, assim como todo o hospital, era de tijolo a vista, lembrava muito a faixada de uma cabana com seu telhado triangular. Era uma construção antiga, mas bem conservada, assim como a maioria na Hungria.

O médico de Carolina lhe deu alta, já estava pronta para ir.

Saiu do quarto e caminhou lentamente em direção a saída daquela ala. Assim que pisou do lado de fora, teve a sensação de que fazia meses sem ver uma árvore ou a grama verde que acompanhava aquele terreno. Um leve vento soprava um cheiro de terra molhada que fez sentir saudade da sua terra natal. Quanto mais se aproximava da saída do hospital mais vozes se podia escutar, queria logo chegar em casa.

Acompanhada pela mãe, pai e seus dois irmãos ela atravessou o portão principal. Uma chuva de microfones jorrava em seu rosto. “Carolina, porque Gabor te sequestrou?”; “Carolina, ele chegou a te violentar sexualmente?”; “O que você fez pra que te deixassem viva?”; “Ele conversou contigo em algum momento?”. Dezenas de perguntas feitas e Carolina ignorava todas enquanto seguia para o carro alugado pelo pai. Em nenhuma momento olhou para os lados, de cabeça baixa entrou naquela BMW calada e permaneceu assim até a chegada ao aeroporto.

Lá não foi diferente. Repórteres e curiosos ali estavam tentando tirar qualquer informação de Carolina. Mal conseguiam andar em direção ao check-in até que vieram seguranças e abriram caminho na marra. Princípio de confusão foi armado com um fotógrafo que aparentemente reclamava de agressão de um daqueles homens enormes de preto. Agora estava perto de deixar aquele país que tantas coisas boas lhe deu também. Não queria sair de lá apenas com o sentimento dos últimos meses, dias. Sentiria falta de sua rotina, de seus amigos e da vida agitada de Budapeste.

Quando já estava passando pelo portão de embarque dois homens lhe abordaram um muito alto, mais alto que Renan, usava uma calça jeans e uma camisa branca de mangas longas e outro de estatura mediana, com seus 1,75 de altura de terno e gravata bordô que logo se apresentaram:

- Boa Tarde dona Materazzi. Me chamo Attila Fodor e este é meu colega Sándor Kiss, somos da Polícia Nacional húngara e não podemos deixar que saia do país antes de lhe fizermos algumas perguntas. – Disse o mais alto, nem um pouco simpático.

- Ela está cansada e o que mais quer é esquecer que tudo isso passou. Por que tem que ser agora, não pode ser por telefone? – Disse Daniela, que pela primeira vez tinha realmente falado diante sua presença.

- Minha senhora, sua filha foi parte de um crime há muitos anos não visto nesse país, o sequestrador tinha fortes ligações com grupos extremistas e isso tem que ser esclarecido.

- Seria melhor ser agora, temos ainda cerca de 20 minutos, não quero minha menina com lembranças deste lugar. Se tem que falar, que fale logo. – Disse Gerardo, pai de Carolina.

- Por favor me acompanhe, não levará mais de 15 minutos. – Disse Attila caminhando para um corredor em direção contrária a área de embarque.

Entraram em uma sala pequena quadriculada. Suas paredes eram de um vidro fosco, aqueles que não se pode identificar quem passa pelo lado de fora. Não havia janelas, nem computadores ou qualquer aparelho tecnológico a vista, apenas uma mesa redonda de madeira, bem diferente das salinhas de interrogatório que imaginava, ou das que havia visto em filmes, mas tinha mais alguém ali. Uma mulher negra de cabelos longos e crespos, que chamou a atenção de Carolina, não aparentava ser húngara. A mulher ali sentada lhe fitava com um ar de compaixão, como se estivesse sentindo tudo que a bela jovem gaúcha havia passado. Mas seu olhar era penetrante como se tentasse ler o que Carolina guardava dentro de si. Attila lhe convidou para sentar-se e foi logo falando:

- Minha jovem, imagino o quão sua cabeça está conturbada e sinto muito você ter vivido o que viveu nesses últimos meses, mas acredito que a Hungria lhe proporcionou coisas boas nesses 2 anos que aqui esteve, estou certo não? – Disse Attila com um tom mais relaxado bem diferente do que lhe havia abordado minutos atrás.

- Com certeza, apesar de tudo, eu adoro esse lugar os húngaros sempre me acolheram muito bem.

- Eu tenho certeza. Permita-me te apresentar Amelie. Amelie é da Interpol e também lhe fará algumas perguntas. Em breve ela lhe explicará a razão de estar nessa sala com nós. O que você provavelmente escutou pelos seus parentes, jornais, televisão, esqueça! Não trabalhamos com suposições, mas com certezas. Xenofobia foi a mídia e pessoas da polícia fora da área investigativa que implantaram. Gábor era um homem insano, sem dúvidas mas dentro dessa insanidade havia lucidez, porque? Porque ele não lhe matou também? – Attila disse com convicção nos olhos, como se soubesse que Carolina sabia os motivos reais. Só não sabia até que ponto ele sabia ou estava jogando verde.

- Eu não faço ideia. Ele se matou bem na minha frente depois de abrir um quarto que eu estava trancada. Não lembro de muita coisa, eu estava dopada quase o tempo todo.

- Ele então não te disse nada? Nada de relevante? – Insistiu Attila.

- Nada não. – Disse Carolina louca pra se livrar daquele interrogatório, não queria dizer nada a eles antes de ter certeza sobre sua mãe e o que Gabor falou.

- Nem que conheceu sua mãe na Argentina? – Disse Amelie com um sotaque forte quase indecifrável.

As palavras de Amelie lhe entraram como uma lâmina em seus ouvidos e nos dois húngaros que a olharam com cara de espanto. A reação foi imediata e por mais que tentasse disfarçar, já era óbvio que lhes havia mentido. Se sentiu uma tola acreditando poder enganar os investigadores. Amelie continuou:

- Não queremos o mal de sua mãe ou de ninguém de sua família, mas apenas ter certeza que tudo isso foi premeditado, que não foi uma simples coincidência.

- Mas quem premedita a própria morte por exemplo? – Perguntou Carolina com as duas mãos sobre a mesa.

- Não temos certeza, por isso precisamos de sua ajuda. O motivo de eu estar aqui é que estamos investigando na Interpol um sujeito inglês chamado William Harold e outras 8 pessoas de diversos países. Tudo começou com um crime em Southampton, uma menina chamada Lucy, filha de Harold, foi assassinada no quintal de sua casa, com um tiro de Sniper. Durante a perícia, a polícia inglesa encontrou no bolso da menina morta um bilhete que tinha uma sigla, QBJU. Além dessa sigla, havia outros 9 nomes escritos nela, incluindo o nome de Gábor. Quando foram investigar perceberam que essas pessoas também haviam perdido seus filhos, em algum tipo de acidente ou assassinato. A polícia desses países, que também não tinha concluído seus casos por falta de informações, chegou a um consenso que a QBJU tivesse algum tipo de ligação com os crimes, embora nada tenha sido comprovado. Então, a Interpol entrou na investigação.

- E por que razão minha mãe estaria envolvida nisso? Pra que precisam da minha ajuda – Perguntou Carolina intrigada.

- Na verdade, havia também um décimo nome, porém foi apagado da lista. Pelo fato de sua mãe ter também tido sua filha assassinada, Júlia, e ter essa ligação com Gábor, pensamos que ela possa ser a décima pessoa.

- Mas não faria sentido, se ela já tinha tido sua filha assassinada, porque tentariam me matar?

- Você não está morta, está? Talvez Gábor tentou lhe passar alguma mensagem. É aí que você entra. Primeiro, confirmar e entender se o que Gábor disse é verdade, segundo, confirmar se sua mãe fazia parte da QBJU. – Disse Amelie mexendo o cabelo com as mãos.

- Entendi, mas essas outras pessoas, também são loucas como Gábor era?

- Não, muito pelo contrário, não há nenhum passado polêmico em suas vidas, nem sequer dos seus familiares e amigos, são pessoas extremamente normais. Gábor era exceção. Carolina, você é única pessoa realmente próxima de um possível membro que pode cooperar conosco e tentar descobrir o que realmente é a QBJU. Se encontrar qualquer vestígio ou dessa relação de sua mãe com Gábor, já será de grande ajuda. Nada que você também não queira saber, não? Especialmente depois de tudo que Gabor lhe revelou – Disse Amelie piscando o olho esquerdo.

- Pelo visto, você sabe tudo que ele me disse. – Disse Carolina pensativa.

- Busque o máximo de informação, qualquer coisa que precise lhe ajudaremos, mas espere que nós lhe contatamos.

- Pelo visto o seu sequestro vai muito além das fronteiras húngaras, acho que não somos de tanta utilidade e caso nos perguntem ainda estamos investigando. – Disse Attila conformado atirando suas anotações sobre a mesa.

- Obrigada, Attila. Quanto a você Carolina, boa viagem e fique atenta. – Disse Amelie lhe estendendo a mão.

Carolina cumprimentou a todos e se retirou da sala. No local de embarque estavam aguardando seus familiares e sua mãe que evitava lhe olhar nos olhos. Gerardo, se aproximou e lhe segurou a mão direita, como se estivesse dizendo que com ele poderia contar. Carolina lhe desferiu um olhar e o ficou observando perguntando a si mesma se ele sabia de alguma coisa que nem ela e seus irmãos desconfiassem. Saberia ele sobre Gábor? E Julia? A menina nascida na Argentina que morreria sem mãe em uma cidade há mais de dez mil quilômetros de distância? Nesse instante aproximou a comissária de bordo para que se acomodassem na aeronave antes dos outros passageiros.

O piloto já manobrava o avião para decolar. Carolina olhava a chuva cair batendo na janela do seu assento. Se sentia cansada, não tanto fisicamente mas mentalmente. Um simples passeio de bicicleta lhe havia tirado uma vida para dar início a outra. Tudo havia mudado. Perguntas sem respostas, acontecimentos sem sentido. Se tudo na vida acontece por uma razão, qual seria essa? Sempre há respostas e essas respostas lhe levariam para perto de uma realidade que honestamente não tinha vontade de conhecer. Assim, fechou os olhos no momento em que o avião partia e sob o olhar de Daniela que lhe observava do outro lado do corredor.

Continua..

Leo Moreira
Enviado por Leo Moreira em 28/01/2014
Código do texto: T4668339
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