Maldito Destino - Parte I

PARTE I

E daí se o risco custar minha vida? É o que me pergunto todos os dias desde aquele sábado angustiante em que arrancaram ele dos meus braços.

***

Me chamam de Ana, o porquê eu não sei. Nunca entendi essa necessidade urgente em nomear tudo, como se uma coisa não existisse se não pudesse ser chamada.

Enfim, meu nome é Ana. Minha idade, eu não sei ao certo. Deve ser algo em torno de 20 a 25 anos, mas não é uma informação que demande importância atualmente, uma vez que basta que o sangue já tenha escorrido pelas pernas das garotas para que possam gerar novos combatentes ou ter seus corpos vendidos no Mercado Negro em troca de pão e leite. Já para os garotos, basta que andem e sejam capazes de segurar firmemente uma arma de sete quilos nos braços. Aqueles que não conseguem, seja por problemas físicos, psicológicos, ou mesmo por serem muito jovens para o combate, também tem seu mérito, uma vez que esses “abençoados” poderão ceder seus corpos para se tornarem bombas humanas capazes de dizimar centenas de bárbaros.

Bárbaros. É assim que os chamamos, mas apenas pela necessidade de nomeá-los, afinal, a barbaridade com que tratamos os nossos não é menos cruel daquela dispendida pelos chamados “Bárbaros”.

Desde pequeninos somos ensinados a odiar os Bárbaros, mas sinceramente não odeio. Como poderia odiar pessoas que desafiam aquelas que nos escravizam? Porque eu os odiaria? Que mal eles poderiam fazer? Matar-nos? Dia após dia somos torturados, estuprados, vendidos, usados, humilhados. Quando sobrevivemos a tudo isso, somos obrigados a ver as pessoas morrendo aos montes ao nosso lado por conta de batalhas sem sentido ou mesmo por inanição.

Eu fui ensinada a odiar os Bárbaros, mas não os odeio. Eles poderiam me proporcionar uma morte rápida e fácil, coisa que eu não espero desse pedaço de inferno onde eu vivo. Daqui eu só espero sofrimento, porque isso é tudo que são capazes de oferecer. Isso, pão e leite.

Observo o litro de leite disposto em cima de minha mesa ao lado de um pequeno saco com dois pedaços de pães. Faz três dias que eles estão ali. O leite exala um cheiro azedo e sua coloração está levemente amarela. Os pães exibem manchas esverdeadas e estão mais sólidos do que deveriam. Desperdiçar comida assim é um crime punível com uma tortura tão intensa que faz nosso dia a dia parecer um conto de fadas, mas eu não me importo. Há três dias eu não me importo.

Desde que aquela criaturinha foi arrancada das minhas entranhas, meu senso de mundo mudou completamente, mas não era assim devia ser. Ele devia ser apenas o meu primeiro pacote. Meu dever era mantê-lo vivo até que desse seus primeiros passos, e então alguém viria, me entregaria um litro de leite e dois pedaços de pão, e levaria o pacote para sempre, de modo que ele pudesse cumprir o seu papel em nossa sociedade atual.

Os pacotes fêmeas tinham apenas um destino: A casa vermelha, onde todas as garotas eram ensinadas a respeitar os homens, oferecer-lhes o corpo, criar novos pacotes até a retirada, e preparar os alimentos e artefatos necessários para os combatentes. As mais belas eram vendidas por um alto preço no Mercado Negro, após uma série de injeções que as impediam de gerar pacotes, pois, segundo o costume, isso as mantinha bonitas por mais tempo. Quando atingem determinada idade e as rugas começam a aparecer, são rapidamente sacrificadas, pois não possuem outra serventia senão dar prazer para aqueles que pagam tanto por elas. As mais feias, chamadas de Feras, também são incapazes de reproduzir, e são largadas nos fortes para que os combatentes possam sanar suas necessidades advindas de seus instintos mais animais, um destino pior que a morte, em minha opinião.

Como não sou tão bonita a ponto de me tornar apenas uma geradora de prazer, e nem tão feia para ser usada como objeto sexual pelos combatentes, destinos que não consigo diferenciar, fui designada para ser uma geradora de pacotes. No entanto, demorei muito para gerar o meu primeiro, e se eu não fosse capaz de fazer isso, meu destino seria o mesmo das Feras.

Mas então os sintomas começaram. Enjoos, falta ou excesso de apetite, cansaço. Meu humor, que nunca foi dos bons, se tornava insuportável. A única coisa que me manteve viva foi a esperança dos proprietários da Casa Vermelha de que eu estivesse esperando um pacote macho, e que ele herdasse minha personalidade. “Imagine que combatente ele será!”, gritava Glória, a plenos pulmões, quando o exame confirmou suas suspeitas. Na realidade sua maior preocupação é com o preço exorbitante que poderá cobrar por aquele pacote.

Não posso negar que fiquei aliviada. Nunca tive sangue frio o suficiente para desejar gerar pacotes fêmeas, sabendo o fim a que se destinam. Não. Hoje em dia é melhor não nascer, se a alternativa for nascer mulher.

Quando o pacote nasceu eu tinha tudo para desprezá-lo como as outras geradoras fazem com os seus, afinal, o modo como ele foi concebido, os meses de tortura até ele ser retirado de dentro de mim e a certeza do que ele se tornaria, já eram motivos suficientes. Mas ver aquela coisinha frágil agarrada ao meu seio, se alimentando com tanto vigor, fez algo despertar em mim. Eu não podia desprezá-lo. Ele não era apenas um pacote. Ele dependia totalmente de mim, e por mais que eu jamais pudesse dizer para ninguém, eu dependia dele. Eu finalmente tinha algo pelo que lutar. Tinha. Porque isso foi tirado de mim há três dias.

[...] Continua.

Débora O A Assumpção
Enviado por Débora O A Assumpção em 08/10/2013
Reeditado em 30/12/2013
Código do texto: T4516876
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.