PASSIONAL

É estranho imaginar aonde os pensamentos nos levam em momentos de crise. Depois do tiro Natalia poderia pensar em muitas coisas: no medo constante, nos planos desfeitos, no relacionamento obsessivo de Humberto e até mesmo nas consequências de tudo aquilo, porem ela só conseguia pensar no funcionamento de um coração.

“O coração pulsa entre 60 a 100 vezes por minuto. A cada batida ele impulsiona sangue para as artérias e recebe pelas veias. No corpo humano há em média 5 litros de sangue e esse sangue percorre 95.000 km de artérias e veias. Pode-se perder no máximo 2 litros de sangue, sem risco de vida. Uma hora o coração para. Quanto tempo levaria?”

Natalia ali parada com as mãos manchadas de sangue só conseguia pensar nisso, nas informações assistidas num documentário da National Geographic na semana passada. Poderia ser cômico. Talvez fosse a forma encontrada por seu cérebro para protegê-la e ajuda-la a manter o controle mesmo após a briga. Ajuda-la a não surtar diante do inevitável: a morte estava chegando e ela era a culpada.

A moça estava parada em estado de choque na sala de sua casa. A casa era o lar e cativeiro que era obrigada a dividir com Humberto, o homem que um dia amou. A arma do crime repousava largada no chão a alguns metros. A poça de sangue aumentava sobre o carpete e parecia lavar tudo, especialmente sua possibilidade de um futuro livre. Não percebeu, nos poucos minutos após o disparo, a onda sonora vinda da rua com a chegada das sirenes. Não reparou que Erika, sua vizinha e mais nova amiga, também estava na sala. Apenas sentiu o toque no seu ombro dolorido e ouviu numa cacofonia quase delirante suas palavras:

_ Não se preocupe Nat. Eles vão leva-lo e você vai ficar bem.

A amiga sabia que mais uma vez ela era a vitima. Isso era reconfortante. Depois disso deixou suas lagrimas caírem e aguardou... Era o seu fim...

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O que se desdobrou em um crime passional começou sem qualquer indicio disso quatro anos antes. Natalia e duas amigas foram à inauguração de uma discoteca e lá conheceu Humberto.

Ele aproximou-se dela e sussurrou que havia algum problema com seus pertences no guarda volumes. Ela ficou intrigada e ele esclareceu com um sorriso: “Não sabem como guardar as asas de uma fada”. Depois arrematou, indicando um copo plástico em sua mão: “Só estou no refrigerante e não fumei nada, mas deve ter algo errado com isso aqui, afinal fadas não existem, portanto você deve ser uma alucinação” – mais um sorriso, o segundo de muitos. Antes do fim da noite já estavam aos beijos e prometendo ligações e reencontros. Nat achou que tinha tirado a sorte grande, Humberto era loiro, lindo, atraente, inteligente, com senso de humor e beijava como nenhum outro. Natalia, apesar de seus 23 anos, ainda esperava um príncipe encantado. Impossivel prever o que o futuro nos reserva...

Em poucas semanas namoravam. Apesar de apaixonada ela começava a incomodar-se com os mistérios dele: jamais falava na família (nem sabia se ele tinha uma), trabalho ou amigos e as vezes ele desaparecia sem qualquer explicação. Possivelmente era uma indicação de que algo estava errado. Ela ignorava os sinais, sempre que ele ressurgia apaixonado e romântico.

Depois de um tempo ele já tinha as chaves da casa e aparecia sem qualquer aviso. A moça não se aborrecia, afinal morava sozinha e era bom ter um homem por perto para dar-lhe segurança e oferecer companhia. Os pais ela tinha deixado no interior de Santa Catarina quando veio para São Paulo tentar a vida como modelo fotográfico. Na realidade já moravam quase juntos, pois Humberto ia e vinha para a casa sem qualquer cerimônia e mesmo se ocupava com alguns dos afazeres da rotina domestica.

Poderia ser perfeito se Natalia não começasse a notar algumas sutis mudanças no comportamento dele, especialmente um excessivo controle do namorado sobre sua vida. Também por isso recusou o primeiro e precoce pedido de casamento dele. “Melhor deixarmos como está”- lembra-se de ter respondido, desvencilhando-se de um compromisso maior.

Natalia prezava a própria liberdade e agora que as coisas começavam a dar certo profissionalmente, já havia fotografado para uma marca de cosméticos, feito um ensaio para um calendário e até sido convidada para participar de um comercial na TV local; enfim, ela não queria ter alguém controlando sua rotina, seus horários e suas amizades como Humberto insistentemente começava a fazer.

Ele dizia que o zelo era excesso de carinho. Ela cedia porque gostava de sentir-se protegida e paparicada. Não queria que ele fosse embora e ficassem dias sem se ver. Não suportava a saudade e o sexo entre eles era quente, ás vezes violento, mas ela não reclamava.

Nat logo percebeu que aceitar certas coisas em troca de pequenas indulgências era um erro. O controle de Humberto crescia de maneira exponencial e chegou ao ápice no dia em que ele a encontrou no shopping com um amigo (Natalia ainda não sabia que estava sendo seguida). O namorado fez um escândalo na praça de alimentação e de pouco adiantou ela argumentar que o ciúme dele era infundado, pois Flavinho era só um amigo e que ainda por cima era gay.

Romperam o compromisso por algumas semanas. Natalia estava cansada e precisava de um tempo para pensar. Humberto voltou um mês depois se dizendo arrependido e que tinha medo de perdê-la por ser órfão e filho único. Reataram sobre algumas condições. Logo essas condições se mostraram insuficientes e mais necessárias.

Humberto passou a ter um comportamento obsessivo e ligava para a namorada diversas vezes no dia sempre perguntando onde ela estava e fazendo o que. Quando eventualmente ela não atendia a uma de suas ligações eles brigavam quando ela retornava pra casa. De inicio apenas discussões, evoluiu para agressões físicas recíprocas.

O primeiro tapa aconteceu no dia em que ela saiu com as amigas usando um vestido vermelho que ele não gostava. O homem tinha sumido mais uma vez. Ela entediada aceitou o convite das amigas para ir a um barzinho que tocava musica ao vivo. Chegando em casa, percebeu que Humberto estava a sua espera. Estava alterado e começou a insultá-la dizendo que com aquele vestido ela parecia uma oferecida. Natalia respondeu aos gritos que era impossível se oferecer para alguém em um vestido como aquele, nem curto, nem decotado, mas principalmente por ser perseguida por ele. Foi o bastante para a raiva dele se transformar em fúria e ela sentir no rosto pela primeira vez o peso da mão do namorado. O rosto ficou dolorido, mas ele sabia bater sem deixar marcas.

As agressões nunca foram denunciadas, mesmo sendo constantes. Não podia recorrer às amigas, elas se afastaram quando Nat deixou de aceitar os convites para saírem. Talvez nem acreditassem, tentativas anteriores de reclamar da relação foram recebidas por elas com ceticismo. Falavam que estava exagerando, afinal o homem era um príncipe e que ela não deveria reclamar da boa sorte. Para elas Humberto fingia muito bem. Exceto por Erika, a vizinha que se mudou para a casa ao lado e ouvia de lá as intermináveis discussões, Natalia não tinha testemunhas de seu sofrimento.

O homem chegou a sair pela manhã algumas vezes e deixá-la trancada dentro da casa sem telefone ou celular.

Um dia chegou alterado pela bebida (ele agora bebia com frequência), surpreendentemente abriu a porta, apesar de ela ter trocado a fechadura e entre xingamentos a estuprou.

Natalia percebeu que chegou ao seu limite e precisava fugir. Comprou com seu cartão de credito uma passagem rodoviária para Navegantes, de lá pegaria outro ônibus até sua cidade. Voltaria para a casa dos pais.

Na véspera da viagem, tentou mostra-se submissa e sedutora apesar da repulsa que sentia por Humberto. O amor tinha se transformado em medo. Seu plano era dopa-lo colocando um sonífero em sua bebida e antes que ele despertasse no dia seguinte ela já teria fugido. Não levaria malas, deixaria tudo para traz.

Humberto fingiu que bebia. Estava ciente dos planos da mulher. Havia instalado no computador dela um vírus e monitorava todas as transações com cartão de credito e páginas visitadas na internet.

Natalia já tinha embarcado no ônibus e respirava um pouco aliviada. Um bloqueio na estrada fez o ônibus parar. Ela foi surpreendida quando um policial entrou, foi até o seu assento e praticamente a arrancou do ônibus a força. Ela tentou gritar, pedir socorro, mas de nada adiantou. O policial dizia para os demais passageiros que ela era uma traficante internacional procurada pela policia. Foi arremessada nos bancos traseiros de uma viatura, algemas prendiam seus pulsos. O policial era Humberto.

Voltaram pra casa. Nesse dia ela apanhou até desmaiar. Quando despertou viu horrorizada que o homem lhe apontava um revolver. Ele repetia como um mantra que ela nunca poderia deixá-lo porque ele a amava e as pessoas que se amam devem permanecer juntas.

O que aconteceu em seguida é uma imagem turva na memória de Natalia. Ela não sabe de onde retirou forças para reagir apesar do corpo todo dolorido. O instinto de sobrevivência a muniu com a coragem necessária e ela avançou sobre seu algoz lutando pela posse da arma.

Em seguida ouviu o disparo...

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Aquele não era o fim que Natalia imaginava. Finalmente sentia-se livre. Caminhava sob o sol radiante da primavera e seus olhos vislumbravam um campo gramado e com muitas flores. Parecia a imagem de um delírio. A moça sentiu que precisava passar ali antes de partir. Sua amiga Erika vinha logo atrás, tinha parado para comprar velas. Estavam num cemitério. Visitavam o tumulo de Humberto.

Seis meses haviam se passado desde a morte. O juiz declarou o veredito no inicio daquela semana. Natalia foi absolvida da acusação. Era inocente e estava livre.

A promotoria tentou argumentar que a vitima não representava risco a vida da ré no momento do disparo fatal e que caso realmente a vitima tivesse intenção de atentar contra a acusada poderia te-lo feito enquanto esta estava desmaiada.

Natalia lembrava-se de como ouviu indignada e enojada o promotor a acusa-la de assassina fria e descrever a Humberto como vitima.

A pericia concluiu que após o primeiro disparo, dado acidentalmente na barriga da vitima enquanto ambos disputavam a posse da arma, a acusada já de posse da arma afastou-se dois metros e disparou o tiro fatal a queima roupa no peito de Humberto. Natalia sequer se lembrava desse segundo tiro, tomada pela emoção do momento bloqueou essa memória.

O promotor disse que a vitima tinha reputação ilibada e era exemplo de bom policial. Humberto era realmente policial, como Natalia soube durante o julgamento. Ele trabalhava infiltrado sob disfarce e era investigador do departamento de narcóticos. Seus sumiços misteriosos, sua habilidade de abrir fechaduras e por ultimo o uniforme e a viatura vinham daí. Esse tipo de emprego era mantido sob sigilo, pelas regras da policia, para não atrapalhar o andamento dos casos investigados.

Foram decisivos para a decisão unanime do júri o depoimento de Flavio Henrique que relatou o descontrole emocional de Humberto na ocasião do escândalo no shopping e claro o testemunho de Erika que contou ser frequente ouvir a briga entre os vizinhos e que no dia da morte ela viu pela janela de sua casa a vizinha ser praticamente arrastada para dentro do imóvel por um policial e que imediatamente ligou para a delegacia para saber se havia algum registro de ocorrência no residência ao lado. Tendo resposta negativa, ela informou o que tinha visto e também telefonou para uma ambulância por já temer o pior. Quando chegaram na casa Humberto já estava morto.

Agora as amigas caminhavam abraçadas subindo a ladeira do cemitério. Não demoraram, apenas deixaram flores e acenderam velas. Natalia precisava pegar as malas na casa e ainda passar na imobiliária para entregar as chaves do imóvel. Estava de mudança.

Sua carreira como modelo fotográfico em São Paulo estava sepultada junto de Humberto. A cobertura da mídia sobre o caso fecharam definitivamente suas possibilidades profissionais.

Horas depois Natalia acenava para a amiga através do vidro do portão de embarque. Seu voo sairia as quinze horas. Voltaria para Santa Catarina para ficar junto de seus pais.(FIM)

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