Tricky vai às compras.
O alfaiate sente-se recompensado com o final de sua obra. Aquele jovem, quase um metro e noventa, era o perfeito modelo para o perfeito terno. Era um modelo jaquetão em risca de giz.
O homenzinho espana um fiapo do ombro de Tricky, ficando na ponta dos pés. Aquele jovem lembrava bastante Gregory Peck. O alfaiate era muito jovem, quando o ator entrou na alfaiataria de seu sogro há cerca de cinqüenta anos atrás.
Como de praxe, o cliente recebia uma sacola com brindes (lenços, gravatas) ao pagar e se despedir de qualquer loja em Saville Road. O homenzinho levou Tricky até a saída. A única coisa que desaprovara era o pequeno rabo de cavalo de cerca de dez centímetros na basta cabeleira, penteada com gel.
A pasquitaneza atrás do balcão, olhava desconfiada para aquele sahib, requintadamente trajado, escolhendo um blazer tweed e calças de veludo. Antes de pagar sem pechinchar, escolheu um boné e saiu dessa loja de roupas usadas, direto para Victoria Station e pegou o trem para Dover. O trem estava no horário e Tricky deveria chegar junto com seu alvo.
- Sei, sei... bloody hell! Sei que na maioria das vezes a vítima é gananciosa e inescrupulosa. Não estou me referindo aqueles que tem uma soma razoável e quer investir... e caí no conto do retorno rápido e triplicado!- Berra a juíza Douglas.
- Mas Mrs. Maple não deveria ter pegado o dinheiro da paróquia, não é?
- E daí, ó burro representante das virtudes? Não vês que uma coisa levou a outra? O caso aqui é a manipulação do homem de bem, que o leva a prisão!
- ... mas ela era a fiel depositária. Por isso que a fiança é tão alta.
- Ou uma coisa ou outra; devido a tua altura o sangue demora a chegar a teu cérebro. Ou só tens cabeça para separar as orelhas! Claro, que Maple tem que ficar presa... até pagar o que pegou!
- O que eu tenho a ver com isso? Quer que eu vá atrás do escroque e peça o dinheiro de volta?
- É.
- O quê?
E agora Tricky se via balançando na cabine do trem para Dover. E de lá, até Calais. Com sorte ele poderia voltar no ferry seguinte. Era a final do torneio de snook e ele não poderia faltar.
Ronny Biggs “passa o radar” pelo lounge. Na ida para Calais a grande maioria estava indo de férias, portanto seria difícil fazer alguém acreditar na mina de diamantes recém aberta à investimento em Lesoto, África do Sul. Os outros passageiros eram executivos de médio escalão. Como aquele janota de rabo de cavalo sentado no bar.
Biggs sabia que se aproximar de gente, como o janota, era encrenca na certa se começasse a falar de investimentos. Este era o território deles.
Enfim embarcam. Ronny aboleta-se numa poltrona do amplo salão do convés principal. Dá uma lenta vasculhada com o olhar pelo ambiente. As coisas permanecem na mesma, inclusive com o janota junto a outros como ele, formando um exército, encostados junto ao bar.
O mundo é cheio de repetições. É na volta das férias, quando as pessoas sabem que gastaram a mais, que elas ficam mais vulneráveis. A eterna repetição.
Tricky passa na frente de Ronny em direção ao convés, fazendo um gesto com a mão significando que a densa fumaça dos fumantes o incomoda e desaparece ao fechar a porta.
Biggs nota que o bar já não está tão cheio e decide tomar uma cerveja.
No caminho de volta Ronny descobre um possível “investidor”. Ele está sentado a uma mesinha. Dois pints de cerveja dividem espaço com um maço de papéis.
“Típico professorzinho que está indo pra França, fazendo pesquisa” – adivinha Ronny. O tal professor está com os cabelos desgrenhados, óculos de grau forte e senta-se desconjuntadamente enquanto lê algo de seus papéis. Um dos copos já esta quase vazio.
- Caro senhor, me permita lhe fazer companhia. Vejo que é um intelectual!
-Bondade sua. Não, não sou nenhum intelectual, apenas um professor...
Biggs apenas finge escutar sua vitima que tem o forte sotaque de Yorkshire. Depois começa a fazer perguntas chaves, aparentemente banais. Em poucos minutos Biggs tem todo o perfil psicológico do professor, inclusive quanto ele pode dispor de dinheiro.
O papo segue por quase meia hora. Biggs tem que convencê-lo antes do ferry atracar. O professor está reticente quanto à proposta daquele simpático senhor. Os olhos azuis dele inspiram confiança e a coisa parece muito segura e lucrativa. É toda esta impressão que Ronny passa ao professor.
- Preciso ir ao banheiro. Na volta lhe trarei uma bebida Mr. Biggs. O que o senhor está bebendo?
- Bitter.
Sempre uma repetição. Ronny sabia, era típico. Eles se afastam para tentar se convencerem que eles próprios estão tomando a decisão certa... e não que estão sendo convencidos. Pelo jeito o professor tinha uma bexiga e tanto, tal qual sua precavida consciência.
Ronny Biggs vê o janota entrar e dirigir-se ao bar. Parece que o ar marinho desalinhou-lhe os cabelos.
Biggs dá um pequeno riso de escárnio. Não devido aos cabelos desarrumados de Tricky, mas pela próxima resposta que ele vai ouvir do professor.
- Concordo! Aqui está seu bitter. - Passaram cinco minutos desde do sorriso de escárnio.
- Muito bem. Vamos até ao convés das bagagens. Lá tem um reservado com mesinha e cadeiras.
Uma vez lá instalados, Ronny abre seu laptop enquanto o professor limpa seus óculos com a própria gravata.
- Já estou conectado ao meu banco. Agora voce digita a soma e sua senha, depositando nesta conta que aparece aqui...tá vendo?
As duas mãos do professor estão juntas em cima da mesa e ele está de frente para Biggs. Como um relâmpago as duas mãos se elevam e envolvem todo o redor que compreende a boca e o nariz de Biggs com uma espécie de fita adesiva!
Ronny não tem a mínima idéia do que está acontecendo nos próximos dois minutos. O professor enquanto o arrasta para trás de uma antepara, o imobiliza prendendo os pulsos com a fita adesiva, e o derruba.
Agora que estão escondidos dos olhos alheios, o professor tira os óculos dele e põe no rosto de Biggs. Este se dá conta que não consegue ver nada devido ao alto grau das lentes.
- Passa a tua senha! Todas elas!
Os olhos de Mr. Biggs estão esbugalhados e lágrimas escorrem deles. Mesmo assim ele balança a cabeça negativamente. O professor tira um saco plástico do bolso e veste a cabeça de Biggs como se fosse uma camisinha. Em segundos o plástico está grudado em todo rosto dele.
O professor tem os joelhos pressionando as pernas e a virilha de Biggs. Com as mãos ele segura os pulsos dele acima de sua cabeça.
Antes que Biggs morra asfixiado, o professor solta o nó do saco.
- Agora escuta, otário! Voce já viu que posso te matar! Enquanto não me dizeres todas tuas senhas eu vou começar quebrando um dedo teu! Depois... o que achas que vou fazer? Quebrar mais outro dedo teu? Não, ledo engano! Está vendo essa caneta aqui? Ela vai entrar direto no teu olho! Vou precisar de teus dedos pra digitar as senhas, né mesmo? Mas...mesmo com alguns dedos quebrados e cego de um olho, dá pra digitar!
Os olhos de Ronny estão arregalados, agora de pavor!
- Bom... vamos parar de brincadeira e falar sério!
Ronny sente uma dor horrível quando aquele professor aloprado pega seu dedo mindinho e lentamente vai torcendo em direção contrária a palma da mão até a falange deslocar-se com um nítido estalo!
Lágrimas, suor e baba escorrem queixo abaixo de Ronny Biggs. O professor se movimenta e senta-se atrás dele, encostando sua virilha nos glúteos dele. Em seguida dá uma tesoura com as pernas em volta da cintura de Biggs, imobilizando-o da cintura para baixo.
Ronny se debate terrorizado quando o professor pega seus cabelos, puxando sua cabeça para trás e lhe tira os óculos. Instintivamente ele fecha os olhos e sente a ponta da caneta encostar-se à pálpebra.
- Se não me der as senhas agora, te mato. Levo teu laptop pra um amigo hacker. Terias morrido em vão. Voce decide; tua a vida ou as senhas. Leva as mãos à boca, se concordas.
O pavor era tanto que Ronny Biggs forneceu tudo, até suas cotas de ações e de investimentos verdadeiros. Uma pequena fortuna que foi toda transferida para uma conta cujo número estava escrito em um guardanapo, que o professor tirou do bolso do blazer.
Meia hora depois, já perto de atracação em Calais, Tricky vê seu alvo andando de um lado pro outro, sangrando e segurando com uma mão a outra. Ele fala com os oficiais e parece que está procurando por alguém.
Por uma fração de segundos seu olhar cruzou com o de Tricky. Alguns curiosos se acercavam dele, outros já se preparavam para que a prancha de desembarque descesse e pisarem à terra.
- Quelque chose à déclarer, Monsieur?
- Apenas este laptop, sir.