Onde está o chapéu?
Nicolas jogou a moeda. Havia optado por cara e Lola por coroa. Ele bem que tentou convencê-la a ficar comigo do lado de fora, mas a garota bateu o pé e teimou ao desafiá-lo. A moeda girou no ar pouco antes de voltar a palma de sua mão e anunciar "cara".
- Muito bem, disse ele já arregaçando as mangas ao se dirigir ao portão do casarão, Lola, você fica com Beth, que eu prometo não demorar.
- Nada disso, nós iremos com você! Afirmou ela enquanto me puxava para perto já decidida.
- O combinado não era esse, murmurou Nicolas certamente disposto a irritá-la, aliás, você sabe muito bem que ficamos responsáveis por Beth e não acho que sua mãe vai gostar de saber... Mas antes que continuasse ela o interrompeu:
- Vamos logo com isso, além do mais, qual é o perigo de invadirmos uma casa completamente abandonada?
- Então você não sabe o que dizem sobre ela? O garoto arqueou uma das sobrancelhas resolvido a desafiar novamente os limites de minha irmã.
- Não me venha com essa de “Casa Mal-Assombrada”, vai acabar deixando Beth assustada, ao terminar a frase ela virou os olhos tentando conter o riso.
Percebeu como eu era a desculpa para tudo? Quero dizer, sei que naquele tempo era a criança entre os dois e compreendo que nesses termos eles possam por preocupação querer me poupar de qualquer coisa, mas a verdade é que, do meu ponto de vista, estava mais para a vela que os dois pombinhos pretendiam manipular a seus custos, mesmo que o orgulho de minha irmã tenha falado mais alto.
- Entendi. A “Beth” está com medo, rebateu ironicamente Nicolas.
Foi o que bastou para Lola começar.
- O que você quer dizer com isso?
Voltemos ao início daquela tarde de Halloween, onde a primeira intenção era percorrermos a vizinhança em busca de “Doces ou Travessuras”, como mamãe havia recomendado:
- Lola, preciso que acompanhe sua irmã mais nova, estou muito ocupada e não poderei ir com ela.
- Certo. Mas não usarei fantasia!
Foi no caminho que encontramos Nicolas, uma vez que a casa dele, sendo ao lado da nossa, foi a primeira na estratégia de trajeto. Ele não só me deu doces, como também elogiou minha fantasia de bruxa e se dispôs a nos acompanhar. Eram aproximadamente cinco da tarde quando começou a ventania, o tempo não estava pra lá de bom, algo típico de Outubro por aqui. Mas a questão não é o clima predominante do mês e sim o brisa forte que fez meu chapéu de bruxa, e de pano, voar. Corremos um quarteirão inteiro, até que a ventania passageira diminuiu e ele se enroscou na “trava” de uma das janelas do tal casarão. Nicolas pediu que ficássemos esperando enquanto ele recuperava o chapéu, foi quando minha irmã interveio pela primeira vez.
- Nada... Foi você quem disse. Além do mais, não quero assustar nenhuma de vocês duas, continuou o garoto.
- Pois fique sabendo que eu não tenho medo e tampouco acredito nessa história ridícula e inventada! Exclamou Lola, não gritando, mas enfatizando bem para que lhe fosse claro.
- É o que veremos então, provocou o garoto abrindo o portão a nossa frente enquanto sinalizava passagem para as damas.
Não era completamente dia e nem completamente noite, digamos o cair da tarde. Mas nem por isso a situação seria menos “sinistra”. Ainda ventava bastante e as folhas de outono dançavam pelo gramado de tal forma que realmente pareciam seguir uma sincronia, as árvores por falta delas estavam despidas e a casa, antiga, pode ser que seja do século XIX, ainda que fosse quase toda composta de madeira, tal que dava ruídos aos nossos passos. À essa hora já estávamos explorando os cômodos do local, em parte para descobrir o que desse acesso a janela do objeto procurado, e em parte para matar as nossas curiosidades. O cômodo procurado estaria no andar superior do casarão e foi Nicolas quem decidiu subir as escadas, Lola foi atrás dele e eu atrás dela. O silêncio pairava entre nós assim como nas saletas do imóvel, havia uma certa tensão ali, embora minha irmã e o garoto tentassem se mostrar indiferentes a situação. Enquanto meus olhos caçavam atentos qualquer indício desconhecido, comecei a questionar os boatos que circulavam aquele lugar, o mais conhecido era sobre um velho manicômio. Haviam rumores de pessoas que, como nós, se atreveram a passar do portão, mas dizem que estas nunca mais foram vistas. Não costumava acreditar, ainda que na candura dos 11 anos, só digo porque conveio uma suposição. O silêncio prolongou até ouvirmos um barulho vindo do andar de cima, como se algo tivesse desabado no chão e seguido de um ruído estranho que ecoava à poucos degraus de nós, mas que ainda não era visível. Congelamos com os olhos esbulhados. Era angustiante e se repetiu ainda umas duas ou três vezes, provocando-nos pânico. Depois de alguns minutos estáticos na escada, ouvimos o som diminuir o volume, mas não totalmente. Nicolas, que estava à nossa frente, engoliu seco, eu, agarrada aos braços de minha irmã e esta alarmada atrás dele. Já me via arrependida de ter escolhido aquela fantasia, e principalmente, de ter saído de casa. Estávamos postos para correr dali à qualquer momento. Mas, curiosamente, Nicolas voltou a subir lentamente escada acima, o que ouvíamos poderia ser comparado a um gemido ou algo do tipo, mas fosse o que fosse, nos deixou assombrosamente curiosos. Encorajada por ele, Lola continuou logo atrás, e eu, logicamente, junto dela. Tentávamos nos recompor do breve choque quando alcançamos o segundo andar, o gemido estava cada vez menor aos nossos ouvidos, como se recuasse ao passo que nos aproximávamos. Localizamos o cômodo de onde vinha, que coincidentemente, se alinhava a janela do chapéu procurado. Nicolas se posicionou frente a porta fechada, mas antes de qualquer movimento brusco a porta se abriu primeiro e repentinamente um gato preto de pelos arrepiados roubou minha sacola de doces e fugiu. O animal foi tão rápido que por pouco não me derrubou. A cena inesperada nos deixou boquiaberta, mas podíamos estar de certa forma aliviados pela falsa causa do nosso espanto. Lola e Nicolas zombavam um do outro, quando eu interrompi:
- Onde está o meu chapéu e... quem abriu a janela?
Ambos ficaram sérios e se voltaram para o cômodo da janela aberta, as cortinas dançavam como as folhas de outono no jardim, mas desta vez a medida que balançavam dentro e fora da ventana.
- Foi o gato? Perguntei curiosa.
- Claro que não, Beth. Como ele iria abrir o trinco? Minha irmã, que não perdia uma, virou os olhos, mas depois caiu em si e se fez séria. Parecia pensativa ou até pasma.
Nicolas complementou:
- Então, quem foi?...
O fato da janela ser a única com a trava exterior que retivera o meu chapéu, e que antes de tudo a mantinha trancada, nos fez questionar se o gato ladrão seria mesmo capaz de ter aberto sozinho o trinco ou a trava e dado um fim qualquer no chapéu, o que nos pareceu impossível e espantoso. Saímos dali segundos depois, e ainda verificamos no jardim se o chapéu não teria se soltado da trava e caído no chão, mas nem sinal dele. Confusos, nós voltamos para casa. Carregamos durante o caminho e os anos que se passaram a dúvida que ainda me aflige lembrar:
Onde está o chapéu?...