Retratos e Sombras

Era pintor. Já velho. Nome? Não o sabiam. Não o conheciam. A barba. Longa. Grossa. Alva. Desbotada. As rugas no rosto denunciavam sofreres. Lutas. Que lutas? Que batalhas? Não se sabe. Mas os olhos ainda brilhavam. Azuis. Cintilavam. Diziam que eram como faróis. Falavam que podiam guiar. No escuro. Diziam que podiam mergulhar... Quem? As mulheres? Os homens? As crianças?

Morava longe. Longe dos jovens. Longe da sociedade. Das ruas. Da agitação. Do trânsito. No campo. Nas colinas. Onde os prados verdejam. Onde as rosas cresciam. Soltas. Selvagens. Vivia onde os ventos brincavam. Com os campos. Com as fazendas. Vez ou outra um carro... Vez ou outra uma vaca... Vez ou outra um rumor. Bandidos! Ladrões! Mas nada temia.

Nunca se casara. Dizia que era e vivia feliz. Mas vive só? Sem ninguém? Como? E a resposta espantava. Tenho companhia. Tenho família. Tenho amigos. Tenho quem cuide. Como podia ser? Não havia ninguém. Não ali. Não naquela casa. Não por ali. Não em quilômetros. Quantos? Era fácil esquecer.

Não. Sua campanha eram seus quadros. Suas pinturas. Seus guaches. Óleos. Telas. Canvas. Até folhas de sulfite. Vivia de vendê-los. Mas não vendia todos. Muitos deles forravam sua casa. As pinturas mais bonitas. As mais coloridas. As mais vivas. Tão vivas que as pessoas se espantavam... Todos admiravam seu talento. Imenso. BRAVO! Tinha sido famoso num passado antigo. Tinha sido rico. Tinha tido mulheres. Tinha tido casos. Tinha protagonizado boatos. Escândalos. Tragédias. Uma jovem. Morta pelo marido. Ciumento. Uma garota. Desaparecida. Numa noite escura. Fora achado embriagado. Várias vezes.

Hoje não. Saíra das companhias. Das luzes. Dos holofotes. Antes o silêncio dos prados. Antes o vento nas colinas. Antes passas dias e dias. Com pincel e tintas. Seus quadros. Lindas pinturas! Na sala um piano no escuro. Uma vela. E um homem. Misterioso. A tocá-lo. Não se via seu rosto. Uma jovem. Um lindo rosto. Cabelos negros. Encaracolados. Olhos fechados. Expressão de dor. E uma lágrima. Vermelha. Um único fio descia de seu olho. Esquerdo. Dois jovens garotos. Duas crianças. Brincando na praia. Homens fortes e musculosos. Navegando. Na tempestade. O rosto de um gato. Imensos olhos brilhantes. Gaivotas voando à beira-mar.

Mas nada se comparava à grande pintura. Na sala. Ocupava metade da parede. Era um quarto. Havia uma janela. Borrada. De chuva. O cômodo todo escuro... Uma cortina... E uma mulher. Uma mulher de costas. Via-se apenas a silhueta. Longos cabelos. Castanhos. Crespos. Vestia uma fina camisola. Ao seu lado uma escrivaninha. Um copo. O quadro era em preto e branco. Muitos quadros eram em preto e branco. Mas havia sempre um detalhe em escarlate. Um copo. Uma flor.

As pessoas não gostavam de ir lá. Havia lendas. Histórias. Rumores. O lugar era sombrio. Havia neblina. Frequente. Alguns diziam que já haviam visto pessoas andando na névoa. Que sumiam. De repente...

Outros falavam ter visto rostos. Nas nuvens. Nas águas. No lago ao redor. Nas folhas. Nas pedras. Crianças teriam ouvido vozes. Velhos enxergaram vultos transparentes. Sobre os morros. Mas o que todos temiam era os seus quadros. Suas pinturas.

Um rapaz. Disse que passou pela cerca. Viu-o pintando. Um lobo. E ao caminhar... Pareceu-lhe que o animal movia. A cabeça. Outro... Pensou ter visto um leão. Que... moveu as mandíbulas. Outro... pensou ter visto uma tela onde uma grande cobra enroscava-se num homem. Que seus olhos o fitavam. E então ouviu vozes. Ao longe. Clamando. SOCORRO!

Ainda hoje tinha pesadelos. Mas havia crianças. Falaram que sorriam com os meninos. Passavam a mão nos trigais. Pintados. Uma disse certa vez que uma garota convidou-a para brincar. De boneca. E não teve medo! Antes fosse lá... Não à toa os pais nunca mais a deixaram ir. Para aquelas bandas. Aqueles lados. Aqueles morros. Aquela casa...

Quem seria o pintor? De onde vinha? Como vivia? Vendia telas... Mas quase nunca saía. Não criava nada. Não pescava. Nem plantava. Nem havia postes de luz por perto. Nem geradores. Apenas a natureza. Quase selvagem. A noite orvalhada sobre a grama. Sobre a relva. As poucas árvores. Não era um local feio. Apenas muito ermo. E neblina... Quase diária. Por que morava ali? Fugia? De alguém? Da polícia? Da lei? Do passado? Seria ele a causa dos mistérios? Das aparições? Ou talvez morasse lá por causa disso? Por que sabia? Conhecia? Convivia com outro mundo? Em que fantasmas e espectros apareciam? Será que materializava o seu passado? As suas derrotas? Os seus sonhos? Os seus medos?

Diziam que o homem ao piano era seu pai. Que fora um grande pianista. Que tocava para embalar-lhe. Cansado. Também. Dos holofotes. E luzes. Morrera eu um incêndio. Quem sabe se o pintor quisesse eternizá-lo. Dar-lhe uma homenagem. Póstuma. Talvez a mulher da lágrima fosse sua mãe. Que morrera. Quando ele nasceu. Dera a vida pelo filho. Quem sabe não queria o seu perdão? Poderiam os dois garotos ser seus filhos. Nem sabia mais se eram vivos. Foram dados. Crianças. Por um jovem pai. Desnaturado. Tresloucado. É provável que os pescadores fossem os homens que o salvaram. Em alguma tempestade. Ou que tivesse matado. Um deles. Num além. Distante.

Quem pode dizer se a mulher que ocupara a parede era seu amor. Um amor antigo. Proibido. Quem sabe havia envenenado-se. Na solidão. Ou no arsênico. Abandonada. Por um homem covarde. Imaturo. Quem sabe se o pintor queria uma segunda chance. Talvez quisesse que os quadros o acompanhassem. Que lhe dessem outra oportunidade Quem sabe se tomasse daquela taça vermelha. Se sua amada o visse. Na escuridão do quarto. Estendesse-lhe a mão. E ele a agarrasse. E penetrasse aquele outro mundo. E adentrasse o desconhecido. Dos sonhos. Dos desejos. Dos retratos. E das sombras.

***

Sirenes. Carros. Polícia. Confusão. O artista passara anos sumido. Sua casa fora invadida. Não havia sinal dele. Não havia sangue. Não havia corpo. Carta. Despedida.

- Espere! Olhem para aquilo!

E na parede da sala um novo quadro. Nele estava o velho. Imóvel. Em tela. Óleos e guache. De todos parecia o mais vivo dos quadros. Era o estilo dele. Abraçado. Eternamente. À sua amada.

Ronaldo Thomé
Enviado por Ronaldo Thomé em 13/12/2013
Código do texto: T4609742
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