Brilho de Paz

(Espero que gostem. Se puderem, comentem, por favor.)

Eu estava sendo pressionado pelo passado e naquele momento não sabia o que fazer. Circulava com os olhos a lanchonete da faculdade e o que conseguia sentir era nojo. Garotas conversando sobre nada, passando uma das mãos nos cabelos e sorrindo suavemente para não parecerem chamativas demais, enquanto garotos mentiam sobre suas atividades sexuais do fim de semana agitado. A cena era degradante. Mas mesmo assim eu permanecia ali, sentado numa mesa à margem de tudo, lendo alguns tantos lábios e sorrindo ironicamente para mim mesmo.

Não me importava com nenhum daqueles a minha frente, mas não saber muita coisa a respeito deles me deixou curioso. Então me pus a pensar, a iludir-me com ideias que em matemática simples habitava no campo das possibilidades. Qual seria a chance de alguma alma daquelas atentar contra uma outra? Ou, qual a probabilidade de um dos meus colegas de classe ser ao menos um assassino em potencial? Não consegui resposta. Mas se me lembro bem, pude ver nos olhos de alguns tantos a tormenta e o ódio sendo bem dissimulados sob um brilho refutável. Brilho, esse, que em mim achei desconfortável e me opûs a ele desde então, revelando sem medo o que não podia esconder. Mas no que dizia respeito a eles, aquelas pobres almas em minha frente, era preciso uma cortina que escondesse o que para eles era imoral: o desejo de matar. Não sabendo eles que esse desejo não se esconde e dele também não se foge. Ninguém. É natural:Todos Matam.

Em minha mente consegui ver um jovem de dezenove anos se levantar bruscamente de seu acento e num súbito ataque de raiva toma-lo em suas mãos e com violência atingir o peito do colega. A cadeira era de plástico, e pela limitada resistência, partiu-se em pedaços grandes e pequenos. Os pedaços espalhou-se por todos os lados a medida que o que recebeu o golpe foi jogado com veemência para trás. O agressor então tomou o braço da cadeira, que agora quebrado desenhava uma figura pontiaguda, e abraçou-o fortemente com seus dedos. Era ora de consumar o ato. Então desferiu dois golpes no jovem caído. Um sobre o pescoço, que tirara-lhe a vida, e outro sobre o peito, que depositara no lugar ferido a tormenta e o ódio que havia em si. Depois sentou-se novamente e retomou o assunto de onde havia parado, como se nada tivesse acontecido.

Estava feito.

Então a cena logo foi deixada de lado e em seguida foi iniciada uma outra em minha mente. Estava me divertindo.

Uma jovem de vinte e um anos imersa numa vida nada agitada segurou uma outra pelos cabelos e a jogou sobre as cadeiras da sala de aula. Disse palavras depreciativas com tamanha audácia e sentiu-se incitada a mais. Cogitou a possibilidade de tirar a vida da garota e sorriu por dentro. Então tomou uma caneta de cor vermelha e ainda se deu ao trabalho de tirar a tampa e joga-la de lado. Virou o objeto em sua mão com a ponta para baixo e numa sessão de cravadas perfurou o peito da jovem quase desacordada ao chão com absolutamente dezessete golpes rápidos e frios. Depois retirou a caneta do corpo e a colocou em seu bolso com sutileza. E não estando nada perturbada, saiu da sala com todo o sangue da bela vítima que fizera em suas mãos delicadas de mulher.

Todos matam.

Nesse momento mirei uma Camilla que conhecia de uma aula qualquer e imaginei-a segurando uma caneta vermelha. Seu rosto era delicado e sua voz frágil como um cristal. Seus cabelos eram bem largados sobre as costas e sua alma era quase perceptível. Poderia ser ela? Não duvidei do seu potencial. O anjo mais belo caiu e hoje é o que é. E além do mais, em contrapartida a seu rosto bonito, à sua beleza indiscutível, a jovem não passava de um medíocre ser humano. E por assim ser, sim, podia matar.

Mas logo a cogitação com Camilla se dissipou em minha cabeça. E antes que eu conseguisse dirigir uma terceira cena de morte, vi que meus supostos atores se levantavam de suas cadeiras e caminhavam para suas respectivas salas. Fugiam de mim? Não. Dramaticamente preferi acreditar que fugiam de seus próprios destinos. Mais cedo ou mais tarde teriam que enfrentar seus desejos e cederem, cada um, ao seu. Isso é fato. O desejo insolúvel de matar está com todos. Outro fato incontestável. E o que eu fazia ali, imaginando-os matando, era apenas uma antecipação da realidade iminente de suas vidas. Nada mais. Eu tinha meu desejo e queria o mais rápido possível encontra-lo também nos outros.

Mas já era o bastante para aquele dia.

Então tornei a mim mesmo e curvei um sorriso seco e fugaz. Por mais que fosse um gesto desalmado, senti-me bem com ele. Depois percorri o ambiente com um olhar indiferente e inexpressivo; um olhar normal. Fora outro gesto insensível, mas tinha ciência e não me importei. Percebi que já estava sozinho no pátio da lanchonete e que não tinha mais o que fazer. Então levantei-me e segui uma última pobre alma até à sala 107. Sentia-me muito bem.

****

Segui por um corredor demasiadamente apertado, formado por cadeiras mal dispostas e tão próximas umas as outras que me fez acreditar que foram colocadas propositalmente. O arranjo dispensava uma considerável faixa fazia do lado esquerdo da sala e isso me intrigou. Pensei a respeito a medida que desenvolvia minhas passadas necessariamente habilidosas e precisas. Não pedi licença em nenhum momento. Por fim me sentei na última cadeira da fila, no canto direito da sala. O percurso que fiz me rendeu uma leve infelicidade, mas há não muito iria superá-la.

Eu sou o tipo de aluno calado de canto de sala. Não entabulo conversa com ninguém e mal respondo as poucas palavras que vez ou outra são direcionadas a mim. Se quero conversar, faço-o comigo mesmo. Se quero manter-me em silêncio, transmito tal vontade a todos da forma mais sucinta possível: sempre me calo e esqueço de olhar para os lados. Assim como também o faço ao atravessar uma avenida movimentada.

Em uma única palavra me definiam como antissocial, mas eu nunca concordei. Achava essa palavra genérica demais para se dar a alguém que se necessário fosse – e somente se – conseguiria até sorrir amavelmente para alguém ou, em casos extremos, iniciar amizades e até sairem juntas. Em vez de antissocial preferia um termo menos técnico, talvez antissocial casual. Somente talvez. Mas algo que descobri com o passar do tempo em minha adolescência, e que talvez resuma meu diagnóstico, é que eu desfrutava de uma frieza e sagacidade maestral – e, por favor, falo com toda humildade – que me possibilitava assumir formas diversas. Tantas quantas eu precisasse. Com isso poderia sorrir e ganhar um beijo ou chorar e ganhar dois. Eu escolhia.

Passados vinte minutos de aula e eu já não sabia porque ainda continuava na sala. A professora já não falava para mim e eu evitava mira-la. Tédio. Sua voz era de um agudo irritante e seu rítmo nada regular, mas quando o assunto me agradava conseguia com certa facilidade relevar sua presença repugnante – eu era bom nisso. Mas infelizmente naquele dia com todas as forças ela parecia disposta a chamar a atenção. O assunto era santo mas ela o capeta. Por diversas vezes vociferou um “cala a boca” imponente que me fez perscrutar sua procedência, e muitas outras ainda murmurou algumas obscenidades que em uma situação normal a deixaria avermelhada; se tivesse vergonha. Pensei por alguns minutos o que poderia estar acontecendo com a senhorita da lousa mas os caminhos que trilhei, se revelados nesse papel, desviaria toda a moral do texto. Por isso os omitirei. Mas talvez em uma outra ocasião essa professora por quem tenho grande estima seja mencionada com mais propriedade e zelo…Pensando bem, prometo. Prometo num tempo não distante dizer algo sobre minha professora.

Mirei meu relógio e distingui 10:35. Um estranho do meu lado percebeu o gesto e me indagou as horas. Estendi o braço em sua frente e rapidamente o trouxe de volta. Pus-me indiferente e dei a mínima para isso. Então o estranho logo tornou a perguntar-me. Disse que o relógio estava de cabeça para baixo e que não conseguiu assimilar os números. Considerei a hipótese de discalculia e segundos depois respondi secamente.

– 10: 35.

O estranho deixou escapar um "aném" revelador e em seguida me agradeceu. Achei engraçado seu descontentamento e pensei se por acaso estaria se divertindo com a aula. Depois olhei para o nada e sorri discreto e ironicamente.

Ainda faltava uns 40 minutos para o término da aula quando a Srta. Professora se retirou da sala. Ninguém sabia o que se passara com ela e nem tinha a certeza se por acaso voltaria – e eu esperava que não. Mas por uma simples dedução – não havia levado consigo seus materiais pessoas –, boa parte do número que ali estava rendeu-se à espera crendo que ela voltaria a tempo; eu não tinha o que fazer, então decidi ficar; a outra parte da sala entregou-se à liberdade.

Muitos se questionaram sobre a súbita saída da professora. Alguns juraram tê-la visto chorar e com isso despertaram nos fracos e suscetíves uma preocupação desprezível. Eu os olhei e os praguejei na mente: Malditos vermes que se compadecem de qualquer um. Não acreditava em respeito e nem me interessava por ele; a não ser quando me valia. Se algo de ruim tivesse de fato acontecido com a moça da voz agoniante, sequer me condoeria por ela, quanto mais respeitar seu infortúnio; e talvez, inconscientemente, ela já esperasse isso de mim. Em vez de chorar, de depreciar-me por nada, aproveitei aquele momento, que para mim viera na hora exata, para descansar. Era uma voz chata. Se existisse um ser superior, que presenteava as pessoas, agradeceria-o por aquele grandioso presente que me dera.

Os 20 minutos sem professor passaram rápidos, mas foram bons; pelo menos eu os saboreei com prazer. E quando o ponteiro médio, do minuto, enfim se deitou sobre o 21 – com uma margem de erro de alguns segundos – uma mulher feia entrou na sala e nos deu a notícia:

– A professora pediu para dispensá-los. Não passa bem. Pediu desculpas e disse que na próxima aula ela conversa com vocês sobre o ocorrido.

A mulher foi sucinta e breve. Depois caminhou até à mesa e recolheu os pertences da professora.

Agora era oficial. Os alunos então se levantaram e eu fui o último a sair da sala. Segui até ao pátio da lanchonete e me sentei no mesmo lugar onde alguns minutos antes eu estive. Observei durante um tempo a cena a minha frente e pude ver o movimento de alunos cessando-se aos poucos. Sobrarem somente eu e um outro a alguns muitos metros de mim, calado e inerte, sentado num banco de madeira. Eu o conhecia. Chamava-se Lucas Alencar. Um nome forte, que condizia com seu físico.

Desviei o olhar.

Eu estava ali simplesmente por nada. Assim que saí da sala poderia ter seguido até o ponto de ônibus e tomado o meu. Mas naquele dia não queria ir para casa. Queria ficar ali, estagnado até cansar ou até me expulsarem – o que considerei pouco provável, esse último. Sabia que a renuncia do primeiro ônibus me renderia um outro somente dali a duas horas. Foda-se. Se fosse o caso, estava disposto a ir a pé e trilhar o calvário até em casa. Seria uma longa e penosa caminha, mas talvez tivesse seu lado benéfico.

Cogitei a possibilidade de ir à biblioteca e buscar um título sobre psicologia – não era da área mas me interessava. A ideia pareceu-me bastante razoável mas relutei um tanto. Passar horas lendo não fazia parte do meu plano, que alias não estava sequer definido. Então não posso recusar a leitura, contestei-me propositalmente com veemência. Isso me perturbou. Mas deixei de canto a confusão e tudo se desanuviou; desde que ninguém soubesse, para mim estava tudo bem a covardia de ignorar a perturbação.

Fiz uma breve pesquisa sobre o que então poderia chamar de plano para aquele momento e pousei-me em algo. Senti-me excitado. Um leve sorriso se formou em mim e eu fechei os olhos por alguns segundos. Toquei a palma da minha mão direita com as pontas dos dedos da esquerda e fui arrebatado para o passado. Vi-me com doze anos e de súbito tudo que era claro ficando escuro. A criança chorou novamente e isso me afligiu. Senti-me fraco e de repente estava de volta. Estava de volta e tomado de ira. Assim fiquei.

Então, deti-me novamente em Lucas e dessa vez sem hesitar. Ele ainda continuava na mesma posição: corpo curvado para frente e braços apoiados sobre as pernas. Sem muitas outras alternativas deduzi que esperava alguém; alguém que segundo o tempo devia estar atrasado. Mas mesmo nessa possível circunstância ele continuava paciente e não demonstrava inquietação. Tive que aceitar o fato e o invejei. Se fosse eu em seu lugar, mandaria o tal atrasado para o capeta sem vacilar.

Há uma maldição sobre a vida de uma pessoa que espera um atrasado.

Doía-me olha-lo, mas o fazer era parte do plano. Então, para segui-lo, levantei-me e caminhei em sua direção. Sentei-me ao seu lado sem dizer nada e somente depois entabulei uma conversa forçada.

– Você sabe o que aconteceu com a professora?

Ele disse não secamente.

– Achei estranho. Ela normalmente não é nervosa, mas hoje…não sei – fiz uma pausa. – Quando a vi saindo da sala ela também estava chorando. Saiu rápido, eu sei, mas vi suas expressões e elas não mentiam.

Lucas meneou a cabeça e se virou para mim. Finalmente disse alguma coisa.

– Ouvi dizer que ela tem problemas com a família. Não sei se é verdade, mas é o que dizem.

– Hum, entendi. Dependendo do caso a dou razão.

Ele se calou.

Não sabia nada a respeito do Lucas; nada senão seu nome, mas isso era o de menos. Já estudava com ele a uns 3 meses, desde que entrei na faculdade, no início do ano. Não me interessei por sua história e nem ele por me contá-la. Vivíamos sempre distante. Ele de um lado da sala e eu do outro. Mas não era intencional. Ele tinha uns tantos falsos colegas do lado esquerdo e eu vivia no fundo direito, sozinho. Vivíamos bem.

Mas agora o quadro havia mudado. Eu estava a seu lado e desejava saber sobre sua vida. Precisava descobrir o que é que fosse que tivesse relevância. Queria ler sua história. Folhear as páginas de sua vida e conhecer seus segredos. Quem sabe seja ele, já havia pensado quando ainda estava no maldito banco da maldita lanchonete; e agora já estava decidido. Mas não era tão simples. Nunca foi prudente quem escolheu um e desferir o golpe sem pensar. Não. E não seria eu a fracassar. O que eu teria que fazer era conhecê-lo e me aproximar o bastante para vê-lo cair ao meu lado – sem suspeitas e sem vingança da parte de quem ficasse. Iria até ajuda-lo. E se tivesse tempo, pedir desculpas ironicamente e dizer que “todos matam”.

Seria assim. Mas para isso, primeiro teria que agarrar suas mãos com força e dizer que seriamos amigos até o fim, como numa desprezível cena de filme infantil.

Eu estava preparado para atuar.

Droga de Lucas. Seu verme inútil e ignóbil.

*****

Passada uma semana de palavras intermitentes e informais com Lucas e por fim já conversava cordialmente com ele. Descobri que meu novo amigo não gostava de futebol e tampouco esporte num geral. Era ficcionado por literatura estrangeira e dedicava boa parte do seu tempo a executar esse prazer. Tinha um video game da geração atual mas não se rendia com tanta avidez como quando ainda criança. Na realidade o console servia-lhe apenas de ornamento da estante da sala. Um Playstation desperdiçado, pensei.

Em resumo Lucas era dedicado e estudioso de uma forma severa consigo mesmo. Achei-o exagerado além da conta mas nunca o censurei. Quando lhe perguntei o porquê de ter escolhido o Direito, respondeu que era o curso que lhe suscitaria chances maiores para o que almejava e que se caso não se desse bem com o que queria também era o curso que lhe permitiria escolher dentre muitos caminhos promissores uma segunda e satisfatória opção. Havia coerência e determinação em suas palavras.

Mas quando num dia o questionei sobre justiça, seu semblante se esmoreceu e sua fala pareceu relutante. Lucas se interessava pela força policial e já conhecia bem a mácula do país.

– Por enquanto não sei o que dizer. Prefiro ficar calado – Meneou a cabeça e sorriu sem graça.

Ficar calado é um prelúdio à morte. Eu já estava morto e por isso não me importava. Mas quanto ao Lucas, vivo da melhor forma, achei insensato de sua parte dizer aquela asneira. Mas acreditei que de fato ele tinha algo concreto a dizer sobre a famigerada Justiça do nosso país. Algo que não se interessou em expor naquele momento.

– Mas, e você, o que acha da justiça?

– Acho que começa com “Era uma vez” – Disse eu compenetrado.

Depois levantei-me e me despedi com um “falou” repentino. O gesto o surpreendeu e eu percebi. Então disse que precisava resolver um problema inerente à matrícula e ele aceitou sem questionar. Saí e deixei-o sentado na mesa de canto da lanchonete.

Na manhã seguinte, no intervalo da aula, encontrei-o na sala de estudo. Estava sozinho e tinha na mesa um pilha de livros. Perguntei o que ele fazia – de fato minha pergunta não foi de todo imbecíl – e a resposta veio quando me empurrou sobre a mesa um caderno aberto. Li na página que me apontou o seguinte título: “História do Direito”; e em baixo um comunicado que se iniciava com “Trabalho”. Percebi do que se tratava e logo depois me sentei ao seu lado, pousando a mochila numa cadeira vazia.

– O meu já está pronto. Se quiser ajuda…

Lucas agradeceu e disse que estava apenas fazendo umas últimas pesquisas sobre o tema. E acrescentou com um “Está tudo sob controle” coberto de uma falsa convicção. Percebi seu ingênuo ardil mas não deixei transparecer. Apenas balancei a cabeça positivamente para ele.

Esperei o assunto se esvaecer e somente depois comecei outro. Mas antes de expô-lo, inquirí-lhe algo – agora, sim, retórico:

– Posso te fazer uma pergunta?

Ele disse que sim.

– Naquele dia, há quase duas semanas – você esperando alguém no banco de madeira do pátio, próximo à lanchonete –, o que havia com você? Sempre te via alegre e extrovertido, num geral sorrindo à toa, e naquele momento no banco não parecia bem você. Aliás, a partir daquele dia…

Lucas se pôs pensativo por uns segundos. Deixou o livro que lia de lado e depois abriu a boca.

– O que você faz para sentir-se melhor?

A pergunta veio acompanhada de uma expressão sistematicamente consternada em seu rosto. Há muito vinha carregando alguma espécie de dor latente que já não mais conseguia esconder e lhe saltava à pele, deixando à mostra a todos sem muito ter o que fazer. Que Lucas estava mal já havia um tempo, era fato. Mas naquele momento, ouvindo suas palavras e somando-as ao que já sabia, encontrei seu limite. Cri que estava a ponto de desabafar e desoprimir seus sentimentos. Estava prestes a me usar como uma espécie de válvula de escape. Eu já era seu amigo e ele iria usar isso a seu favor.

Pesei minhas palavras. As mais agravantes deixei de canto e as mais convenientes joguei sobre o clima melancólico da mesa. Precisava prosseguir sem hesitar e mostrar que estava do seu lado.

– O sentir-se melhor vem com o tempo. Nada melhor que ele para curarmo-nos. E fazer algo para antecipar nosso alívio é fugir do processo natural.

– Não me venha com essa conversa. Não existe essa de esperar o tempo. Quem o espera? Quem que na hora da dor senta-se numa cadeira e sorri em vez de passar um remédio na ferida? Quem não busca o alívio imediato?

O que eu poderia fazer perante aquele belo e coerente discurso?

Então me rendi.

Ainda naquele banco da lanchonete não sabia que seria tão fácil chegar no ponto em que agora estava. Mas na verdade o mérito não foi meu – dai a César o que é de César. O mérito foi do Lucas – mas digamos que foi seu erro. Baixar a guarda com sentimentalismos não foi nada sensato. Eu esperava que algum dia ele o fizesse, mas não tão prematuramente como o fez. Quem se entrega a uma pessoa em apenas duas semanas de meras conversas? Não, Lucas. Não é assim que se faz! É preciso calar-se e não falar com ninguém. Existe pessoas que só querem o seu mal. Nada mais que seu mal. Querem te ver cair para no fim gargalhar do seu infortúnio. São cruéis e sórdidas da pior forma. Vivem por todo o mundo e são aos montes. Não tem como fugir desses seres. O melhor é não falar com eles.

Queria dizer tais palavras ao Lucas – Mentira! –, mas se o fizesse a insensatez viria agora da minha parte. Não gosto de errar quando o que está em jogo é algo tão sério e promissor, por isso repudiei essa vontade e deliberei uma outra de alguns dias atrás.

Ele está em minha mão.

– Vem comigo! – Levantei-me rapidamente e tomei a mochila. Coloquei-a nas costas.

Lucas recolheu os livros da mesa e os meteu na mochila. Não sabia o que se passava. Me seguiu quando saí.

*****

Fomos para o bloco B e subimos até o segundo andar. No período matutino não havia demasiadas turmas e as que tinham ocupavam somente os blocos C e D, deixando o B desocupado durante toda manhã.

Era bem convidativo aquele pavilhão.

A sala 34 estava completamente em trevas, mas parte delas foram dissipadas quando toquei o interruptor que liberava corrente para as lâmpadas da frente. Agora na penumbra, levemente densa, caminhei até a mesa destinada ao professor e pousei minha mochila ali. Virei-me para o Lucas.

– Você perguntou-me o que eu fazia para sentir-me melhor. Se quer mesmo saber, posso te mostrar.

Lucas continuava sem entender. Seu rosto, na meia sombra, parecia frio, mas na realidade estava demonstrando suspeita e medo.

– Você não confia em mim? – Mirei-o e ele permaneceu calado. – Seu discurso na sala de estudo foi coerente e verdadeiro. Não há quem espere pelo tempo. Eu não o espero e você também não deve. Essa maldita dor que há em você não pode permanecer ai – bati fortemente com a mão na mesa, alterando um pouco o tom de voz para um mais elevado. Depois me acalmei e completei – consumindo suas entranhas e se fortalecendo a cada dia. Me diga qual é o problema e eu te direi a solução. Qualquer que seja ele. – Contornei a mesa e me aproximei dele. Ele deu um passo inconsciente para trás. – Não é assim, Lucas. Você é forte e não precisa recuar. Levanta a cabeça e pense na dor.

Afastei-me dele e me sentei numa cadeira escolhida a dedo. Fiquei de frente para ele. Cruzei as pernas como geralmente as mulheres fazem e não dei a mínima para o gesto. Mirei Lucas novamente e dirigi-lhe um sorriso fechado.

– O que você está fazendo? – Ele perguntou, olhando-me com certa repulsa.

– Ora, estou te esperando. Sou seu padre. Conte-me seu problema – Eu sabia que sua pergunta havia sido de caráter bem mais amplo, mas queria incita-lo a mais e não podia respondê-lo sistematicamente.

– Não brinque, cara.

– Não estou brincando – Disse eu, agora sério.

Lucas se ensimesmou e eu pude vê-lo andar de um lado ao outro, um tanto impaciente. Seu semblante continuava o mesmo, e agora parecia suar. Em determinado momento o vi olhando o relógio mas não percebi sua intenção de sair. Passou a mão na testa novamente. Estava aflito. Por fim começou.

– Não sei o que eu faço. Parece que… – Cortei-o sem hesitar.

– Não quero ouvir. Pode parar. Você acha que sou realmente seu padre? Sacanagem, Lucas – duas risadas. – Olha para mim!

Os olhos de Lucas vidraram e uma súbita raiva minou em suas expressões.

– Seu filho de um puta.

Eu lhe entreguei outro sorriso fechado.

Lucas voou para cima de mim e com um empurrão com as mãos apoiadas sobre meu peito me jogou a uns dois metros para trás; não fiz nada até receber o golpe. Por consequência do ataque rebati em várias cadeiras e por fim caí no chão. Senti minhas costas doerem e um dor aguda em uma parte específica da cabeça. Levei a mão até o local e senti o sangue començar a verter em uma pequena quantidade. Olhei para frente e o meu agressor já estava novamente perto. Pegou-me pela camisa e me forçou a levantar. Não revidei. Jogou-me outra vez e depois uma terceira. Quando fiquei de pé por conta própria, de fato forcei muito para isso, ele já estava perto da porta; ameaçava sair.

– Isso te aliviou? Resolveu seu problema?

Ele se virou para trás e me encontrou agora sentado, novamente com as pernas cruzadas com antes.

Eu continuei.

– Não é o quanto você agride. É quem você agride. Me batendo você não sana seu problema, só arruma outro, você sabe – e isso não é uma ameaça. Se sair por essa porta vai viver dia após dia se perguntando por que me deu ouvidos. Por que ouvi esse louco? – Levantei e troquei passos pesados até à frente da sala, perto da mesa. A cada pergunta que fazia insinuava que era o próprio Lucas a fazê-las. Imitava-o. – Por que não acatei o que os outro me diziam? Por que fui um tolo? Deixei-me ser levado por nada? Deixei-me ser levado por um verme?

Abri a mochila e retirei de um bolso interno um pequeno estojo. Corri o ziper lateral e pousei a caixinha aberta sobre a mesa. Ali havia varias lâminas com cabos que as firmavam com rosca, de forma que quando desenroscada o material cortante se soltava e dava vez a outro.

Lucas continuava me olhando, novamente sem entender.

– Você se importaria se eu tirasse a camisa?

Claro que ele não respondeu.

Colei os braços na lateral do corpo, cuidando para que uma pequena distância ficasse entre um e outro, e deixei o sobretudo cair até o chão. Depois desabotoeu a camisa e fiz o mesmo procedimento.

Os olhos de Lucas de repente refletiram as muitas cicatrizes que havia em meu peito e meus braços; horizontais e verticais, cruzadas e paralelas. Vi-o encará-las e logo desviar o olhar.

– O que é isso?

– São minhas batalhas contra o passado, meu caro – Tomei uma lâmina do estojo e abracei seu cabo com meus dedos direitos. Nada metódico pressionei-a contra meu peito esquerdo e puxei o cabo na horizontal. O corte foi de uns nove centímetros, não muito fundo. O sangue logo minou e escorreu irregular em fios diversos.

– Você é louco? – Lucas se aproximou rapidamente de mim. – Larga isso, cara.

Segurei seu braço e olhei em seus olhos.

– Não. Você não entendeu? Uma dor some mediante outra. Isso é científico e incontestável – empurrei para perto de si o estojo. – Além de ser loucura também é sensato.

Ele não disse nada.

– Você me perguntou o que eu fazia para sentir-me melhor, não foi? Aqui está – Soltei seu braço e desferi outro corte, agora no meu braço direito, sobre aqueles já passados e cicatrizados que ali havia – É simples.

– Você é louco e quer que eu seja?

– Não, meu caro. Eles é que querem que você seja submisso. Eles querem te controlar. Dizem que são seus amigos, dizem que são seus irmãos, dizem que são seus pais, dizem que são seus amores, dizem que são seu tudo quando na verdade mentem e te enganam – Dei dois passos para perto do meu ouvinte. – Eles são voláteis, meu caro. Quando eles precisam, lá está você para ouvi-los chorar. Mas quando você, Lucas, precisa, eles somem. Faço-te as simples perguntas: Seus coleguinhas sabem do seu problema? – Meu sangue continuava a escorrer e eu passei o dedo sobre os fios e os esfreguei, manchando boa parte do meu peito de vermelho. – Seus pais, os seus famosos pais, sabem do seu problema? Seus amores sabem do seu problema? Não. Com certeza nenhum desses sabem. E por quê? Seus coleguinhas não dão a mínima para o Lucas que está na minha frente. Seus amores só querem seus virtudes e virilidades. E seus pais só desejam o seu bem, olha que lindo, mas se você se aproximar e dizer que tem um problema, o que eles dizem? Diz-me você. O único que se interessou pelo seu problema foi eu, o louco como você pensa.

– Você se interessou? Você me esnobou.

– Não, Lucas. Nunca fiz isso – passei a mão entre meus cabelos. – Entenda. Só queria te mostrar que a luta tem que ser somente nossa. Não existe esse negócio de descontar raiva. O seu problema acabou quando me bateu? Não – alonguei o “não” com um tom rouco e convícto – Você pode ter se sentido aliviado, sim, mas se não me ouvisse até o fim, sairia mais culpado que antes.

– Então o que você quer que eu faça?

– Não quero que você faça nada. Estou apenas te apontando o estojo – dei mais um pequeno empurrão na caixinha. – estou apenas te oferecendo a droga. Mas se quiser, posso te ajudar; mas somente se quiser – Soltei a lâmina que tinha na mão e segurei seu punho. Com a outra mão percorri seu braço e me deti no antebraço. Ele não se opôs. Por fim dobrei a manga de sua camisa até o ombro e toquei seu bíceps. Senti sua força – Nossos problemas ficam no sangue. Eu sinto os meus saírem todas as vezes, e queria que você se livrasse dos seus – retirei uma lâmina do estojo. – Posso?

Somente o primeiro corte dói. O segundo nem se sente e o terceiro não se percebe.

*****

Depois do primeiro corte no meu iniciado, veio mais um e depois outros mais. O primeiro foi meu, e os demais dele.

A última vez que o encontrei já não se podia contar suas marcas.

– Isso vicia – Ele me disse.

Eu sorri e lhe convenci a tentar ser mais ousado. Quanto mais sangue melhor. Ele também sorriu e balançou a cabeça positivamente.

Lucas era bonito e corpulento. Era branco e tinha os cabelos castanho-escuros. Tinha 19 anos e morava com a mãe e o irmão. O pai havia se entregado à bebida e num dia fora morto numa briga injusta. Mas por estar bêbado sua morte foi dada como consequência; meramente consequencial. Desde então a família se absteve do álcool, acreditando ser a desgraça da humanidade, mas seus infortúnios continuaram. O irmão de Lucas, com 17 anos, um ano depois do incidente com o pai, fugiu de casa e nunca mais fora visto. Da família Alencar só restara Lucas e a mãe. E este primeiro agora estava prostrado aos pés do vício da mutilação.

– É bom. A cada corte… – Foi a última coisa que o ouvi dizer.

Na manhã do dia 5 de junho a diretora do curso entrou na sala e nos avisou sobre a morte de um colega. Lucas Alencar fora encontrado morto em seu quarto com vários cortes profundos espalhados pelo corpo. A senhora sua mãe não resistiu e desmaiou. Somente depois se recompôs e chamou as autoridades. Não sabia o que dizer e nem o que fazer. Só conseguia despejar sobre as pessoas uma frase comovente: “Agora está acabada minha vida.”.

*****

O que eu poderia ter feito a respeito, senão ir no velório do meu amigo e prestar minhas condolências? Nada, não é? Então estamos de acordo.

Fui e cumprimentei todos com um semblante adequando. Vestia meu sobretudo preto, que combinava com as luvas também pretas, e uma calça escura, jeans. Meus cabelos estavam bagunçados mas não me importei.

Andei pelo ambiente durante um tempo procurando uma mulher e quando a encontrei, abracei-a sistematicamente e chorei algumas palavras.

– Sinto muito por seu filho. Eu era amigo dele – fiz uma pequena pausa. Depois continuei. – Ele falava muito bem da senhora, se isso serve de consolo. Sinto muito.

Soltei-a e me afastei. Fui escondido pela multidão. Depois senti vontade de ir embora e deixei o lugar.

Quando cruzei o portão, fui agarrado pelo braço e jogado contra o muro. Senti a aspereza da textura me arranhar. O ser que me abordou continuou a me pressionar, e já me doía deveras. Quando por fim levantei a cabeça e vi que era um rosto familiar.

– Você, seu desgraçado. O que você fez? – O ser ameaçou um murro mas se conteve. – Todos viram que de repente você começou a andar com o Lucas. E agora…O que você fez? Anda, fala. Seja homem e assuma que você tem algo a ver.

Tirei seus braços de sobre mim e empurrei aquele verme para longe.

– Tenho algo a ver com um suicídio? É, me esqueci, eu matei meu amigo. Seu idiota.

Segui meu caminho sem ao menos temer um novo ataque da parte daquela pobre alma.

Quando cheguei em casa, deitei-me sobre a cama sem sequer tirar as muitas roupas e fechei os olhos. Vi todos os momentos que passei com o Lucas e sorri um tanto contrariado. Não estava tão contente com aquele desfecho. Meu papel fora mínimo. O que tinha em mente para o fim não passava nem perto de um suicídio. Mas quando me deparei com a possibilidade de leva-lo a isso, e por acreditar que talvez eu nunca conseguiria cumprir meu real plano, me entreguei a ideia. Não sabia que poderia de fato acontecer, mas torcia para que sim. Contudo, mesmo agora Lucas estando morto – o que eu queria –, não estava de todo contente. Não fora eu quem o matara.

Peguei no sono e dormi da forma como estava. Acordei somente 20 minutos mais tarde, depois de sonhar com um acontecimento ainda fresco, que me perturbava.

– Aquele desgraçado me paga!

Eu estava nervoso e irado com aquele verme tempestuoso. Conhecia-o da sala mas nunca havia conversado com ele. E como ele agora vem e me faz isso? Como esse trouxa vem e me joga contra a parede como se fosse uma autoridade? Quem é ele? Eu estava completamente tomado por um mau sentimento, e não cabia outro naquela ocasião. Tinha um sórdido desejo dentro de mim. Um desejo que os brilhos dos meus olhos não mais escondiam.

*****

Chamo-me Eddgar Gade, e perdi meu amigo Lucas. Lástima.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 26/11/2013
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