O condutor
Essa chuva de inverno é uma coisa complicada. Pegar a estrada então, nem se fala. Pouco me importo o com o tempo do lado de fora do carro, quando aqui dentro eu coloco rock no útimo volume praticamente. Não vejo nada na minha frente a não ser a chuva batendo no vidro e o reflexo do farol fraco na pista encharcada. Olho para os lados, só vejo o borrão das àrvores da floresta através do vidro embassado. Nenhuma alma viva na estrada.
Agradeço a Deus pelo meu estado de espírito. Sair de uma discussão daquelas, pegar a estrada nessa chuva e ainda por cima não ter sono só podia ser coisa divina mesmo.
Olho para o banco de trás em um relance e vejo as malas molhadas e visivelmente mal arrumadas jogadas de qualquer jeito. Foco minha atenção à estrada novamente quando de repente vejo um forte farol vindo em minha direção. Só deu tempo de abrir bem os olhos. Lembro-me de pensar que fossem sair de meu rosto. Dei meu ultimo suspiro. Foi tudo muito rápido. Quando recobrei a consciência, me vejo razoavelmente preso às ferragens. Apoio a mão sobre o chão barrento e me esforço para levantar. Noto que a minha perna direita não reponde. Sinto algo quente escorrer pelo meu rosto seguida por uma forte dor de cabeça. Engulo a seco. Volto a deitar-me no chão e ponho a mão na cabeça. Sinto nitidamente o meu couro cabeludo soltar-se. Procuro não pensar nisso. Minha vontade de sair dali, daquela chuva e daquele frio que estavam quase me causando uma hipotermia, eram maiores.
Olho ao meu redor e não vejo nada. Não vejo nem mesmo o carro ou o que quer que tenha sido, que colidiu comigo. Penso comigo - ”O motorista deve ter fugido”. Não seria diferente entre muitos casos que já peguei, ainda mais na minha profissão. Na semana passada mesmo, tive que colher os restos mortais de um acidente de estrada onde só restara a cabeça da vítima que havia sido atropelada por um bêbado. Lembro-me do olhar penetrante do que sobrou da cabeça. Impossível de esquecer. É algo que realmente não sai da memória.
Desmaio por um breve momento. Recobro a consciência por um reflexo de tosse. Tento gritar por socorro, mas a única coisa que sai de minha boca é sangue. Busco forças e consigo sair de dentro do carro retorcido. Fico, com muita dificuldade, de pé. Apesar da forte chuva, consigo perceber na estrada, uma marca muito forte de pneu. Fui seguindo no intuito de o motorista da outra condução, ter conseguido desviar e ter colidido mais a frente. Ao andar alguns quilômetros quase caindo, vejo uma sombra vindo no meio da estrada. Forço a vista para tentar ver com mais clareza. Penso em dizer algo, mas nada sai de minha boca a não ser, mais sangue. O vulto se aproxima e antes que eu possa ver, caio de fraqueza ao chão.
- Você está bem? - diz a voz suave da qual eu deduzia que vinha da pessoa que estava caminhando na minha direção.
Não consegui dizer uma palavra sequer. Não conseguia nem olhar para ele ou… ela. Um sono profundo me consumia. Lutava drasticamente contra ele, mas sentia bem lá no fundo, que esse sono profundo acabaria me consumindo. Ouço novamente a voz.
- Veja, tenho algo importante para te dizer. Olhe para mim. Vamos… faça um esforço. Tenho certeza que sabe quem eu sou.
Confesso que nunca tinha ouvido essa voz antes, em toda a minha vida até aquele momento.
- Vamos. Seja forte. Já está acabando.
Forcei a minha vista e senti uma dor horrível no coração seguida de uma pontada na cabeça. Não consigo identificar a pessoa. Mal consigo me manter com os olhos abertos.
Agora eu tentava desesperadamente falar. Senti que a voz veio até a boca e voltou.
- Me reconheceu? Pois bem, vim até aqui ajudá-lo. Me dê a mão.
Tentei estender minha mão mas descobri apenas naquele momento, que estava sem os braços. No mínimo estranho. Lembro-me de usá-los para me apoiar no chão. Tentei levantar e me assustei pelo fato de não conseguir sentir minhas pernas, para ser sincero, nem sabia se ainda as tinha. Olhei ao meu redor e me vi novamente dentro do carro. Me pergunto se de fato eu, em algum momento, havia saído. Olho muito vagamente para a pessoa que me confortava. Aquele olhar, de relance, me era familiar.
- Sabe o que aconteceu?
Sinto a minha visão ficar turva.
- Você estava muito estressado e acabou dormindo ao volante. O tempo e a condição da pista, não te ajudou.
Ouço agora as sirenes dos bombeiros. Não consigo ver mais nada. Está tudo preto. Agora já não escuto mais a voz da pessoa que estava comigo. Ouço alguns bombeiros se aproximarem quando um deles diz:
- Nossa. A coisa aqui foi feia. Será um milagre se sobreviveu alguém.
- Pouco provável. Veja! Tem algo ali. Acho que… acho que é uma cabeça!
Só agora me dei conta de quem era a pessoa que estava comigo esse tempo todo. Reconheceria aquele olhar em qualquer situação. A voz da pessoa, agora me soava familiar, pensando duas vezes. Já a tinha escutado uma única vez antes e... era na minha secretária eletrônica que nunca recebera nenhum recado.
Considerarei-me um milagre de hoje em diante.