A maldição do amor
O dia estava cada vez mais escuro. Claire tinha apenas uma coisa em mente: chegar logo à casa da clareira.
Andava rápido, olhando para trás o tempo todo. Não podia ser descuidada. Os cabelos ruivos se enrolavam nos galhos das árvores ao seu redor, fazendo-a parar algumas vezes. A floresta estava escura e o seu manto negro pesava sobre os ombros.
Avistou a fumaça da chaminé da casa e andou mais rápido, respirando pesadamente.
Andou pelo caminho de pedra que ia da floresta à casa. Quando chegou, bateu à porta, sendo atendida por uma mulher um pouco mais velha que ela, de cabelos escuros, olhos castanhos e expressões duras e doces ao mesmo tempo.
-Achávamos que você não iria vir... Está atrasada, Claire.
-Desculpe. Achei que estava sendo seguida, então mudei o caminho. –disse Claire, entrando na casa.
-Vamos começar agora.
Eram oito mulheres ao todo. Cada uma vestia um vestido longo e escuro, de tecido leve.
-Faremos o ritual para limpeza e proteção, para retirar influências negativas. –disse a mulher dos cabelos escuros, Agnes. Duas garotas sumiram por uma porta e apareceram com os ingredientes do ritual. Claire acendeu os incensos de cedro. Após varrerem toda a casa, espalharam aos pés os ingredientes em cima de um tabuleiro. Viraram-se para o norte, Agnes pegou a tigela contendo sal e também virou-se para o norte, dizendo:
-Invoco a presença do Arcanjo Michael, Guardião do Norte e do elemento terra, Poderoso Michael, Ajuda-me a purificar este local, de toda a influência que não seja benéfica, e a banir todas as energias negativas que aqui se encontram.
As garotas andaram pela sala no sentido dos ponteiros do relógio, lançando pitadinhas de sal em cada um dos cantos, dizendo:
- Com o sal da terra, purifico este local, e daqui retiro todas as energias negativas.
Voltaram para o centro da sala, viraram-se para oeste. Claire pegou o incenso aceso e ergueu-o ao céu enquanto Agnes dizia:
-Invoco a presença do Arcanjo Gabriel. Guardião do leste e do elemento Ar ajuda-me a este local purificar, de toda a influência que não seja benéfica, e a banir todas as energias negativas que aqui se encontram.
Fizeram novamente a volta na sala, parando em cada canto dizendo:
- Com o ar da terra, purifico este local, e daqui retiro todas as energias negativas.
Voltaram para o centro da sala. Agnes ergueu a taça com a água e virou-se para o oeste.
- Invoco a presença do Arcanjo Rafael, Guardião do oeste e do elemento água Poderoso Rafael, Ajuda-me a este local purificar, De toda a influência que não seja benéfica, e a banir todas as energias negativas que aqui se encontram.
Quando terminaram todo o ritual de limpeza, sentaram-se numa grande mesa de madeira clara para comer.
-Agnes, creio que as pessoas estão começando a perceber as coisas. –Claire disse, preocupada.
-Se eles descobrirem arcaremos com as consequências.
-Mas...
-É o que nós temos que fazer.
Claire voltou para casa pelo mesmo caminho que havia usado para ir até a casa da clareira. Devagar, ela olhava tudo ao redor, parando quando via algum animal que chamava-lhe a atenção. Um leve barulho de alguém pisando nas folhas secas a fez parar de andar e ficar atenta. Claire voltou a andar, sem olhar para trás. Alguém a pegou pelo braço e a fez virar-se. Claire teria gritado se não fosse a mão que tampava sua boca.
-Claire, calma. Sou eu, Nathan.
Nathan a abraçou e Claire respirou fundo, tentando se livrar do susto.
Nathan crescera na mesma vila que ela. Ele era filho de um renomado caçador de bruxas, o que o fazia ver pouco a Claire, pois tinha medo de seu pai descobrir sobre ela. Sobre ela ser uma bruxa.
-Vim aqui porque não queria que você voltasse sozinha. É perigoso... -Dizia ele, baixinho.
-Nathan, a Grande Mãe me protege. Não precisa se preocupar.
-Mas e se essa Grande Mãe por um acaso olhar pro outro lado e algo acontecer a você?
Claire observava Nathan tecer suas desculpas para ter vindo buscá-la.
-Nathan. -Claire semicerrou os olhos.
-Sim?
-Porque você simplesmente não diz logo que veio me buscar porque gosta de mim?-Disse ela, sorrindo ao vê-lo ficar envergonhado.
-Você me pegou. Está tão na cara que me apaixonei?
-Nathan... Você sabe o que eu sou, o que eu faço. Por que ainda não preparou uma fogueira?
Ele a pegou pelas mãos e seus olhos se encontraram. Nathan tocou os lábios de Claire, dizendo:
-Eu te amo, Claire. Não sei o que faria se algo acontecesse a você.
A Lua Observava-os, sem dar pista do sofrimento que seria infringido a eles.
Nathan entrou em sua casa, absorto. Pensava em milhares de coisas. Sentia-se estranho por pensar involuntariamente em Claire. Seu pai, sentado na poltrona de peles da casa escura e típica de um caçador, olhava o filho entrar em casa, quieto e estranho.
-Nathan, chegou tarde. -Clemente pensava nas palavras que iria usar para conversar com o filho. Ele sabia que Nathan tinha conhecimento da localização das bruxas do vilarejo.
-Estive andando por aí, pai. Desculpe a demora. -Disse ele, devagar.
-Sente-se Nathan. Tenho algumas coisas para dizer a você, e eu gostaria que você ouvisse e prestasse atenção.
Nathan permaneceu onde estava. Seu pai sabia de algo. Sua mente esvaziou-se para dar lugar ao que viria a seguir. Nathan tinha certeza de qual seria o assunto da conversa.
-Nathan, você deve saber que há muitas bruxas por aqui. Elas estão trazendo medo e trevas para nossa vila. Estou perto de pegá-las, mas há alguém as avisando sobre isso. Elas, recentemente, transformaram um dos aldeões em uma pantera enorme e medonha. Alguém precisa pegá-las. E sou eu quem o fará.
-Ah... Tudo bem, mas por que está me dizendo isso?-Nathan suava frio de medo do que Clemente responderia.
-Você vai me ajudar. -O olhar de Clemente era petrificante.
-Como?-Nathan retribuía o olhar dele.
Clemente riu, levantando-se. Chegou bem perto de Nathan, sentindo o perfume tentador de mulher nas roupas do filho. Perfume de bruxa.
-Você sabe onde elas estão. Quero que me diga tudo.
-Não sei do que está falando, pai. -Nathan trincou os dentes.
Clemente, fritando de ódio, deu as costas ao Nathan e sumiu casa adentro. Nathan respirou fundo e fechou os olhos, tremendo.
Clemente atiçava seu cavalo, a fim de cavalgar mais rápido. Era de se esperar que Nathan estivesse escondendo algo. Viu-o com a garota dos cabelos laranja, conversavam de modo íntimo demais. A chuva torrencial e a lama no caminho tornavam a cavalgada difícil.
Parou em frente à pequena casa de madeira escura, tentado olhar pelas janelas. Saltou do cavalo e bateu na porta. Uma mulher, de beleza extremamente notável, abriu-a para ele e o convidou a entrar. Clemente entrou, muito a contra gosto.
-A que devo o prazer da sua visita, Clemente?-Disse Agnes, sorrindo.
-Quero que deixe a garota dos cabelos ruivos longe do Nathan.
-Já ouviu falar de amor? Deixe seu filho se apaixonar, Clemente.
-Apaixonar-se ele pode. Mas por uma bruxa não.
Agnes andou até ele expondo uma expressão de desafio. Clemente recuou até encostar-se à porta, que Agnes trancou.
-Não ouse declarar abertamente quem é bruxa e quem não é. Você nem ao menos sabe o que é uma bruxa ou uma simples conhecedora da natureza. Saia da minha casa e não se aproxime da Claire. Prometo a você que se arrependerá se o fizer. Acha que me conhece, só de ter passado uma única noite comigo? Pode ter a certeza de que não conhece nem mesmo um milésimo do que sou.
Clemente, tomado de pavor, mas não o demonstrando, saiu da casa sem olhar para trás. Ao montar em seu cavalo negro, virou-se para Agnes, parada na porta.
-Se acha esperta demais, não é, Agnes? Veremos se é tão esperta quanto acha.
Lama e folhas molhadas espirraram quando o cavalo saiu em disparada na direção da trilha que o levaria de volta para a vila.
Durante dias, Clemente observou as reuniões das mulheres na casa de Agnes. Sabia que elas praticavam magia lá, mas precisava ver com os próprios olhos para incriminá-las. Nathan se encontrava com Claire sempre que podia, e Clemente sabia disso.
Após ter reunido os demais caçadores, Clemente planejou a captura das mulheres. O vilarejo estava em grande alvoroço com a futura captura das bruxas.
Clemente andava pelos becos, perto da sua casa, perdido em pensamentos. Virou uma esquina que daria em sua casa e parou. Ouvia a voz de Nathan ali perto. Chegou à frente da casa, vendo Nathan e Claire aos beijos. Clemente andou com passos decididos e raivosos até eles, segurando Nathan pelo braço e o obrigando a entrar em casa. Virou-se para Claire e disse raivoso:
-Você, bruxa. Fique longe da minha casa.
Nathan não proferia palavra alguma há dias, desde que seu pai o prendera em casa. Clemente, dotado de planos constituídos de golpes baixos, pôs em ação seu veneno.
-Nathan, filho. Eu entendo que você está apaixonado pela garota ruiva. Entendo mesmo. Mas você tem que me dizer quem são as bruxas. Prometo não machucá-las. Melhor: Juro. Juro que não farei mal a elas. É para o bem delas, pois a população da vila está alvoroçada com isso. Vou mandá-las a outra vila e elas estarão a salvo. E então?
Clemente esperava ansioso por uma resposta positiva. Nathan levantou o olhar, respondendo:
-Se cumprir sua palavra...
-Claro que cumprirei meu filho!-Disse Clemente, sorrindo.
Na orla da floresta, os caçadores esperavam as bruxas chegarem. A morte certa as esperava.
-Peguem-nas e as amarrem. Todas. -Clemente dava as ordens, que eram cumpridas por caçadores capangas seus.
Os homens amarravam as mulheres, que choravam e suplicavam. Apenas Agnes permanecia em silêncio. Clemente fez questão de amarrá-la pessoalmente.
-Posso ter sido pega, Clemente. Mas quem irá perder é você.
Um dos homens passou por eles, arrastando uma das meninas escada abaixo, sob o olhar lacrimejante de Agnes. Havia rastros de sangue pela casa de madeira escura.
Sete fogueiras foram preparadas no centro da vila. As mulheres foram amarradas e ficaram expostas durante uma hora, tempo em que levaram pedradas do povo da vila e agressões dos mais variados tipos.
Clemente observava Nathan quebrar tudo em casa, indignado com a traição vinda do próprio pai.
-VOCÊ MERECE SER AMALDIÇOADO PELOS PIORES DEMÔNIOS QUE O INFERNO ABRIGA!-Gritou Nathan, raivoso.
-Fique tranquilo, Nathan. A sua bruxa eu não achei. Alguém a avisou que eu iria capturá-las.
Nathan, possuído pelo mais puro ódio, empunhava uma espada. Ele correu para perto do pai, tentando acertá-lo com a espada. Clemente esperou ele se aproximar e o segurou pelo pescoço, apertando de modo que nenhum oxigênio passasse pela garganta dele.
-Como acha que me sinto por você ter traído a mim? Como acha que as pessoas me olham na rua sabendo que você anda pecando com uma bruxa? Não é mais meu filho, Nathan. Sua mãe morreu de desgosto por ter parido você.
Clemente o jogou no chão. Nathan permaneceu lá, quieto, com ar cansado e desolado.
-Tenho afazeres. Assim que queimar as malditas criaturas, irei atrás da sua Claire.
Mais lenha era preparada para as fogueiras.
Uma a uma, todas foram queimadas. Claire assistia horrorizada e sua vez não tardaria a chegar.
Nathan olhava-a com pesar, pois sabia que a culpa pela captura das bruxas era sua.
-O que você fez Nathan... -disse Claire, entre lágrimas.
-Eu...
Claire correu até sua casa usando os caminhos mais escuros e escondidos, sempre olhando para trás esperando ser seguida.
Abriu a porta de casa bem devagar e entrou. Um cheiro de pães frescos invadiu-lhe a mente.
Em silêncio, arrumou tudo que era seu dentro de uma bolsa e foi embora, deixando para trás um pequeno bilhete para a mãe:
"Mãe,
Eu não pude mais ficar aqui. Logo eles iriam achar algo suspeito e me queimariam numa fogueira.
Talvez eu volte.
Claire.”
Quando se encontrava perto da orla da floresta, um grande incêndio tomou conta da vila. O fogo tomava proporções inimagináveis, tendo começado nas fogueiras das bruxas. O fogo destruía a tudo e todos. "Castigo, malditos", pensou Claire, dando as costas à vila amaldiçoada.
Ao chegar à casa da clareira, acendeu velas para iluminá-la e incensos para perfumá-la. Acendeu a lareira e sentou perto dela. Era outono, e logo o inverno rigoroso chegaria. A luz da Lua entrava pela janela, iluminando o chão de tabuas polidas.
As velas haviam acabado e a lareira apagou-se. Claire continuava sentada em frente a ela, mesmo não tendo fogo algum ali. A casa estava escura e vazia. Claire pensava em todas as mulheres que foram mortas há poucas horas. A única família que a aceitaria. A única família que não a julgaria ser uma aberração.
Sons de cascos podiam ser ouvidos longe da casa. Claire ficou apreensiva. Talvez estivessem vindo buscá-la para queimá-la também. Pegou o atiçador da lareira e escondeu-se atrás da porta. Ouviu o cavalo parar perto da casa e alguém descer dele. Alguns segundos depois alguém abriu a porta e segurou Claire pelos pulsos antes que ela o atingisse com o atiçador.
-Claire, sou eu. Calma. -Nathan a abraçou. Claire desvencilhou-se dele, correndo para o quarto no andar de cima e trancando a porta.
Nathan subiu as escadas escuras em silêncio. Chegou ao quarto onde ela estava escondida e girou a maçaneta, mas a porta não abriu.
-Claire, por favor. Abra. Não farei nada. Prometo. -Nathan falava a verdade.
Claire abriu a porta, empunhando uma espada. Seu vestido longo e vermelho roçava o chão, fazendo um barulho baixo e macio.
-Vamos conversar lá fora, Nathan. Caso eu tenha que matar você, não fará muita sujeira aqui dentro.
Nathan a olhou assustado e obedeceu-a.
Saíram da casa e sentaram-se em algumas folhas secas amontoadas entre as árvores mais próximas da casa.
-Claire, eu sei que tive culpa pelo que aconteceu hoje. Mas foi inevitável. Meu pai disse que, se eu contasse onde estavam ele as mandaria para outra vila, deixando-as vivas.
-E você, claro, acreditou. -Claire comentou, ironicamente.
-Ele é meu pai, e me deu a sua palavra. Achei que pelo menos desta vez ele honraria o que fala. Mas acabei sendo traído por aquele que deveria ficar ao meu lado, me amar... Ele me disse não ser mais meu pai, alegando traição de minha parte.
Ficaram quietos por um tempo. Claire absorvendo as palavras de Nathan, com pesar.
Ele tocou seu rosto, onde lágrimas podiam ser vistas. Beijou-a calidamente, deitando- a nas folhas macias. Claire arranhou o rosto pálido de Nathan, entregando-se devagar, depois passando as mãos pelos cabelos curtos e negros dele.
-Eu te amo, Claire. -Disse Nathan, tomado pelos mais intensos sentimentos.
-Não tenho escolha. Amo você Nathan, mas... -Ele a beijou e a fez calar-se.
Claire murmurava mentalmente uma maldição enquanto fazia amor com Nathan no pequeno monte de folhas secas.
-Quando eu resolver essa bagunça toda eu volto, Claire.
Nathan montou em seu cavalo avermelhado e foi embora, deixando Claire na clareira.
-Sim, Nathan. Quando tudo se resolver. E quando a sua maldição se concretizar. -disse, com os olhos molhados de lágrimas, entrando na casa.
Nathan cavalgava a pouco tempo quando sentiu uma dor aguda em seu peito. Parou o cavalo e respirou profundamente. Ao ver a lua, cheia naquele momento, a dor aumentou. Nathan caiu da sua montaria, contorcendo-se. Em sua mente vieram imagens, lembranças. Claire com os olhos cheios de lágrimas ao ver suas irmãs serem queimadas nas fogueiras; seu pai exultante com a captura de tantas bruxas; o amontoado de folhas secas onde fizera amor com Claire.
Quando já não sentia mais dor alguma, andou até o pequeno lago a poucos metros de onde estava. Inclinou-se para beber um pouco de água e sentiu o coração disparar ao ver o reflexo de um grande lobo no lugar de seu rosto. Olhou para suas mãos transformadas em enormes patas. Nathan gritou desesperado, mas de sua garganta saiu apenas um uivo longo e sofrido.
Claire, do outro lado do lago, observava Nathan em sua forma lupina: um enorme lobo negro, com pêlos brilhantes e uivo penetrante.
-Assim como você, sua linhagem será amaldiçoada, Nathan. A cada Lua Cheia, essa fera dentro de você irá aparecer e não será nada mais do que uma criatura bestial, sendo caçado como minhas irmãs foram. - Claire ajoelhou-se na margem, chorando silenciosamente e jogou uma rosa vermelho sangue no pequeno lago, sendo levada até Nathan pelo vento que a empurrava.
Ele olhou a rosa de cor vermelha como sangue e levantou a cabeça, vendo Claire na margem oposta. Uma lágrima saiu de seus olhos ao ver a origem de sua maldição e prometeu a si mesmo que voltaria mesmo ela tendo-o amaldiçoado.