O peso das cidades.

Se não chove durante alguns dias o ar fica pesado e o nariz entope. Os apartamentos enchem de poeira cinzenta. O céu quase nunca é bonito no inverno. E no verão os dias quentes incomodam, o asfalto se transforma em uma chapa de fritar solas de sapatos. A pele fica grudenta, quase nunca é muito agradável, ou talvez o meu mau humor seja excessivo diante da feiura de algumas esquinas, de várias avenidas, encardidas, indiferentes, retorcidas por sucessivas chuvas, por inúmeros escalda pés solares. Por um vai e vem infinito de pneus e pés indo e vindo como se a cidade fosse povoada por pernas sem vida de acrobatas psicóticos.

Uma cena aqui outra ali às vezes me choca. Um mendigo procurando comida no lixo, o cheiro nauseabundo que sai dos sacos e invade o ar, me causa espasmos involuntários no estômago. A cidade é bruta e vive a golpear os habitantes. Vejo as pessoas como se fossem um cardume, sem as diferenciar quando estão nas massas. Vão e vem num transe como se fossem uma coisa só, um monstro capital, uma energia desfigurada de formas e cores diversas.

As falas se misturam umas às outras, gritos vendedores se sobressaem em meio aos murmúrios e conversas repletas de sotaques diferentes.

E na cidade a linguagem é única, fica ali quem consegue sobreviver. Quem não consegue fica à margem, vira uma barata, uma ''coisa''.

Tem vezes que o céu desaba sobre nossas cabeças em um cabrum ácido de chuva poluída. Como se a água tentasse desesperadamente lavar as impurezas mentais e os desequilíbrios psicológicos de seus moradores.Eu nunca morri de amores pelas cidades engolidoras de gentes.Eu prefiro aquelas mais distantes dessa realidade fria e agressiva. Tudo na cidade parece oprimir e massacrar.

Na condução do metrô, do ônibus ou do trem, os corpos se embolam, o espaço é uma disputa acirrada.

Crianças que andam pra lá e pra cá maltrapilhos são invisíveis e indesejados.Crianças eles não são, são corpos sugados, maturados precocemente, parecem ter nascido dos bueiros e jamais de outro ser humano.Estão ali como ali estão os grafites dos muros, fazem parte do ''contexto''.

João era um desses seres invisíveis e se arrastava todos os dias pra lá e pra cá.Com roupas surradas, encardidas e jogado na vida. Ninguém notou quando uma chuva brutal caiu com tudo por cima da cidade, e o menino João foi arrastado para dentro de um bueiro e nunca mais saiu.