O espelho.
Não se sabe como aconteceu,ou melhor não se sabe porque vivi durante anos aprisionado dentro do espelho antigo que estava dependurado num canto da sala de jantar da minha própria casa. Nesse espelho eu vivi durante muito tempo, sentado ou deitado exatamente na chaise longue refletida do outro lado, o lado real. Da chaise longue refletida eu passava todas as minhas monótonas horas, onde o tédio e a morosidade eram quebrados quando aconteciam festas e visitas nessa minha casa. De onde, estupefato eu via meu duplo a fazer coisas e a se divertir com pessoas desconhecidas. Via no meu duplo alguém que tinha exatamente o mesmo físico, voz e maneiras que eu costumava ter,mas eu apenas assistia passivo todas aquelas manifestações. Eu permaneci expectador, sem que pensamento algum do outro lado da realidade, pudesse eu manifestar.
Passei muitas horas a escutar trovoadas, barulhos de ventanias, portas batendo ou mesmo meu cão Pluto, chorando no batente da porta, enquanto que meu duplo pró ativo não estava em casa. Foram muitas as tentativas iniciais, de tentar saltar para o outro lado do espelho. Entretanto, todas as tentativas se mostraram inúteis, e mesmo meus gritos eram nulos, ninguém que estivesse perambulando do outro lado parecia ouvir-me.
Às vezes eu chegava à exaustão, então adormecia, e era acordado pelo barulho de chaves abrindo a porta e ouvia-me com voz embriagada,pastosa e deprimente chegando no meio da madrugada, ora estava sozinho e escutava-me abraçando Pluto, falando mole que estava morto de cansaço e que queria dormir. Ora escutava-me chegar aos risos, sempre acompanhado de outros companheiros de copos e mulheres. Reconhecia na voz de alguns, alguns de meus conhecidos ou conhecidas. E ficava pensando em como estavam todos tão ridiculamente bêbados. E em como nunca antes eu havia notado o quão realmente bêbados ficávamos,antes de eu ficar aprisionado naquela maldição.
Me deprimia por vezes não estar participando das animadas conversas. Outras juro que tapava meus ouvidos amaldiçoando a todos os presentes estarem, de alguma forma me desprezando. Ou na maior parte das vezes, odiava-me com todas as forças, a cada gole de vinho ou de conhaque que meu duplo bebia, todo alegre e avermelhado do outro lado do espelho.
Cheguei por vezes a desacreditar-me ou desacreditá-lo, e pensava em como es/sou ridículo, como pode/posso ser tão estupidamente imbecil, não pode ser eu, não sou eu,pois jamais poderia ser eu, pois estou do lado oposto do espelho. E estou sempre com as mãos nas têmporas, analisando cada palavra torta, cada tragada maldita a que meu duplo deliberadamente se entregava.
E esse ser, munido de uma vaidade soberba, se achava bonito, inteligente, esperto e sedutor. E eu do outro lado do espelho, sentia uma ternura que muitas vezes escorregava na vergonha alheia e quando isso acontecia, eu tapava os olhos. Pois não queria ver-me naquela situação.
Na verdade o ócio da inanição me consumia por completo. Eu sentia que no meu foro íntimo invejava meu duplo, porque tudo quanto ele usufruía era meu de direito. Minha casa, meus pertences, meu cão e meus amigos. Era meu aquele corpo, aquela cara, aquelas vestes e também eram meus os modos, os gestos e os vícios.Eu só podia pensar e refletir a respeito. Fui despejado do meu próprio mundo. Que como expectador me parecia pequeno, vulgar e egoísta. Ao menos podia me analisar por completo, mas apenas do ponto de vista daquele ambiente limitado do cômodo da chaise longue.
Uma das noites em que meu duplo demorava a voltar fiquei contando os quadradinhos do tapete repetidas vezes e eis que ele entra porta adentro e se senta na chaise longue. Coloca as mãos no rosto, e começa a chorar.
Uma mulher se aproxima dele, ela era gorda, cabelos bem compridos,pretos, aparentava ter uns cinquenta e poucos anos. Usava muitos colares de contas diversas e um vestido branco comprido.Ela segura a mão do meu duplo e ele começa a se acalmar.Balbuciando, meu duplo diz que não aguentava mais aquela situação.Escuto então, um singular diálogo entre os dois;
- Não posso mais viver assim, sinto-me completamente aprisionado dentro de mim. Sinto uma angústia imensa que não tem motivos.
- Eu compreendo, é difícil... - Diz a mulher,comovida.
- Percebe?! Eu vivo há anos nessa casa e desde então meu mundo desmoronou. Minha ex até tentou se adaptar, mas acabou me deixando e voltou a morar com os pais dela no interior. Eu fiz de tudo para tentar impedir, mas ela não suportou e foi embora.
- Acontece...
- Como assim acontece? Eu passei a beber mais que de costume, e uma estranha obsessão se apoderou de mim, um tal de TOC, que fez com que eu tivesse que entrar e sair dos lugares apenas nos minutos pares, pois do contrário uma catástrofe poderia acontecer. Isso é um inferno, fora os banhos intermináveis e a sensação de estar sempre sujo.
- E quando isso tudo começou ?
- Quando me mudei para essa cidade, há cerca de cinco anos.
- Você sabe quem morou anteriormente aqui?
- Sei apenas que era um homem, solteirão, bon vivant e que morreu em um acidente de carro.As vizinhas comentam, que ele era boa pinta e fazia muitas festinhas aqui dentro.Contudo elas também comentam que era simpático com todos. E não sei nada mais além disso, pois não sou de me entrosar com a vizinhança.Mas minha loucura e a distância da ex mulher fez meu comportamento mudar um pouco e me tornei mais sociável, para fugir da angústia talvez.
- Perfeito! Talvez isso esclareça algumas coisas. Vou chamar minha cigana, vamos saber o que acontece por aqui.
Aquilo agora? Que eu sempre fora uma pessoa insatisfeita e cheia de manias eu sempre soube,mas não podia me reconhecer chorando daquele jeito, meu duplo estava me sacaneando? Na verdade senti também vontade de chorar diante da minha situação horrível, prisioneira e à mercê da minha existência.Senti vontade de me perder nas ruas, beber com amigos como fazia antes de vir morar do outro lado do espelho.Sempre que sentia angústia era dessa forma que eu escapava da sensação de vazio.
Cigana aqui na minha casa? Que insulto!Um povo que não é confiável. Eu pensei, e assistindo da chaise longue eu via um desfilar de coisas bizarras, mas o que seria bizarro para uma pessoa na situação que me encontrava? Então resolvi pagar para ver e o que se seguiu foi extraordinariamente incomum.
A mulher de branco, de cabelos compridos e negros se transformou em uma mulher mais magra e de vestido amarelo. Era mais alta e mais jovem e veio em direção ao espelho. Pela primeira vez alguém conseguiu me ver, mas aquilo me deixou perplexo, aquela magia eu não podia entender.Ela me olhava nos olhos e com as mãos na cintura balançou a cabeça para os lados, como que me recriminando de algo.
- Você me vê?
- Claro que vejo, estás há algum tempo morando no espelho?
- Fazem cinco anos. Não sei o que me aconteceu!
- Eu vou lhe mostrar o que aconteceu. - E então ela com um golpe de punhos arrebenta o vidro do espelho e o cenário à minha frente se configura um outro um pouco diferente desse que eu estava acostumado a ver da chaise longue. Um fio de sangue escorre pelo braço fino e comprido da moça. E um sopro sobre o punho faz o sangue cessar.
Olho à minha volta e não estou mais preso no espelho, vejo móveis diferentes, quadros diferentes e procuro pelo meu duplo. Mas não o encontro mais. Vejo apenas um homem sentado em um sofá que era bem diferente da minha chaise longue, e é um homem baixo e calvo que usa óculos. Onde estaria meu duplo? Caminho pela sala e não o encontro.
- Quem é você? Uma bruxa?! Me desculpe se te ofendi, estou contente de ter saído desse espelho, mas não estou achando meu duplo e não estou entendendo como você se transforma assim.- Disse à cigana e nesse instante vi o homem calvo ter uma convulsão, bem ali na minha frente.
Ele tremia e se debatia, me deixou bastante assustado. Por uns segundos perdi a visão e quando dei por mim eu era gordo e usava óculos, passei a mão na nuca e não senti meus cabelos fartos e cacheados,dei um grito de pavor.
- Se acalme! - Sugestionou a moça cigana ou a cigana moça.
- Quando essa bruxaria vai acabar?
- Agora! Pegue minha mão e eu vou te levar para longe daqui.
Segurei sua mão e fomos até a porta da minha casa, que não era mais minha casa. Dali eu vi o homem calvo segurando a mão da primeira mulher, a de branco, e então fomos caminhando pelas ruas, perguntei para onde íamos e ela respondeu:
- Muitos lugares, mas primeiro vou te levar a um ferro velho dessa cidade.