AD AETERNUM - PARTE VIII

MESMO TENDO ABOMINADO A EXPERIÊNCIA de viajar de avião, o imortal deixou a aldeia em direção a Edimburgo e de lá -não sem antes realizar um vultoso depósito na conta da sua mãezinha- embarcou no primeiro voo disponível para Londres (de primeira classe, pois agora seus recursos financeiros haviam aumentado exponencialmente. E, detalhe curioso: viajar na primeira classe era infinitamente melhor do que na classe econômica; tanto que ele quase esqueceu o pavor da primeira experiência. Ainda assim, algo dentro dele gritava contra aquela máquina subversiva; homens não foram feitos para voar! Talvez fosse algum tipo de presságio...), onde se situava a sede da rede de telecomunicações, uma das maiores do mundo, assumidamente governista, credibilidade a toda prova, que havia comprado os direitos da sua história. Empreendeu esta viagem para escapar do prefeito explorador e administrar, ele mesmo, a sua nova, por assim dizer, carreira.

Até então, ainda era possível para ele circular tranquilamente, um cidadão comum, um anônimo; e, se isso era verdade em Humahuaca, onde ele costumava fazer longos trajetos a pé sem ser importunado por quase ninguém; caminhando nas ruas cosmopolitas de Londres, repletas de jovens punks, executivos, madames e policiais desarmados ele era simplesmente invisível, mesmo com seus sapatos novos e seu terno comprado segundo a última tendência da moda argentina. Porém, uma vez transmitida a reportagem e a entrevista (conduzida, registre-se, com maestria pelo âncora da Rede, um belo jovem senhor de cabelos grisalhos, sucesso absoluto entre as donas de casa, não era de se admirar que a Rede fosse líder em audiência) no telejornal das oito da noite, sua história foi transmitida para todos os recantos do globo em cores e imagem digital de altíssima definição; a partir de então, os recantos mais distantes tomaram conhecimento do assombroso fato de que um imortal caminhava entre os homens. E, na pequena Humahuaca, toda a população, devidamente avisada por sua mãe, a quem ele havia informado que apareceria na tevê, descobriu maravilhada e cheia de orgulho que finalmente um filho da terra escrevera o nome da pequenina vila nos anais da História.

A partir da entrevista ele se viu alçado à condição de celebridade instantânea e mundial. No dia seguinte à divulgação da matéria, o hotel no qual ele se hospedara amanheceu cercado por repórteres e curiosos. Todos queriam ver de perto o imortal televisionado na noite anterior. A segurança teve que ser reforçada; policiais evitavam que a turba invadisse as dependências do tradicional estabelecimento. O gerente, homem geralmente afável e cortês ao extremo, não escondia sua contrariedade diante da súbita perturbação da costumeira e renomada tranquilidade da casa; decerto temia que o tumulto incomodasse os demais hóspedes, em sua maioria velhos aristocratas avessos às concentrações populares. O imortal apareceu no saguão, mas o seu advogado (ele não sabia até então, mas a Rede havia contratado um advogado para assessorá-lo nas questões pertinentes ao contrato; as grandes redes, como se sabe, têm larga experiência nesse tipo de assunto, e são bastante ágeis quanto à proteção dos seus interesses) impediu-o de dar qualquer tipo de declaração; se as pessoas quisessem saber mais a seu respeito, bastava que assistissem ao especial de sexta-feira, às nove da noite, horário de Londres, programa imperdível. Entretanto, o advogado não pode fazer nada em relação às fotografias que os repórteres e curiosos insistiam em tirar. Nem quanto aos inevitáveis, inúmeros e insistentes pedidos de autógrafos.

O seu primeiro dia de fama foi o bastante para que ele descobrisse como as celebridades se sentiam ao pisar o mundo dos homens comuns. Andar nas ruas, coisa que ele sempre gostara de fazer, tornou-se um exercício praticamente impossível: as pessoas o abordavam em todos os lugares, o abraçavam, cheias de intimidade e espanto, tiravam fotos com seus celulares de última geração, pediam autógrafos, pediam beijos, pediam dicas de saúde, pediam que compartilhasse com elas o segredo da vida eterna; como isso era, até onde se sabia, impossível, até mesmo porque ele próprio desconhecia o tal segredo -como saber se trazia consigo a imortalidade desde o nascimento, ou se a teria recebido como uma dádiva dos céus em algum momento posterior?-, algumas chegavam a pedir uma pequena contribuição financeira, qualquer coisa servia, era só para ajudar naquele momento difícil, o senhor sabe como é, estou desempregado, a esposa doente lá em casa, coitada...

Atarantado diante do assédio, tomou a única atitude que lhe veio à cabeça: entrou na primeira cabine telefônica que encontrou e ligou para o seu advogado. Queria algum tipo de ajuda, de proteção. O advogado argumentou que o contrato assinado com a Rede não previa esse tipo de assistência, ao que o imortal respondeu que, se era assim, ele não via como evitar o contato com as outras redes e, consequentemente, havia a possibilidade de que algum aspecto da história fosse revelado por uma emissora concorrente. O causídico pensou por um instante, lamentando em seu íntimo o tirocínio do imortal; por fim, perguntou onde ele estava no momento e, após se inteirar do endereço, ordenou que ele aguardasse ali até que os seus novos seguranças chegassem. Satisfeito em saber que agora teria seguranças, o imortal esperou, fingindo estar ainda ao telefone, para evitar ter que atender à pequena multidão que o aguardava ansiosa em volta da cabine vermelha. Poucos minutos depois, dois SUV's blindados estacionaram em frente à cabine, despejando meia dúzia de gigantes de terno preto e caras ferozes, que abriram caminho com facilidade entre as pessoas, se apoderaram do imortal -sob vaias dos fãs decepcionados-, o colocaram dentro da segurança dos veículos e arrancaram a toda velocidade. Naquele primeiro dia, o imortal teve que almoçar no seu quarto de hotel; entretanto, a partir de agora, ele teria a prerrogativa de escolher o restaurante onde quisesse saborear suas refeições. Sem se importar com questões de logística como trânsito ou reservas antecipadas ou casa cheia; a partir de agora, sempre haveria uma mesa disponível para alguém tão importante. Nos primeiros dias, ele, latino-americano e, além do mais, um recluso e solitário quase convicto, estranhou imensamente as atenções e regalias que agora lhe dispensavam. Mas, à medida em que o tempo ia passando, começava a se acostumar com toda aquela movimentação, todo aquele cuidado em torno de si. Mais do que isso: começava a gostar daquilo. Sim, rapidamente ele conheceu as delícias que o dinheiro e a fama podem comprar e, como era de se esperar -pois ele podia até ser imortal mas, ainda assim, era um homem-; rapidamente ele se apegou a estas delícias, a estas prerrogativas das pessoas importantes ou famosas ou endinheiradas ou todas estas coisas ao mesmo tempo, rapidamente passou a refletir em como havia sido possível viver sem toda aquela abundância, e rapidamente ele passou da abstinência à abastança e esqueceu das agruras de sua vida anterior, que já começava a lhe parecer uma remota lembrança, de séculos passados, de vidas passadas. Desejou que sua mamacita estivesse ao seu lado para desfrutar de toda aquela nova vida; telefonou-lhe insistindo que viesse ao seu encontro na Europa, isso é que é vida, a senhora vai adorar, é tudo tão lindo e organizado e farto, sim, a Torre Eiffel é realmente deslumbrante, tem o Louvre, a senhora vai adorar Paris, que nada, meu filho, sou uma pobre vieja ignorante e bruta, pertenço a este chão, a este povo, nunca me acostumaria, você sim, quando puder venha me visitar, traga uma lembrancinha para todos, tenho muita saudade de você filhinho, sim, claro, o dinheiro que mandou foi ótimo, meu Deus do céu!, nunca tinha visto tantas notas juntas, reformei toda a casa, está uma lindeza só, além disso ajudei a todos, sim, estão todos bem, e muito orgulhosos de você, o prefeito até vai dar o seu nome a uma rua, talvez até a praça, imagine!, sim, meu filho, sim, aproveite sua nova vida, você merece, quando puder venha nos visitar, Miss Lolla sente muito sua falta, ela anda bem tristinha, a pobrecita; além disso as moças da cidade estão em polvorosa, imagine, agora todo mundo acha que tem uma filha que é a noiva ideal para casar com você, todas são muito prendadas, trabalhadoras, veja só, todo dia me aparece uma vizinha ou comadre com uma nova pretendente, como se aí na Europa não existissem moças mais inteligentes, mais cultas e enfim, sim, sim, eu sei que você tem seus compromissos, adeus, meu filho, adeus, a mamacita te ama...

paulo marreco
Enviado por paulo marreco em 09/11/2013
Código do texto: T4563914
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