UM JUDEU NO NAZISMO (PARTE I)

Ele era judeu. Estava escondido numa espécie de subterrâneo abrigo debaixo do porão de uma antiga casa de conhecidos. E, ao escutar o barulho de passos no chão de madeira, sabendo de quem se tratava, tratou de evitar respirar, pois o mínimo barulho podia equivaler ao seu fim imediato. O palpitante coração se agitava a cada vez, embora estivesse acostumado às freqüentes visitas dos militares nazistas, entabulando falsas conversas com os donos da casa. Não sabia como eles desconfiavam, mas precisava de outro esconderijo, pois logo seria certamente descoberto.

O alfaiate havia lhe prometido documentos falsos dali a três dias. Ainda teria de passar por muita tensão antes de conseguir escapar às tentativas de sondagens dos soldados que, não se sabia o motivo, ainda não haviam feito uma revista na casa toda. O dono do seu provisório alojamento era um grande aristocrata influente na sociedade. Isso explicaria em parte a segurança de seu pequeno casulo. Aliado à prudência de seu benfeitor, tudo estava perfeito. Obviamente “perfeito” no sentido figurado, pois Deus não poderia explicar de onde vinha o desejo do judeu de manter a sobrevivência.

Há cerca de cinco dias, a sua mulher fora estuprada na sua frente, para ser assassinada em seguida. A sua pequena garotinha, de oito anos de idade, levara um tiro na cabeça. Enquanto que os seus pais foram queimados na casa onde viviam, pois trataram de incinerá-la. Tudo pela razão última de tentarem escapar pela fuga irracional de correr. “Que dias eram aqueles?” Pensava o próprio judeu. Sim, o pobre homem nunca imaginaria que, na evolução do século XX, algo assim pudesse acontecer.

A sua vontade de se apoiar na pouca chance de viver ainda se mantinha intacta. Estranhamente, o homem desejava a existência. Talvez seja a única coisa à qual nos agarramos quando não temos mais nada. Mesmo tendo perdido o seu maior amor, ele não fazia questão de morrer. Ainda não conhecia a depressão. Possivelmente por não ter observado a sua perspectiva. Não havia feito a pergunta “o que farei se escapar?”.

Momentos depois se passaram e o silêncio cada vez mais presente. Uma total ausência de barulho causava o maior alvoroço na sua cabeça já tumultuada. E um ruído o faz sobressaltar. Passos apressados e uma súbita pancada. Abriu-se a portinhola de seu abrigo e o judeu dá de cara com o dono da casa, de bigode bem aparado e de aspecto onde se lia um traço de angústia mesclada à misericórdia mais dolorosamente sentida. Uma espécie de arrependimento necessário e contido se expressava em sua testa enrugada.

— Já pode sair daí, I.

— Eles já foram? — O judeu aplicou uma acentuada entonação de receio.

— Sim, não voltarão hoje, mas temo ter más notícias. Vamos ao salão de jantar.

Ao chegarem ao cômodo, o aristocrata narrou toda a conversa que teve com o general B. Ao longo de todas as disposições dela, foi possível notar uma estudada introdução de desconfiança na família dele. De modo que não seria muito prudente mantê-lo por mais nenhum minuto ali dentro. Os soldados ameaçaram indiretamente realizar uma revisão em todas as partes da casa e, em geral, essa atividade raramente se saía mal sucedida. Ao fim de todas as buscas, o anti-semitismo sempre vencia e os pobres judeus eram mandados para campos de concentração e, se apresentassem resistência, receberiam um preciso tiro no meio da testa.

O judeu, abalado com a tal notícia, pois realmente acreditava, embora sem bases, que conseguiria escapar, chora incontrolavelmente e comprova ser verdadeiro adorador da vida que Deus lhe deu, apesar das mais perversas tribulações pelas quais qualquer ser humano possa sofrer. A esposa do aristocrata, vendo-o tão humano, não se contém e chora igualmente.

Entretanto, nada há que se possa fazer. Surge, então, uma ideia por parte do aristocrata, tanto para proveito do judeu quanto a ele mesmo. É certeiro e sem dúvida que há pessoas rondando sua casa, a espera do menor vestígio de suspeita. Dessa maneira, se o judeu for expulso, alguém poderá ligar a sua aparição ao aristocrata, uma vez que aquele saiu de uma propriedade pertencente ao outro. E ambos estariam inevitavelmente em apuros. Assim, a sagacidade do aristocrata permitiu que ele, sabendo de sua semelhança com o judeu, em porte e estatura, lhe emprestasse uma de suas melhores roupas. Apenas um pequeno disfarce no modo de se vestir pode recobrir de refinamento o seu perfil socialmente rebaixado.

Para não despertar suspeitas esperadas, o aristocrata permitiu que a esposa, sempre pronta a agir em função do bem, e ainda sob o efeito emotivo impresso em seu doce coração, saísse ao lado do rapaz bem trajado. O que pensariam os espiões era que se tratava do próprio senhor e sua dama. O judeu e sua acompanhante se dirigiriam ao alfaiate, em busca de proteção e ajuda. Provavelmente, ele, acostumado ao permanente envolvimento no movimento de libertação dos oprimidos pela política de Hitler, em constante perigo, saberia o que fazer. Porém, não se podia medir a velocidade com que o coração bombardeava o temeroso sangue sob o peito do sofrido judeu. A sua vida dependeria dessa empreitada.

Ele foi aprontado conforme o combinado. Estava com a melhor peça de roupa selecionada da variedade de grife dos pertences pessoais do aristocrata. Ao ver-se daquela forma, o judeu se imbuiu de uma nova concepção. O seu interior se inflou de um caráter guerrilheiro, que, inclusive, diminuiu até mesmo o seu evidente nervosismo incontrolável. A sua transformação visual impulsionou a evolução de seu estado de espírito. Como alguém que tinha que vencer, ele partiu com a jovem senhora.

Ao caminhar os primeiros vinte passos e se deparar com um senhor de penetrantes olhos azuis, sua lividez talvez superasse a mais branca folha sem pauta. Ainda assim, se forçou a continuar o extenuante percurso, a beira de um colapso. Suas pernas enfraqueceram e essa languidez foi aliada ao desejo de correr do homem de olhar de efeito perturbador. Entretanto, se conteve e percorreu mais duas quadras sem o terror do primeiro encontro. O crepúsculo ajudava a obscurecer seus característicos traços judeus.

Enfim, após mais alguns encontros de olhares desconfiados, alcançaram uma porta e nela bateram. O judeu estava bastante calmo agora que havia finalizado o macabro passeio. No entanto, ao virar o rosto para o lado esquerdo, quase caiu estatelado. Um grupo de quatro soldados, incluindo um senhor cuja farda carregava inúmeras condecorações militares, encaminhavam-se decisivamente para o lugar onde o judeu se encontrava. O ar de seriedade que eles transmitiam exasperou-o ao ponto de sua ação imediata corresponder ao mais suspeitoso campo de visão daqueles homens. Bater repetidas e desesperadas vezes na porta do alfaiate não foi a melhor ideia do judeu. Para a sua sorte, a porta foi aberta antes que os soldados pudessem admirar o seu rosto, a mais ou menos cinco metros. Nesse ínterim, a esposa do aristocrata já estava a par dos transeuntes ameaçadores que incentivaram a imatura decisão do judeu.

Já dentro da casa, ele tremia como uma vara de bambu. A imagem que os nazistas despertaram não lhe foi nada agradável. O alfaiate tratou de acalmá-lo e disse-lhe que daria um jeito. Dentro de um ou dois minutos, alguém bate energicamente à porta. E o conforto proporcionado pela fala do dono do estabelecimento de roupas (estabelecimento este, já apresentando os sinais de decadência do que um dia tivera glória) apenas entrou na mais definida extinção; tudo aquilo não passava de um jogo estratégico interminável onde o risco aparecia em todas as casas do tabuleiro.

— São os soldados, eu sei. Eu os vi. Eu devo me esconder. — O alfaiate escuta sinceramente horrorizado a voz de um homem assaltado pelo pavor mais fundamentado. E agora? O que fazer? O judeu tremeu. Nenhuma dúvida nublava a ideia fixa de que o fim de sua jornada acabaria em segundos.

Continua...

T Alves
Enviado por T Alves em 01/01/2014
Reeditado em 01/01/2014
Código do texto: T4633094
Classificação de conteúdo: seguro