Morte abençoada
Quando no quarto eu ouvia
Os sinos distantes batendo,
Sabia que a grande paróquia
Havia começado.
Era noite de natal
E todos comemoravam
O nascimento dele...
O nascimento de Cristo.
Aquele no qual
Foi estirado e morto na cruz
Por um julgamento prévio
E mal calculado.
Chovia e fazia frio.
Um dia incomum
Para os verões do Brasil
E também para Rúbia.
Ela se via nos pés da escada
Sentada sob os destroços do incêndio.
Chorava numa angustia fria,
Não emitia sons, nem expressão.
Estava gélida, estupefata,
Não sabia mais sua realidade.
Sua cabeça estava cheia e vazia,
Talvez em um buraco negro imaginário.
Seu pai havia morrido
Perante seus olhos,
Naquele incêndio...
Em nome do senhor.
Aquele senhor da cruz.
Ele prometera servi-lo
Por toda sua vida...
E morte.
E numa visão abençoada
Se via obrigado a abandonar
Toda sua vida física
E ir junto de seu deus espiritual.
E guiado por sua benção,
Estourou a garrafa de seu melhor wisk no chão
E tomou sua hóstia.
Acendeu um cigarro
E sentou em sua cama.
A filha no quarto ao lado
Estranhou o barulho.
“Pai, o que quebrou?”
E ele somente respondeu:
“Quebrei o cadeado do portão do céu...
Finalmente vou encontra-lo”.
Ela estranhou a resposta,
Abriu a porta,
Olhou para o chão
E viu os cacos.
Enquanto ele fumava tranquilamente
Seu último cigarro,
Ela abriu a boca para indagar,
Ele levantou e pediu silêncio.
“Oremos, pois é noite de natal”.
Os dois oraram
De olhos fechados
E calados.
Quando abriram os olhos,
Seu pai tinha uma vela
E escorria uma lágrima
De seu olho direito.
“Filha, vá buscar
A bíblia que está na sala,
Leia o primeiro trecho que encontrar
E dedique-o ao senhor”
Ela obedeceu sem rodeios
E voltou rapidamente
Para mais instruções
De seu sábio e religioso pai.
Quando ela voltou
Havia fogo, chamas grandes
Espalhavam-se pelo chão, cama, escrivaninha...
E por todo corpo de seu pai.
De pavor, ela deixou cair
Seu copo de vidro, que estilhaçou
Ao chegar ao chão,
Junto de seu coração.
O pai não se mexia;
Ela tentou ajuda-lo,
Mas ele gritou que não,
Que era sua salvação.
Então sua frase finalmente
Fez seu sentido.
Entendera o porquê
Abrira os portões do céu.
O senhor resolveu tirá-lo dela
E sem indagações, ele aceitou.
E enquanto pensava, o fogo
Se espalhava mais e mais.
Quando o pai realmente
Caiu morto no chão,
Ela caíra também...
Desmaiada.
O choque e a fumaça
A sufocavam,
Mas foi salva e reanimada
Por uma beata.
Também detenta da vida,
A cruel vida,
Que nos deixa vulneráveis
E frágeis demais.
Via-se em frente a casa,
De pé, fisicamente.
Não sentia suas pernas,
Não sentia nada.
O fogo já havia acabado
E pelos vãos da casinha de madeira
Saía fumaça preta...
E a alma de seu pai.
Ela entrou e sentou aos pés da escada,
Não conseguia se mexer,
Não sabia o que fazer,
Não sabia de mais nada.
Apenas ficou lá e chorou
Por seu pai
E por esse ser imaginário
Que o matou.
Havia cacos pelo chão
E seus olhos se desviaram para eles,
Eram cacos da garrafa do vinho
Que seu pai dera o último gole.
Ela admirou-os,
Apunhalou um belo e grande pedaço
E passou-o carinhosamente
Por sua branca e fria pele.
Que logo depois viera
A se misturar com o vinho de sangue
Que jorrava de seus pulsos,
Em sua precária morte.
E os dois, unidos por essência,
Serviram para a terra,
Para adubo, alimentação de vermes
E nada mais.
Terminando em mais
Um assassinato psicológico
E mais um livro que li...
No abençoado dia de natal.