*O UIVO DO SERTÃO*

Tudo o que ele queria era um pouco de chuva. Andava por aquele sertão às cegas. Sem água, sem abrigo, faminto. As roupas, já perdera quase todas. E estava com medo. Muito medo. Fazia três noites que havia fugido. A cidade inteira o perseguiu. A fúria deles deixou marcas em sua pele. Dois ferimentos graves nas costas, um dedo quase decepado e muitos hematomas nos braços e nas pernas. Só pensava em Maria Lucia. Doía-lhe o coração imaginar que nunca mais iria vê-la.

Poucos meses atrás se conheceram numa quermesse. João não era muito de rezar, evitava entrar na paróquia, mas naquele domingo quente o maior evento da cidadela era a tal feirinha da igreja. Lá foi ele com a melhor roupa. Simples, gasta, mas a melhor.

João foi criado pelas irmãs. Eram sete. Ele, o oitavo, nasceu homem. A mãe morreu no parto e o pai matara o avô e depois morreu sem que ninguém conseguisse explicar muito bem como.

Na festa se encantou com a menina que estava em frente à barraca da pipoca. Trocou olhares com Maria Lucia e foi o bastante para se apaixonarem. A festança estava animada. Muita música, comidas e o pai de Maria, o Coronel Salviano, dando discurso. A cidade era praticamente dele.

Depois daquele primeiro encontro João arranjou um jeito de ver Maria todos os domingos na saída da missa. Como era muito pobre não dava conta de levar uma prenda sequer para presenteá-la. Também não tinha coragem de roubar flores que enfeitavam os túmulos do cemitério perto de onde morava. Então levava o sorriso. Toda vez que ela saia, estava ele do lado de fora, de chapéu em punho para cumprimentá-la.

Um dia tomou coragem para convidá-la para um passeio.

- Na próxima semana, então? Perguntou esperançoso.

- Sim, aceito, disse Maria em sussurro. Mas não deixe meu pai ver você ao meu lado. E saiu às pressas sob o olhar firme do pai severo.

João nem acreditou. Maria Lucia, a filha do coronel iria passear com ele. É muita felicidade para um caboclo simples como eu, pensou com seus sapatos velhos. Foi correndo para casa contar a novidade para as irmãs. Nenhuma se deu o trabalho de

ouvir. João não era tão bem quisto como gostaria. Duas das irmãs eram muito doentes. Outras duas já haviam morrido. Uma casou, a outra foi morar na cidade grande e a mais velha cuidava de todos. Não tinham tempo para as conversas de João.

Ansioso, João contava os dias da semana. Nem a lida dura debaixo do sol esmoreceu a vontade que sentia de ver Maria Lucia. E finalmente a sexta-feira chegou. Encontraria a menina na praça, em frente à igreja. Tomou um banho caprichado, vestiu novamente a roupa de domingo e se encheu de coragem. Ensaiava o que dizer enquanto ia ao encontro dela. Ficou sentado esperando seu grande amor. Ela apareceu, acompanhada de uma criada, que logo foi comprar sorvete para todos. Foi a oportunidade que tiveram de ficar sozinhos. Nervosos comentaram futilidades sobre o clima quente e a falta de chuva.

- Maria Lucia, sei que sou simples, mas sou trabalhador, honesto, será que seu pai permite que eu lhe faça a corte, perguntou João.

- Ai meu Deus. Meu pai me mata se souber que encontrei você. De maneira alguma ele vai permitir isso, retrucou a menina.

Mas João não desistiu de Maria. Continuaram os encontros, que logo foram se tornando mais e mais amorosos. Numa sexta-feira, o namoro demorou mais do que o habitual e uma lua cheia, viçosa, gorda e brilhante surgiu no céu para espanto do casal.

- Nossa João, olha que linda, comentou a moça. Foi então que levou o maior susto de sua vida. João estava transfigurado. Deixava de ser aquele homem romântico e apaixonado e aos poucos tomava a forma de um lobisomem de quase dois metros de altura. Maria ficou apavorada. Gritou e saiu correndo. A fera foi para outro lado uivar para a lua que se exibia atrás das nuvens.

Na manhã seguinte metade do gado do coronel amanheceu morto. Havia sangue espalhado por quase todo o sertão. Ninguém conseguia acreditar em tal massacre. Logo começou a caça aos predadores naturais. Homens planejavam emboscadas, fizeram turnos de vigilância, mas nenhum animal apareceu para reivindicar os crimes.

João sabia. Era ele. Ele sabia, mas não podia acreditar. Desde pequeno ele sentia coisas estranhas nas sextas-feiras à noite. Todo o corpo doía, uma constipação tomava conta dele. E quando calhava de ser noite de lua cheia ele tinha os momentos de

esquecimento. Simplesmente apagava e não tinha ideia por onde andava. Quando criança as irmãs trancavam ele no quarto. Sozinho e com medo não entedia o que estava acontecendo e ninguém explicava. Cresceu um adolescente calado e recluso. Até o dia em que conheceu Maria Lucia. E as irmãs não o trancafiavam mais.

Depois de vários dias de tocaia os homens da cidade esqueceram a vigília. Tocaram suas vidas, o coronel fez a limpeza nas terras e seguiu-se a rotina. Maria Lucia estava traumatizada, em pânico.

João tomou coragem e foi visitar a menina. O coronel escorraçou o rapaz da fazenda. Mas ele não se deu por satisfeito. Implorou para a criada entregar a Maria um bilhete que escreveu com os poucos garranchos que aprendera por acaso. Nele dizia: “Perdão. Eu não quis assustar você. Se me ama, encontre-me novamente no mesmo local hoje à noite. Se não aparecer, saberei procurar meu lugar. Com afeto, seu João.”

Maria Lucia foi ao encontro. Abraçaram-se demoradamente e um beijo de amor selou a vida dos dois para sempre. Mas eles não estavam sozinhos. Os jagunços do pai de Maria seguiram a garota. Foi uma briga para Maria ceder e acompanhar os homens do pai dela. Gritou, esperneou, chorou, mas carregaram-na a força. Não podiam machucá-la afinal era a filha do patrão. Quanto ao João, depois de uma boa surra mandaram que corresse sem olhar para trás. E assim ele fez. Mas não foi muito longe. Ficou alguns dias escondido nos arredores da cidade.

Não resistiu a distância e logo estava escalando a janela de Maria. Queria que ela fugisse com ele. Combinaram local e hora. Mas Maria dessa vez não apareceu. João sentiu como se uma faca atravessasse seu coração. Não poderia mais viver. Sem Maria não havia sentido. Saiu em direção ao sol, sem rumo, pronto para morrer.

A noite chegou e sem que se desse conta a lua trouxe novamente as dores para seu corpo. João se transformou. Mesmo a fera sem consciência sabia que o coração dele pertencia a Maria Lucia . Correu em direção à cidade. Desta vez foi flagrado. Logo homens se armaram, mulheres recolheram os filhos e trancaram as casas. Em punho cruzes, crucifixos e água benta.

O monstro se esgueirou felinamente até a janela de Maria Lucia. Soltou um uivo dolorido e alto. Maria abriu a janela e olhou bem firme nos olhos dele. Ficaram se

encarando. A moça com pena daquele ser desamparado, o monstro com medo de machucar a moça. Ela disse:

- João, eu quis ir, mas meu pai me trancou. Agora vai embora, ele vai te matar. E o bicho meio lobo meio homem apenas olhou para baixo, numa meiguice inacreditável. E sumiu nos campos.

A perseguição então começou. Atiravam pedras, toras, davam tiros. As balas não eram de prata, mas feriam o animal. Ele sentiu quando um candelabro da igreja foi arremeçado em suas patas. Foi assim que quase perdeu os dedos. Também sentiu dor quando escorregou e caiu de uma ribanceira. Aliás, tombo que o salvou do pior. Ficou inconsciente camuflado entre folhas.

Quando acordou no outro dia não tinha mais a forma bestial de um lobisomem, mas estava perdido e triste. Não poderia voltar, para o bem dele e de Maria Lucia. Tinha que sumir no mundo. Andou por dias e noites, com fome, sede e suplicando por uma chuva, que nunca chegou.

Anos se passaram. As irmãs de João se foram. O coronel morreu. Maria Lucia casou-se com o filho do prefeito. Um sujeitinho afeminado e bobo. Até hoje Maria pensa em João e toda noite de lua cheia olha de esguelha para a janela. Ao longe sempre escuta um ganido. Alto e triste. O uivo do sertão. FIM

** este texto foi selecionado pelo 8º Prêmio Maximiano Campos de Literatura 2012. fiquei em 4º lugar.